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terça-feira, 9 de fevereiro de 2016

Resenha “Os usos da diversidade”, de Clifford Geertz

Por Danielle de Noronha

GEERTZ, Clifford. Los usos de la diversidad. Barcelona: Paidós, 1996, pp. 65 – 92.

No texto “Os usos da diversidade”, Clifford Geertz reflete sobre o “futuro do etnocentrismo” e, ao mesmo tempo, sobre o papel do antropólogo nesta questão e sobre os usos e o estudo da diversidade. O ponto de partida é a suposta suavização da diversidade cultural, que dá lugar a um mundo formado por uma “variedade com espectro mais pálido e estreito”, marcado apenas de pequenas e sutis diferenças.

Geertz inicia seu pensamento a partir de um argumento de Claude Lévi-Strauss, desenvolvido no trabalho “Um Olhar Distanciado” (Le regard éloigné) do antropólogo francês. Em resumo, o argumento de Lévi-Strauss, que foi apresentado durante uma conferência da UNESCO de inauguração do “Ano internacional de luta contra o racismo e a discriminação racial”, em 1971, defende o etnocentrismo (utilizando outros termos) como uma ferramenta normal de manutenção das diferenças sociais. Tal raciocínio compreende que determinada cultura se perceba superior às demais e justifica que não seja possível enxergar em outra cultura considerada diferente – e, neste caso, inferior – algo que possa ser útil ou interessante para si própria. Nesse sentido, se naturaliza a diferença entre “nós” (somos quem somos) e “eles” (são quem são), e também o racismo, e coloca barreiras definidas entre as diferentes culturas. Assim, cada pessoa está presa a sua própria tradição cultural e só pode enxergar o outro – e a si próprio – desde esta perspectiva.

Geertz acredita que esse pensamento tem dominado os estudos sobre a diversidade cultural, mesmo que com diferentes abordagens, e que ele acaba apoiando-se na ideia de que a diversidade cultural fornece alternativas a nós em contraste com alternativas para nós. Isso é, outras crenças e estilos de vida poderiam ser adotados por nós apenas se houvéssemos nascido em outro contexto.

Porém, para Geertz, a questão da diversidade cultural deve ser compreendida de outro modo para englobar toda a complexidade que permeia o tema. Em primeiro lugar, para o antropólogo, o consenso universal para questões fundamentais não está próximo. Diferentes culturas e formas de ver o mundo são responsáveis por diferentes opiniões sobre assuntos comuns e isto provavelmente não mudará. Em segundo lugar, por mais que Geertz esteja de acordo de que somos influenciados pelo “nosso” lugar para compreender a nós mesmos e o mundo que nos rodea, ele acredita que o problema do etnocentrismo está em nos impedir de descobrir em que tipo de ângulo nos situamos em relação ao mundo, isto é, nos impede de ampliar a nossa visão e saber quem realmente somos.

O antropólogo pondera que as articulações do mundo social não estão divididas entre um nós perspícuo, com o qual temos empatia mesmo com as diferenças entre nós, e um eles enigmático, com o qual não temos empatia, por mais que finjamos que reconhecemos o direito à diferença. A sugestão de Geertz é que o sentido seja entendido como socialmente construído. O etnocentrismo obscurece as lacunas e assimetrias entre as pessoas e impossibilita que possamos mudar de ideia. Entretanto, a história de todos os povos está relacionada com a possibilidade de mudar de ideia, que também ocorre no encontro entre as diferentes culturas. Entender a diversidade hoje é saber que vivemos um processo de embaralhamento entre as culturas, em que as questões morais e éticas provenientes da diferença estão também dentro de “nós”. Para isso, ao invés de colocar fronteiras entre as diferenças, é necessário apreender o que significa estar no outro e, desta forma, no seu, para assim compreender como é possível contornar uma assimetria moral autêntica, sem necessariamente recorrer ao uso da força, isto é, daquele que possui mais poder. É necessário aceitar e buscar uma incursão imaginativa na mentalidade alheia.

O etnógrafo, segundo Geertz, é o principal conhecedor da mentalidade do outro em nossa sociedade e a etnografia é a grande inimiga do etnocentrismo. Ela coloca nós e eles num mesmo espaço, que de alguma forma já é comum, e não nos separa em diferentes planetas culturais. Para ele, o trabalho da etnografia é proporcionar narrativas e enredos para redirecionar nossa atenção, que nos tornem visíveis para nós mesmos, como parte de um mundo onde existem outros e também estranhezas com as quais teremos que aprender a lidar. E respeitar.

As diferenças podem ter fronteiras definidas, mas estão em espaços sociais irregulares. Geertz sugere que devemos pensar a diferença de um modo diferente, em que as distintas culturas possam ser entendidas como parte de uma grande colagem de diferenças justapostas. E, para isso, devemos fortalecer a nossa capacidade de imaginação e aprender a apreender o que não podemos abraçar.  

sexta-feira, 19 de novembro de 2010

Populações Tradicionais e a Convenção da Diversidade Biológica

Cunha, Manuela Carneiro da. Populações Tradicionais e a Convenção da Diversidade Biológica. Conferência do mês do Instituto de Estudos Avançados da USP em 17 de junho de 1998. Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?pid=S0103-40141999000200008&script=sci_arttext

Resenhado por Aline Ferreira da Silva

Abordando um conjunto de questões que envolvem reflexões sobre público/privado, populações locais/estados nacionais, países do norte/países do sul, ciência tradicional/ciência ocidental, direitos tradicionais/direitos universais, o texto Populações Tradicionais e a Convenção da Diversidade Biológica traz à tona um debate que tem como foco analítico principal refletir sobre o “lugar” do “saber local” frente aos debates atuais em torno da diversidade biológica e do desenvolvimento científico. Resultado de uma conferência apresentada ao Instituto de Estudos Avançados da USP, o texto compõe um dos principais temas de trabalho da Antropóloga e professora da Universidade de Chicago, Manuela Carneiro da Cunha, a qual vem desenvolvendo estudos e pesquisas nas áreas de etnicidade, povos tradicionais e questão racial.
O texto de Cunha (1998) inicia-se com uma breve descrição acerca do que foi a Convenção da Diversidade Biológica (CDB) e de como foi a sua repercussão no Brasil. Caracterizada por reunir países de diversas partes do mundo para discutir sobre o uso sustentável da dos bens genéticos e biológicos, o evento é apresentado pela autora como sendo um instrumento do direito internacional que reúne organizações transnacionais, representantes do Estado, dos movimentos sociais e da sociedade civil organizada no debate sobre o direito à conservação biológica. No centro reflexivo deste debate, alguns questionamentos principais se fazem recorrentes: É o direito biológico e genético um direito universal? Os recursos genéticos, biológicos e tradicionais devem ser tidos como um patrimônio da humanidade? Como garantir à coletividade humana que tenham o direito a todos os patrimônios biológicos e genéticos sem que isso implique na perda de direitos de algumas comunidades locais? Qual o limite entre apreender os bens genéticos e biológicos como bens privados, públicos, tradicionais ou modernos?
O pressuposto reflexivo que dá impulso ao desenvolvimento destas questões aparece diretamente ligado ao fato de que, nas últimas três décadas, dada a expansão dos estudos científicos ocidentais, em especial os biotecnológicos, tem havido uma forte disputa em torno de como os produtos biológicos devem ser apreendidos, se como bens públicos, e portanto livres para acesso de toda a humanidade, ou privados, neste caso, passariam a ser patenteados e pertencentes a grupos específicos de estudiosos, países e/ou empreendedores. O ponto problemático desta questão é que, por conta dos elevados ganhos científicos e econômicos que o domínio dos bens biológicos e genéticos tem trazido para a sociedade moderna, muitos países de elevado poder político-econômico têm incentivado os movimentos em prol da privatização destes bens, consectuando, inclusive, em leis que os asseguram o domínio de explorar determinados produtos, produtos estes que na grande maioria das vezes, pertencem a outros territórios, a outros povos, com outras culturas e formas de utilização daqueles bens. Fazendo uma breve comparação entre os países do Norte e os países do Sul, Cunha relata que, em 1975, dos 12 centros de megadiversidade existentes no mundo, 11 estavam situados no hemisfério Sul, sendo que, em termos de domínio de patentes, apenas 1,7% das mesmas pertencia a estes, e as demais, cerca de 98,3% aos países do Norte. Em outras palavras, embora os países em desenvolvimento concentrassem a maior parte da diversidade biológica do mundo, eram os países desenvolvidos quem mais tinha poder sobre estes.
Ao longo dos anos 1990, a crítica à chamada revolução tecnicista/verde e ao modelo de desenvolvimento calcado no desenvolvimentismo economicista e individualista trouxe para o debate público internacional o questionamento sobre a consequência da implantação destes modelos para as comunidades locais. Com isso, se antes as mesmas eram apreendidas como comunidades cujo saber era tido como arcaico, incompatível com o progresso que se aspirava, agora, frente aos novos debates que insurgem, os conhecimentos e saberes destas passam a ser apreendidos como “tendo um valor” incomensurável para o desenvolvimento e progresso da sociedade moderno-contemporânea. E é justamente neste ponto que permeiam alguns problemas: Quais valores são estes que são atribuídos a estes saberes? Como eles são vistos e apreendidos pelas sociedades globais? Quais “utilidades” são dadas a estes saberes? De acordo com Cunha (1998), nos últimos anos o saber local assumiu o “epicentro” dos debates importantes em termos de Estados Nacionais e organizações internacionais. A tal saber, passam a ser atribuídos valores culturais, ambientais, identitários, sociais e econômicos muito grandes, já que, visto como uma forma diferente de se fazer ciência, a este correlaciona-se a possibilidade de construção de um modelo de se fazer ciência mais compatível com os ideais de “sustentabilidade” galgados pelas comunidades internacionais.
Assim, tido como “uma ciência viva, que experimenta, inova, pesquisa” (Cunha, 1998: 159), o saber local passa a ser associado como uma forma de conhecimento que tem domínio sobre as diversidades biológicas, as variedade genética; que tem domínio sobre as possibilidades de articulações, e mais que isso, que tem em seus territórios características naturais preservadas das mudanças e agressões impostas pelas tecnologias e manipulações científicas. Conforme Cunha (1998:159) “são essas condições essenciais de produção do saber local que as propostas de direitos intelectuais coletivos querem preservar”, principalmente no que se refere à (1) variedade de plantas, (2) o saber sobre elas, (3) e a divisão que as comunidades locais fazem diante delas, no processo de classificação das mesmas.
Abordadas estas questões, Cunha (1998) segue fazendo uma série de indagações acerca de como as organizações internacionais podem fazer para se apoderar destes conhecimentos, já que, além do valor científico que lhes é atribuído, existe por trás da tentativa de tornar este conhecimento público, fortes interesses comerciais e/ou posicionamento diante do mundo. A questão agora é saber, até que ponto (ou mesmo quando) os saberes locais vão poder gozar de suas particularidades e serem saberes locais e não globais? Como funcionará (ou funciona) a circulação destes conhecimentos e quais as implicações que incidirão sobre as comunidades? Dentre as várias possibilidades de conseqências que estes questionamentos podem gerar, o fato é que, para Cunha (1998), o desafio é saber mediar os interesses entre os diversos agentes envolvidos, procurando estreitar os laços dialógicos entre Estados Nacionais, organizações internacionais e comunidades locais.