segunda-feira, 6 de setembro de 2021

Estudos pós-coloniais em reflexão*

Grafitti Barrio Callao - Lima - Peru 2019  - Fotografia do Autor


Frank Marcon


* Texto avulso escrito orginalmente em 2005 como sistematização das leituras que realizava sobre o tema. Foi disponibilizado para acesso livre no site do NUER-UFSC (Núcleo de Estudos de Identidades e Relações Interétnicas), em 2007. 

O campo das reflexões e estudos pós-coloniais se constitui como tal no fim dos anos 80, início dos 90, do século vinte. São estudos em diversas áreas disciplinares, marcados fortemente pela teoria literária e em seguida absorvidos pela história e pela antropologia. A principal proposta disciplinar no campo das reflexões pós-coloniais é o seu caráter transversal, que perpassa a teoria literária, a psicanálise, a filosofia, a antropologia, a história e a política. Esta característica marca a sua forte presença entre os Cultural Studies (HALL, 2003) e as influências desta sobre as reflexões do pós-colonial. No entanto, esta não é uma área que apresenta consensos em torno de categorias ou do que significa a própria definição de pós-colonial, bem como no que diz respeito a outros tantos conceitos e categorias utilizados.

O que se pode dizer é que as referências ao termo e suas problematizações surgiram primeiramente entre os teóricos anglo-saxônicos (nos EUA, Inglaterra, Austrália, bem como nas antigas colônias inglesas) e multiplicaram-se também entre os intelectuais da diáspora do colonialismo francês, neerlandês e mais recentemente do português e espanhol.

Tornou-se polêmico o número significativo de estudos que passam a utilizar-se da designação de “estudos pós-coloniais”. Apesar de alguns autores proclamarem o surgimento de uma “área de estudos” ou de uma “teoria pós-colonial”, na disputa por um determinado espaço acadêmico, outros teóricos se tornam críticos deste tipo de postura, mesmo estando envolvidos com o campo das problemáticas contemporâneas suscitadas pelas experiências de ordem global do que fora o colonialismo.

Na perspectiva de sistematizar o contexto destes embates proponho uma breve digressão sobre o “pós-colonial”, enquanto conceito e enquanto campo de estudos. Aponto as principais categorias e conceitos trabalhados neste campo, os autores envolvidos com a temática em diferentes perspectivas e os principais referenciais teóricos utilizados pelos mesmos.

O termo adjetivo “pós-colonial” ou o substantivo “pós-colonialismo”, geralmente tem sido situado pelos estudiosos do assunto por três diferentes ênfases não necessariamente contraditórias entre si. São elas: as que distinguem o pós-colonial como uma teoria; aquelas que o definem como uma situação global contemporânea; e aquelas que denominam a condição política dos Estados nacionais após a independência ou a experiência colonial.

Para o antropólogo Miguel Vale de Almeida (2000), sobre o “pós-colonial”, devemos levar em consideração que:

“1) o termo deverá ser aplicado ao período posterior ao colonialismo, mas também posterior ao fracasso dos projetos nacionalistas e anti-colonialistas aplicados logo após as independências; 2) o termo deverá aplicar-se aos complexos de relações transnacionais entre ex-colônias e ex-centro colonizadores; 3) tudo o resto, como globalização, settler societies, neocolonialismo, colonialismo interno, devem ser tratados nos seus próprios termos (ALMEIDA, 2000, p. 231).

Mesmo assim, as sociedades não são todas pós-coloniais da mesma forma (HALL, 2003) Sintetizando alguns destes pontos, o “pós-colonial” como conceito só é útil na medida em que possa nos ajudar a pensar, dialogar ou descrever interpretativamente as mudanças nas relações globais que marcam as transições desiguais da era dos impérios para a era pós-independências. Por um lado, este é um conceito universal, na medida em que sociedades colonizadas e colonizadoras foram ambas afetadas pelo processo colonial. Por outro, o termo “pós” não pode ser meramente descritivo disto ou aquilo, do antes ou do agora. Ele deverá reler a colonização como parte de um processo essencialmente transnacional e transcultural global, produzindo uma reescrita descentrada, diaspórica ou global de anteriores grandes narrativas centradas em nações. Neste sentido o pós-colonial não é meramente uma periodização baseada em estágios. (ALMEIDA, 2000)

Este não é apenas um “pós” de superação de etapas, mas é um “pós” do gesto de “abrir espaços”, por ser posterior a algo, mas também por rejeitar os aspectos “de” algo.

Não significa que uniformemente as sociedades coloniais ou tradicionais ultrapassaram o “colonialismo”. Significa que esta é uma condição de posturas intelectuais, estéticas, políticas e econômicas marcadas pela deslegitimação da autoridade, poder e significados produzidos pelos impérios ocidentais. (APPIAH, p. 213) É um “pós” que contesta narrativas anteriores, legitimadoras de dominação e poder, como, por exemplo: de raça, gênero, classe, nação e etnia. Nesta perspectiva, o entendimento do “pós-colonialismo” como substantivo propõe a idéia de uma condição universal do pós-colonial. Condição global que emerge na literatura, na filosofia, na estética e na política fruto da mútua experiência colonial na metrópole e nas colônias.

Em outras palavras “as perspectivas pós-coloniais emergem do testemunho colonial dos países do Terceiro Mundo e dos discursos das ‘minorias’ dentro das divisões geopolíticas de Leste, Oeste, Norte e Sul” (BHABHA, 1998). Para alguns, o “pós-colonial” marca uma condição latente da contemporaneidade e torna-se também um projeto literário, político e teórico. Na afirmação de Miguel Vale de Almeida (2000), o pós-colonialismo acabou por se constituir numa corrente. Uma corrente teórica e crítica que estaria procurando desfazer ou desconstruir o eurocentrismo, com a consciência de que a pós-colonialidade não nasce e não cresce numa distância panóptica em relação à história. Estes estudos estariam propondo um “depois de ter sido trabalhado” pelo colonialismo (ALMEIDA, 2000, p. 228). Noutros termos, seria uma teoria do “discurso pós-colonial” ou a “crítica pós-colonial”.

Para Hall (2003), “uma das contribuições do termo “pós-colonial” tem sido dirigir nossa atenção para o fato de que a colonização nunca foi algo externo à sociedades das metrópoles imperiais” (p.108). O termo não se restringe a descrever uma dada sociedade ou época. “Ele relê a colonização como parte de um processo global essencialmente transnacional e transcultural – e produz uma reescrita descentrada, diaspórica, ou global, das grandes narrativas imperiais do passado, centradas na nação.”(HALL, 2003, p. 109). O pós–colonial não é, portanto, uma forma de periodização de estágios epocais. As lutas e os processos de descolonização seriam apenas um momento distinto que reverte fundamentalmente à configuração política do estado e do poder.

O “pós-colonial” seria um “discurso” epistêmico e cronológico, que não se trata apenas de posterior, mas de ira além do colonial. (HALL, 2003, p. 118) Um discurso que opera sob rasura, no limite de uma episteme em formação, não como um paradigma convencional, (HALL, 2003, p.121) mas como episteme que opera entre uma lógica racional sucessiva e uma desconstrutora. Uma resposta à necessidade de superar a crise de compreensão produzida pela incapacidade das velhas categorias de explicar o mundo (HALL, 2003, p. 124)

Numa perspectiva crítica ao uso do indiscriminado do termo “pós-colonial” e mesmo de uma teoria que se proclame como tal, McClintock (1995) diz que o termo pós-colonialismo é ao mesmo tempo celebratório e ofuscador. Isto significa dizer que enquanto alguns países podem ser pós-coloniais, em relação aos antigos domínios metropolitanos, eles podem não ser pós-coloniais, em relação aos seus novos vizinhos colonizadores, se pensarmos na re-estruturação geopolítica mundial das últimas décadas (McCLINTOCK, 1995, p. 13). Também o “neocolonialismo” universal não seria uma repetição da performance do colonialismo? Na visão de McClintock (1995), esta distinção entre “colonial” e “pós” pode ser prejudicial por deixar de estar atenta à continuidade das relações de poder colonialista no mundo contemporâneo. Mesmo assim, a autora diz que admite trabalhar com muitos dos conceitos daquilo que está sendo posto como teoria pós-colonial. Uma das características, do uso de conceitos, teorias e da noção de pós-colonial, é que ela é perpassada pelas discussões sobre o pós-modernismo e a globalização de mercado, o que implica estarmos também atentos a estes debates.

Para Don ROBOTHAM (1997), “o desmoronamento do comunismo e a passagem ao capitalismo pela Europa Oriental e a Ásia Central, o desaparecimento do movimento de países não alinhados, a crise da África, as dificuldades econômicas, sociais e políticas da União Européia, a ascensão na Ásia, da China e do Japão, as dificuldades dos EUA conservar sua posição única e superpotência, a revolução eletrônica e a mundialização das finanças e das comunicações, trouxeram novos desafios às ciências sociais”. (p. 296). Pensando o “pós-colonialismo” e sua relação com a Antropologia, Robotham (1997) diz que a disciplina entra num período contemporâneo sem precedentes, mas é necessário rever seus próprios conceitos de ocidentalização, modernização e pós-colonialidade. Eu diria que a Antropologia pós-colonial seria aquela que rejeitaria em absoluto um projeto racionalista Iluminista. Para muitos estudiosos, os representantes desta antropologia seriam alguns dos mesmos antropólogos considerados como “pós-modernos”, como: James Clifford, George Marcus, Cushman & Fischer. Por exemplo, a obra considerada como fundadora da antropologia pós-colonial é o livro Writring Culture, de Clifford e Marcus (1986).

Finalmente, inspirador das discussões sobre “pós-colonialismo”, Edward Said (1990) não trabalha com a noção de pós-colonial na sua obra emblemática: “Orientalismo”. Said (1990) trabalha com o conceito abrangente de “imperialismo”, e o define como forças políticas que, muitas vezes, fazem alguns países deterem uma determinada hegemonia cultural e econômica predominante sobre outros. Este imperialismo que representa a legitimidade dos valores ocidentais num plano universal e constrói sua visão hegemônica sobre o Oriente enquanto unidade geográfica e colonial. O mesmo ocorrendo com outras categorias, como: raça, nação, colônia, terceiro mundo, América Latina e África, que se tornaram noções generalistas, estereotipadas, abrangentes e sistemáticas que perduram e são atualizadas a partir de referentes já constituídos do pensamento racionalista ocidental. Said (1990) problematiza a perspectiva imperialista para dizer que “a tarefa mais importante de todas seria o estudo das alternativas contemporâneas para o orientalismo, que investigue como se podem estudar outras culturas e outros povos desde uma perspectiva libertária, ou não-repressiva e não-manipuladora” (SAID, 1990, p. 35). Isto constituiria, talvez, o projeto ou a proposta maior de uma “teoria pós-colonial”.

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