domingo, 5 de dezembro de 2010
Debate sobre Cultura de Consumo, Sociedade do Espetáculo e Pós-modernismo
O termo pós-moderno é definido em contraposição ao termo moderno, apoiando-se em sua negação perante o pós-moderno num rompimento e/ou afastamento, ou até mesmo no abandono perceptível das características decisivas do moderno, marcando um sentido de deslocamento relacional. Historicamente o conceito de modernidade surgiu com o Renascimento no enfrentamento teórico em relação à Antiguidade e a Idade Média. A modernidade contrapõe à ordem tradicional confrontando a progressiva racionalização e diferenciação econômica e administrativa do mundo social, resultando na formação do moderno Estado capitalista-industrial que muitas vezes foi visto como antimodernista.
Acredito que a passagem da modernidade para uma tal pós-modernidade envolve a emergência de uma nova totalidade social atrelada a uma sociedade pós-industrial com um novo formato tecnológico, computadorizada. Seria a era da tecnologia da informação(?), tornando-se modelo de uma nova ordem social, indicativo de uma nova disposição de espírito, um estado de mente pós-moderna, voltada então para a globalização e seus efeitos – os espaços virtuais e toda sua mega possibilidade de construir, gerir e agregar empreendimentos? Featherstone (1995) comenta que o termo pós-moderno seria indicativo de uma periodização, uma mudança de época atrelada a uma nova lógica cultural de um capitalismo tardio, “(...) cuja origem está na era posterior à Segunda Guerra Mundial” (p. 21).
O sentido de pós-modernidade indica um estado de mente, de espírito e assinala o uso de uma “experiência de modernidade” como uma qualidade da “vida moderna”, um sentido de descontinuidade do tempo, de rompimento com a tradição e uma efemeridade fugaz do presente. Na experiência pós-moderna a realidade é transformada em imagens e o tempo é fragmentado numa série de presentes perpétuos, ou seja, o tempo presente.
Um contexto onde se usa com bastante relevância o termo pós-modernização é o campo dos estudos urbanos e culturais. Visto como um processo dinâmico e marco de uma nova etapa da sociedade capitalista, esses estudos focalizam processos de produção e consumo ao mesmo tempo em que a dimensão espacial de práticas culturais específicas: revitalização de áreas centrais das cidades (gentrification), orlas marítimas, o desenvolvimento de pólos artísticos e culturais, estilos e modos de vida, formação de identidades, expansão de setores de serviços, recuperação, restauração e revalorização de áreas urbanas deterioradas, etc. A centralidade da cultura é comum a todos esses temas de estudos e o valor de troca cultural só pode se formar como agente do valor de uso. Entretanto, a mobilidade e satisfação do uso conseguem dirigir o processo de troca cultural e a levar para novas bases.
Nesse debate proposto aqui, o que se observa é que tanto Featherstone (1995) quanto Debord (1997) enfatizam é que dentre as características centrais associada ao pós-modernismo, as artes e os estilos de vida dos artistas se apresentam como pano de fundo aplicado a esta discussão, refletindo, portanto, num processo de alargamento ou mesmo abolição dos campos de fronteira entre a arte e a vida cotidiana desde os anos do entre-guerras e a contracultura dos anos sessenta. Com efeito, a utilização dos termos modernismo e pós-modernismo designam complexos culturais mais abrangentes: o ideal do indivíduo autônomo.
O conceito de pós-modernismo está atrelado às mudanças e nas experiências e práticas culturais cotidiana de grupos sociais mais amplos, antes consideradas experiências pouco importantes. Neste processo está envolvido a perda de sentido do passado histórico, substituição da realidade por imagens, simulações, significantes desencadeados, etc. Numa visão pós-moderna a cultura de consumo tem como premissa a expansão da produção capitalista de mercadorias “(...) que deu origem a uma vasta acumulação de cultura material na forma de bens e locais de compra e consumo. Isso resultou na proeminência cada vez maior de lazer e das atividades de consumo nas sociedades ocidentais contemporâneas, fenômeno que embora sejam bem-vistos por alguns, na medida em que teriam resultado em maior igualitarismo e liberdade individual, são considerados por outros como alimentadores da capacidade de manipulação ideológica e controle ‘sedutor’ da população, prevenindo qualquer alternativa ‘melhor’ de organização das relações sociais” (Featherstone, 1995, p. 31). A lógica da sociedade de consumo, se é que o consumo possui uma “única” lógica, aponta para os modos socialmente estruturados de usar bens para demarcar as relações sociais e transmitir mensagens em contraponto aos conceitos de classe social. O modo como as mercadorias são utilizadas demarcam fronteiras e as relações sociais. O consumo, nesse sentido, está associado aos modos de manusear e consumir bens culturais, mercadorias-signos: roupas, comida, bebidas, atividades de lazer etc. E precisam está inscritos no mesmo espaço social do consumo cultural cotidiano. O espetáculo, portanto, inverte o real e torna-se o produto, a especialização do poder, a forma de se comunicar uns com os outros e a sociedade em geral.
A aparência fetichista nas relações nesta sociedade pós-moderna ou do espetáculo, ou qualquer outro tipo de desconstrutivismo que queiram chamar, tenta esconder nas relações espetaculares o seu caráter de relação entre os homens e entre as classes sociais. O mundo do espetáculo ou pós-moderno é o mundo em que as mercadorias-signos ocupam totalmente a vida social, pois são as mercadorias que regem as relações sociais, identidades e estilos de vida desde os marcadores da Segunda Guerra Mundial e o período do entre guerras.
A produção econômica moderna espalha intensivamente uma ditadura das mercadorias-signos que fazem parte de um jogo publicitário, onde os designs, comunicadores sociais e os meios de comunicação de massa em geral ditam essa moda.
É perceptível que a preferência de consumo e estilo de vida são marcadores de grupos distintos, e produz um efeito de perseguição pelos diferentes e a sociedade, pois envolvem julgamentos discriminadores que identificam nosso próprio julgamento de gosto ao mesmo tempo em que torna possível de ser classificado pelo outros. Portanto, por meio dos símbolos os grupos apresentam sua forma de transmitir sinais adequados e legítimos por meio de suas atividades de consumo, as quais os grupos usam bens simbólicos para estabelecer diferenças e identidades. A sociedade ocidental contemporânea produz e reproduz “(...) imagens e locais de consumo que endossam os prazeres do excesso. Essas imagens e locais promovem ainda um embaçamento da fronteira entre arte e vida cotidiana (...) (Featherstone, 1995, p. 42)”. processando elementos retóricos que formam identidades fluidas e hibridas e uma estilização e estetização da vida cotidiana. Espero que alguém me auxilie nesse debate.
REFERÊNCIAS
DEBORD, Guy. A sociedade do espetáculo. Rio de Janeiro, RJ: Contraponto, 1997.
FEATHERSTONE, Mike; SIMÕES, Julio Assis (Trad.). Cultura de consumo e pós-modernismo. São Paulo, SP: Studio Nobel, 1995.
segunda-feira, 29 de novembro de 2010
Na casa de meu pai: a África na filosofia da cultura (Resenha)
O Filósosfo Kwame Anthony Appiah nasceu na Inglaterra em 1954 e adotou também a nacionalidade americana onde vive e trabalha. Filho de uma aristocrata inglesa e de um africano ashanti, de Gana, Appiah foi criado em uma educação formal européia e dentro de uma família africana cristã, mas passou a maior parte da infância e da juventude em Kumasi, capital do povo de seu pai. Tem parentes em dezenas de países, reunindo em sua família os falares de oito línguas e três grandes religiões monoteístas.
O livro “Na casa de meu pai”, foi publicado pela primeira vez em 1993 e teve sua segunda edição lançada em 2007.
Neste livro, “Na casa de meu pai”, Kwame Appiah propõe em nove capítulos que se interligam e dialogam, a partir de questões interdisciplinares, uma abordagem ampla das teorias e problemas das identidades raciais, étnicas, pan-africanas e nacionais, e de como esses conceitos conduzem o pensamento dos estudiosos da cultura e da sociedade sobre a África. Já no prefácio fica claro que, além da interdisciplinaridade , alguns elementos autobiográficos, com alusão ao seu pai, vão nortear os questionamentos do autor acerca da idéia da existência de raças humanas e suas reflexões sobre os perigos e as limitações impostas à diversidade cultural do continente africano a partir da criação de uma identidade africana.
Appiah centra-se no conceito de raça como cerne do pensamento pan-africanista idealizado por pensadores afro-americanos, a exemplo de Alexander Crummel. Influenciado, segundo o filósofo, pelo pensamento racialista do Século XIX, baseado no racismo intrínseco e na experiência africana no novo mundo, o Pan-africanismo compreende a África como culturalmente homogênea no sentido da existência de uma forma de pensamento e conteúdo característicamente africano. A paritr da concepção de que certo grupo é objetável, base do racismo intrínseco, o Pan-africanismo alicersa-se erroneamente ignorando as diferenças dos passados pré-coloniais, bem como as experiências coloniais dos Africanos.
Embora Crummel seja considerado o precussor do pensamento pan-africanista, é em cima das bases intelectuais e práticas lançadas por W.E.B. Du Bois, que Appiah segue sua fundamentação teórica neste livro, discutindo a questão de raça, que para ele é errônea mesmo dentro da concepção científica, devido a pouca variabilidade gênica. Para o filósofo, mesmo que Du Bois tenha tentado negar a constituição de raças através do cientificismo do Séc. XIX, a definição de raça biológica negada por ele estava implícita na noção de “sangue comum”, adotada nessa definição, remetendo ao sentimento familiar dado à raça, por Crummel. Embora tentando reagir ao preconceito a que ele estava sujeito, Du Bois acabou por reforçar as raças na sua articulação intelectual, mesmo valorizando-as no sentido da contribuição que cada uma teria para o mundo, incluindo-se aí a raça negra.
O nacionalismo e a relação entre nação, literatura e raça para analisar como a identidade africana está representada é outro ponto a servir de reflexão para Appiah nesta obra. O autor coloca que no sentido de garantir a proteção contra a dominação do imperialismo europeu e o fortalecimento de uma identidade, os autores africanos construíram uma literatura de característica nacionalista, negando assim a idéia de ser universal. Appiah tenta assim, tomando como base o escritor Nigeriano Wole Soyinka, mostrar que a postura assumida pela literatura , no sentido de individualizar a cultura africana, tendeu como resultado, a minimizar e simplificar a diversidade cultural do continente africano, bem como ao contrapor a dominação cultural do ocidente, acabou por reforça-la, uma vez que essa realização se dá da mesma maneira em que os critérios ocidentais foram estruturados.
Appiah discute ainda sobre a moderna filosofia africana e a religião considerada como “tradicional” para pensar uma proposta de modernização para a África que pode caminhar, segundo ele, não exatamente entre o “provincianismo” e a “universalidade”, embora se faça necessário essa reflexão, mas no sentido de se pensar os problemas africanos distantes de uma idéia esteriotipada das suas diferenças, e sim a partir da situação especial da qual esses problemas emergem, sendo encarados como problemas humanos e não como problemas africanos.
O mercado artístico e literário dão a base da análise que o autor vai trazer, continuando suas reflexões no livro, sobre o sentido do Estado Africano e de identidade. O sentido de Estado e das nacionalidades vai se constituir a partir da importância que assume o papel da mercadologização, em que a influência da cultura ocidental na África tem sido crucial no momento em que a arte vira mercadoria. Para melhor contextualizar esse aspecto, uma exposição artística é tomada como exemplo, em que a mercadologização é evidente no sentido da importância que é dada ao comprador criado numa sociedade moderna e capaz de falar sobre arte africana, e o lugar que é reservado ao artista africano nesse processo. Com esse exemplo Appiah tenta desmistificar a idéia de que um artista africano só poderia falar de arte africana se conhecesse outras formas de arte e se não fosse influenciado pela sua própria visão estética, noção essa que facilmente se desfaz nas explicações de dele quando nos coloca dois problemas contidos aí. O primeiro versa sobre o fato de que o reconhecimento do artista africano como pertencente a uma determinada nacionalidade é dado a partir do instante em que ele sabe que não pertence a outro grupo, e isso só ocorre na medida em que ele pode diferenciar diante do conhecimento sobre o outro, suas tradições e culturas. O segundo problema versa justamente sobre a universalidade da visão local, quando sabemos que a visão de mundo é culturalmente definida. Com tudo isso e diante de parte da sociedade africana que se tornou consumista nos moldes ocidentais, Appiah destaca que a modernização das sociedades africanas está ocorrendo sem que se perca de vista seus aspectos culturais, uma vez que muitos se recusam a ver-se como o outro.
Estados alterados, o oitavo capítulo desse livro, traz a análise de questões sobre a formação dos Estados Africanos pós-coloniais levando-se em conta na compreensão do seu sentido, a reflexão sobre o passado pré-colonial, o próprio colonialismo e a estruturação desses Estados independentes. Appiah ressalta a diferença na formação dos Estados Nacionais na Europa e a formação dos Estados na África, e como o processo de colonização e descolonização da África resultou em Estados à procura de uma Nação, e que a estrutura colonial herdada pelos africanos, bem como a não adaptação das elites locais ao poder centralizador dos Estados Unidos, vão se constituir em problemas de um modelo que se apresentou inadequado às estruturas sociais da África. O autor, mesmo dando a idéia de fase de transição, sugere que a África poderá tornar-se um território fragmentado de muitas “identidades” e pouca coesão se não houver a superação das estruturas coloniais e diferenças étnicas, orientada por um pensamento racional comum.
Advertindo para o perigo existente ao se formar as identidades baseadas na questão de raça, Appiah vai encerrar seu livro trazendo nesse nono e último capítulo, “Identidades africanas”, o sentido dessa sua afirmação e advertência, uma vez que, segundo ele,não dá para ignorarmos as falsidades e os desajustes que a formação das identidades baseadas em tais concepções podem pressupor e proporcionar e propõe que o discurso das diferenças “raciais” e “tribais” deva ser desarticulado, na medida em que essas diferenças só interessam aos que com elas lucram de alguma forma. Apesar disso, ele coloca que, mesmo que os pressupostos raciais, de história comum e metafísica não devam pautar uma identidade africana e que eles não impõem uma identidade, não devemos descartá-los. O autor nos mostra ainda nesse capítulo que as identidades são construídas e históricas, complexas e múltiplas, de valor relativo, e que, por se tratar de algo relativo, deve se argumentar contra e a favor, mas considerando uma a uma, caso a caso. Nesse livro, com a revisão dos conceitos em que são assim construídas as identidades afloradas hoje no continente africano, Appiah se posiciona não contra as tradições ou as identidades, mas questionando mesmo a construção dessas identidades e chamando a atenção das conseqüências perigosas que essa construção pode trazer aos povos da África, a exemplo dos conflitos étnico-regionais e a negação de uma unidade que dê conta da heterogeneidade africana e da suplantação das diferenças, e que não ao contrário venha reforçar o acirramento das mesmas, atendendo a objetivos muito particulares.
By Martha Sales Costa
sexta-feira, 19 de novembro de 2010
Populações Tradicionais e a Convenção da Diversidade Biológica
Resenhado por Aline Ferreira da Silva
Abordando um conjunto de questões que envolvem reflexões sobre público/privado, populações locais/estados nacionais, países do norte/países do sul, ciência tradicional/ciência ocidental, direitos tradicionais/direitos universais, o texto Populações Tradicionais e a Convenção da Diversidade Biológica traz à tona um debate que tem como foco analítico principal refletir sobre o “lugar” do “saber local” frente aos debates atuais em torno da diversidade biológica e do desenvolvimento científico. Resultado de uma conferência apresentada ao Instituto de Estudos Avançados da USP, o texto compõe um dos principais temas de trabalho da Antropóloga e professora da Universidade de Chicago, Manuela Carneiro da Cunha, a qual vem desenvolvendo estudos e pesquisas nas áreas de etnicidade, povos tradicionais e questão racial.
O texto de Cunha (1998) inicia-se com uma breve descrição acerca do que foi a Convenção da Diversidade Biológica (CDB) e de como foi a sua repercussão no Brasil. Caracterizada por reunir países de diversas partes do mundo para discutir sobre o uso sustentável da dos bens genéticos e biológicos, o evento é apresentado pela autora como sendo um instrumento do direito internacional que reúne organizações transnacionais, representantes do Estado, dos movimentos sociais e da sociedade civil organizada no debate sobre o direito à conservação biológica. No centro reflexivo deste debate, alguns questionamentos principais se fazem recorrentes: É o direito biológico e genético um direito universal? Os recursos genéticos, biológicos e tradicionais devem ser tidos como um patrimônio da humanidade? Como garantir à coletividade humana que tenham o direito a todos os patrimônios biológicos e genéticos sem que isso implique na perda de direitos de algumas comunidades locais? Qual o limite entre apreender os bens genéticos e biológicos como bens privados, públicos, tradicionais ou modernos?
O pressuposto reflexivo que dá impulso ao desenvolvimento destas questões aparece diretamente ligado ao fato de que, nas últimas três décadas, dada a expansão dos estudos científicos ocidentais, em especial os biotecnológicos, tem havido uma forte disputa em torno de como os produtos biológicos devem ser apreendidos, se como bens públicos, e portanto livres para acesso de toda a humanidade, ou privados, neste caso, passariam a ser patenteados e pertencentes a grupos específicos de estudiosos, países e/ou empreendedores. O ponto problemático desta questão é que, por conta dos elevados ganhos científicos e econômicos que o domínio dos bens biológicos e genéticos tem trazido para a sociedade moderna, muitos países de elevado poder político-econômico têm incentivado os movimentos em prol da privatização destes bens, consectuando, inclusive, em leis que os asseguram o domínio de explorar determinados produtos, produtos estes que na grande maioria das vezes, pertencem a outros territórios, a outros povos, com outras culturas e formas de utilização daqueles bens. Fazendo uma breve comparação entre os países do Norte e os países do Sul, Cunha relata que, em 1975, dos 12 centros de megadiversidade existentes no mundo, 11 estavam situados no hemisfério Sul, sendo que, em termos de domínio de patentes, apenas 1,7% das mesmas pertencia a estes, e as demais, cerca de 98,3% aos países do Norte. Em outras palavras, embora os países em desenvolvimento concentrassem a maior parte da diversidade biológica do mundo, eram os países desenvolvidos quem mais tinha poder sobre estes.
Ao longo dos anos 1990, a crítica à chamada revolução tecnicista/verde e ao modelo de desenvolvimento calcado no desenvolvimentismo economicista e individualista trouxe para o debate público internacional o questionamento sobre a consequência da implantação destes modelos para as comunidades locais. Com isso, se antes as mesmas eram apreendidas como comunidades cujo saber era tido como arcaico, incompatível com o progresso que se aspirava, agora, frente aos novos debates que insurgem, os conhecimentos e saberes destas passam a ser apreendidos como “tendo um valor” incomensurável para o desenvolvimento e progresso da sociedade moderno-contemporânea. E é justamente neste ponto que permeiam alguns problemas: Quais valores são estes que são atribuídos a estes saberes? Como eles são vistos e apreendidos pelas sociedades globais? Quais “utilidades” são dadas a estes saberes? De acordo com Cunha (1998), nos últimos anos o saber local assumiu o “epicentro” dos debates importantes em termos de Estados Nacionais e organizações internacionais. A tal saber, passam a ser atribuídos valores culturais, ambientais, identitários, sociais e econômicos muito grandes, já que, visto como uma forma diferente de se fazer ciência, a este correlaciona-se a possibilidade de construção de um modelo de se fazer ciência mais compatível com os ideais de “sustentabilidade” galgados pelas comunidades internacionais.
Assim, tido como “uma ciência viva, que experimenta, inova, pesquisa” (Cunha, 1998: 159), o saber local passa a ser associado como uma forma de conhecimento que tem domínio sobre as diversidades biológicas, as variedade genética; que tem domínio sobre as possibilidades de articulações, e mais que isso, que tem em seus territórios características naturais preservadas das mudanças e agressões impostas pelas tecnologias e manipulações científicas. Conforme Cunha (1998:159) “são essas condições essenciais de produção do saber local que as propostas de direitos intelectuais coletivos querem preservar”, principalmente no que se refere à (1) variedade de plantas, (2) o saber sobre elas, (3) e a divisão que as comunidades locais fazem diante delas, no processo de classificação das mesmas.
Abordadas estas questões, Cunha (1998) segue fazendo uma série de indagações acerca de como as organizações internacionais podem fazer para se apoderar destes conhecimentos, já que, além do valor científico que lhes é atribuído, existe por trás da tentativa de tornar este conhecimento público, fortes interesses comerciais e/ou posicionamento diante do mundo. A questão agora é saber, até que ponto (ou mesmo quando) os saberes locais vão poder gozar de suas particularidades e serem saberes locais e não globais? Como funcionará (ou funciona) a circulação destes conhecimentos e quais as implicações que incidirão sobre as comunidades? Dentre as várias possibilidades de conseqências que estes questionamentos podem gerar, o fato é que, para Cunha (1998), o desafio é saber mediar os interesses entre os diversos agentes envolvidos, procurando estreitar os laços dialógicos entre Estados Nacionais, organizações internacionais e comunidades locais.
sexta-feira, 12 de novembro de 2010
A Praça Do Martim Moniz: Etnografando Lógicas Socioculturais de Inscrição da Praça No Mapa Social de Lisboa
Marluci Menezes possui doutoramento em Antropologia, especialidade em Antropologia Cultural e Social pela Universidade Nova de Lisboa (2002), Mestrado em Antropologia, especialidade em Antropologia Cultural e Social pela Universidade Nova de Lisboa (1996), e é atualmente chefe do Núcleo de Ecologia Social do Laboratório Nacional de Engenharia Civil, o LNEC.
Considerando o espaço Publico Urbano como um “suporte” para contextos de interações através das quais as identidades sociais, práticas e imagens socioespaciais são afirmadas, e/ou, contestadas, a presente etnografia sobre as práticas de uso (apropriação) da Praça Martim Moniz, objetiva analisar os aspectos socioculturais, responsáveis, segundo Menezes, pela “inscrição da praça no mapa social e urbano de Lisboa” (p. 304). O lugar público é assim, na visão da autora, um quadro simbólico representativo da cidade como uma unidade espacial, cultural e social. Menezes, seguindo a proposta de uma etnografia de “de perto e de dentro” (p.303) de Magnani, parte da idéia que as práticas sociais são também responsáveis pela configuração e reconfiguração dos espaços, que não são simples resultados de políticas intervencionistas de controle por parte do estado e do poder econômico.
Na primeira parte do artigo “Antecedentes da praça”, a autora traça um apanhado histórico do território da Mouraria, área histórica de Lisboa destinada aos mouros após reconquista da cidade no século XII, onde é situada a Praça Martim Moniz. Visto como gueto ‘insalubre” e “mal-afamado”, lugar de “prostitutas” e “malandros” (p. 306), a região da Mouraria tornou-se, entre os anos de 1930 e 1960, foco de políticas intervencionistas (urbanismo civilizador ) legitimadas por uma proposta de higienização e embelezamento destinada a transforma aquela zona da cidade marginalizada em um bairro moderno, modificando suas “dinâmicas sociais, culturais e urbanas” (p. 306) (gentrification?). Apesar desse grande Plano de Revitalização do bairro, o largo do Martim Moniz surge no cenário urbano de Lisboa apenas como praça e exemplo da boa convivência de diversos grupos étnicos (africanos, chineses, indianos e ciganos), marca de uma sociedade multicultural bem sucedido: “Portugal é um país multicultural” (p. 317).
É na segunda parte, “A etnografia da Praça do Martim Moniz”, onde começa o passeio etnográfico praticado pela autora durante três anos, como também o início da discussão que esta resenha se aterá, a ocupação (apropriação, uso) de Pedaços da praça por diferentes grupos étnicos. Africanos e indianos, num primeiro momento tinham como pedaço as esquinas circunvizinhas da praça, aglutinavam-se na extremidade norte da mesma (Por que? Tal localização facilitaria eventuais retiradas estratégicas, no caso de batida policial?), assim como os chineses. A recém inaugurada Martim Muniz passou rapidamente de pedaço de lazer dos moradores, para pedaço de imigrantes marginais, o lugar do outro, onde “não dá para se estar” (p.310). O “Cartão-Postal” (p. 310) que havia se tornado a Martim Muniz, via política de enobrecimento (revitalização), retomou rapidamente sua herança de “espaço onde havia perigo” (p.310).
Mais uma vez, em 1998, foi elaborado um plano de intervenção por parte do Estado. A Câmara municipal de Lisboa, numa tentativa de revitalizar economicamente a praça, estalou 44 quiosques destinados a venda de artigos religiosos, antiguidades e artesanato. Entretanto, o plano não deu certo. Ao invés de dar novos usos à praça, a distribuição desses quiosques obstruiu os trajetos ainda praticados pelos moradores, facilitando a prática de atividades ilegais: os quiosques e sanitários serviam de abrigo para toxidependentes e traficantes, assim como, para as gangues dos telemóveis, sobretudo imigrantes africanos, asiáticos e indianos que realizavam chamadas internacionais a preços duvidosos. Novamente o uso previsto é sobreposto ao contra-uso, ou seja, o negócio oficial ao qual foram destinados os quiosques entrava em bancarrota, e o ilegal, venda de drogas e chamadas telefônicas fraudulentas, prosperou rapidamente.
Vale à pena ressaltar que apesar dos vários contra-usos praticados na praça (venda e uso de drogas e chamadas ilegais), os comerciantes que ainda resistiam e moradores, em nota publicada em um periódico de 1999, apenas reclamavam da presença das gangues dos telemóveis, parecendo ignorar a prática da venda e uso de drogas, não citada na nota. Dessa maneira poderíamos dividir a localidade em dois grandes grupos, os imigrantes (africanos, indianos, asiáticos, brasileiros entre outros citados) e os nativos (portugueses moradores e vendedores da redondeza) em conflito na disputa pelo espaço. Divisão esta que se confirma ao analisarmos a localização e os proprietários dos três Snack-bars ainda existentes: no lado sul da praça ficava o snack-bars “Fava-rica”, sob direção de portugueses e tendo como clientela principal os turistas que vez ou outra, transitavam na praça a se refrescar em fontes existentes e tirar fotos; na outra ponta da praça, extremidade norte, os snack-bars “Quiosque Criola do Martim Moniz”, sob direção de africanos e clientela diversificada (indianos, africanos, ciganos) e outro controlado por Chineses, também com clientela diversificada. A autora ressalta ainda que, apesar da proximidade geográfica entre os dois quiosques e, dos grupos étnicos diversificados que compunha sua clientela, esses pedaços (snack-bars dos portugueses, africanos e chineses) configuravam “limites e fronteiras sociossimbólicas” (p. 314), ou seja, apesar da proximidade física, continuavam separados por fronteiras simbólicas.
Mais uma vez, por intervenção do Estado, além da retirada da maioria dos quiosques com intuito de dar maior circulação aos pedestres, e desabrigar os negócios ilegais (venda de droga e telefonia fraudulenta) foi estalado um circuito de vigilância eletrônica e contratados seguranças uniformizados, que transitavam diariamente na praça, outra tentativa de “domesticação do espaço” (p.312). No entanto, o clima de insegurança continuava, os pequenos furtos e as gangues dos telemóveis, apesar de em menor número, continuavam a compor o cotidiano da praça.
No sub-tópico, “Ritmos e comportamentos”, Menezes esboça o cotidiano da praça chegando a conclusão que a intensidade na frequencia e apropriação da Martim Moniz, coincide com o ritmo do comércio local, fim da manhã, ora do almoço e fim da tarde, a noite dois ( Fava-Rica e Quiosque Criola do Martim Moniz) os três quiosques ficavam abertos até por volta das 24h.
No tópico “As situações de protesto civil e de resistência”, demonstra como a praça vem se tornando emblemática no contexto de manifestações trabalhistas e de imigrantes, circunstância onde “pedaços”, “circuitos” e “trajetos” deixam de existir transformando o espaço, fragmentado em seu cotidiano, em um espaço de discussão a cerca dos problemas da desigualdade social e dos imigrantes ilegais. O que tem transformado a imagem da praça em espaço de luta e resistência por direitos civis. Daí o tópico “Entre uma geografia da resistência e uma etnografia da circunstância presente” voltado a demonstrar que “a par do controlo por parte do poder, existe uma geografia da resistência que se apropria da praça como um local de expressão civil e de oposição ao controlo estatal” (p. 319). Para tanto, propõe a recuperação das concepções de protesto-manifesto (apropriação do espaço por grupos marginais ou excluídos p. 319), protesto-latente (contestação do desenho e planejamento do espaço p. 320) e protesto-ritual (festas, carnavais, paradas e procissões p. 319) proposta por Low (2000b).
Concluo retomando a discussão proposta, mais não aprofundada por Menezes, a cerca das fronteiras sociosimbólicas. Ao delimitar os pedaços dos diversos grupos étnicos que compunha a paisagem social da Praça Martim Moniz, Marluci parece não considerar o fluxo existente de pessoas, idéias, valores, por essas fronteiras. Mas, o simples fato das gangues dos telemóveis, assim como, os snack-bars, terem uma clientela diversificada (africanos, indianos, portugueses, chineses entre outros) já não sugere um grau de interação, no mínimo econômica, entre esses grupos étnicos?
by Williams Souza Silva
sexta-feira, 5 de novembro de 2010
Resenha do livro Cultura de Consumo, de Featherstone
Mike Featherstone é professor de Sociologia e Comunicação pela Universidade de Nottingham Trent (Inglaterra) e editor do jornal Teoria, Cultura e Sociedade. É autor de vários livros que versam, principalmente, sobre os tópicos Globalização, Identidade, Pós- modernismo e Cultura de Consumo.
A respeito dos dois últimos temas mencionados, Featherstone (1995) escreveu uma de suas mais importantes obras intitulada Cultura de consumo e pós modernismo. Este livro organizado em nove capítulos (Moderno e pós moderno: definições e interpretações; Teorias da cultura de consumo; Por uma sociologia pós moderna; Mudança cultural e prática social; Estetização da vida cotidiana; Estilos de vida e cultura de consumo; Cultura de cidades e estilos de vida pós moderno; Cultura de consumo e desordem global; Cultura comum ou culturas comuns?) reúne ensaios, artigos e textos apresentados em conferências e seminários, escritos na década de 80, um período que segundo o autor marca o aumento do interesse de se teorizar a cultura, o que seria resultado da “onda” do pós-modernismo.
Seu livro não tem, contudo, a intenção de explicar o que é o pós- modernismo. Featherstone busca refletir a respeito dos motivos que levaram as ciências humanas de modo geral a se interessarem por tal assunto. Seu objetivo é entender como o pós- modernismo surgiu e como se transformou em uma imagem cultural tão influente e poderosa.
Nos capítulos que tratam sobre o pós- modernismo, o autor busca investigar como o sentido desse termo tem sido relacionado as mudanças culturais ocorridas nas experiências e práticas do cotidiano consideradas modernas. Também faz parte de sua proposta analisar os fenômenos associados ao uso dessa terminologia e apresentar questões a respeito da produção, transmissão e disseminação do conhecimento e da cultura.
Essa resenha dá atenção especial ao primeiro e segundo capítulos do livro. Neles, Featherstone apresenta os posicionamentos teóricos de autores das Ciências Sociais, no que se refere as definições do termo pós- moderno e as perspectivas vigentes a respeito da cultura de consumo. Tais capítulos situam a sua abordagem: entender as associações feitas entre cultura de consumo e pós- modernismo, traçadas por autores que trabalharam com ambos os temas, tais como Bell, Bauman e Baudrillard.
Segundo o próprio Featherstone seu interesse em pesquisar a cultura de consumo surgiu sob influência da escola de Frankfurt e da Teoria Critica, uma vez que suas conjeturas a respeito da indústria cultural davam atenção ao consumo e os processos de massificação cultural e não apenas aos modos de produção. Os escritos da Teoria Critica focalizavam o papel da mídia e da publicidade e os efeitos destas na formação de identidades e nas práticas do cotidiano.
Apesar de haverem muitas críticas a essa corrente de pensamento, sobretudo, por conta de sua perspectiva elitista, críticas estas que partiram principalmente de pós- modernistas, alguns pontos não chegaram a ser de fato superados. Featherstone está preocupado em entender a questão reflexiva que o estudo da cultura e do consumo apresenta: “como e por que escolhemos um quadro de referência e uma perspectiva de avaliação específicos? Como é que o estudo do consumo e da cultura – temas até recentemente designados como secundários, periféricos e femininos em oposição a centralidade atribuída a esfera de produção e a economia, mais masculinas – conquistou um lugar mais importante na análise das relações sociais e das representações culturais?” (FEATHERSTONE, 1995; pp.10)
Segundo o autor, compreender as relações negativas e positivas a respeito da cultura popular, de massa e de consumo e a relação desses posicionamentos e o pós- modernismo implica, antes de mais nada, em estar a par do que foi e tem sido escrito a respeito do mesmo (pós-modernismo). O termo moderno e suas derivações são definidos e interpretados no campo intelectual, acadêmico e artístico – música, artes, literatura, antropologia, sociologia, arquitetura, entre outros – de diferentes maneiras, que acabam se cruzando em algum momento. Reconhecendo a dificuldade de defini-los, o primeiro capítulo do livro sintetiza as idéias desenvolvidas por alguns autores dos campos mencionados, a respeito desse tema, o que é feito a partir das contraposições: modernidade/ pós- modernidade; modernização/ pós-modernização; modernismo/ pós- modernismo.
A palavra modernidade é comumente usada para indicar um conjunto especifico de características, refere-se a uma contraposição a ordem tradicional que segundo alguns autores da sociologia resultam em racionalização e diferenciação do mundo social. Enquanto que pós- modernidade é usada para indicar a transição de uma época para outra, interrupção da modernidade ou simplesmente uma mudança. No campo acadêmico e intelectual, segundo alguns críticos, representa uma estratégia para a modificação de antigas metodologias.
O modernismo, usado para abarcar as diferentes formas de cultura associadas ao processo de modernização, possui um sentido mais restrito, ligado em geral a estilos artísticos advindos da virada do século XIX. Tem como características básicas a reflexividade, autonomia, ênfase no sujeito desestruturado e desumanizado. O pós- modernismo é tomado, por sua vez, como o aprofundamento de uma tendência oposta ao modernismo, ou como uma lógica cultural.
Para a Sociologia, a modernização significa os efeitos do desenvolvimento econômico sobre as estruturas sociais e valores, ou uma etapa do desenvolvimento social em decorrência da industrialização. A pós- modernização aparece em alguns autores como uma ideologia e um conjunto de práticas que tem efeitos no espaço.
Após a exposição desse diferentes posicionamentos e interpretações Featherstone conclui que não existe um consenso a respeito do uso que se faz do termo pós-moderno e seus derivados. O que é certo é que seus significados que se misturam de maneira confusa, mas nos leva a pensar a respeito das mudanças ocorridas na cultura contemporânea com reflexo nos campos artístico, intelectual e acadêmico. Os debates atuais põem a cultura e as práticas cotidianas no centro das discussões e os pós- modernos são os que se interessam especialmente por essa discussão.
Na sequência o autor apresenta-nos três perspectivas da cultura de consumo. A primeira afirma que a cultura de consumo tem como premissa a expansão e produção de mercadorias que levam, conseqüentemente, ao acúmulo de cultura material. Segundo esse posicionamento a cultura depende das lógicas impostas pelo mercado.
Na segunda, as mercadorias são uma espécie de demarcadores das relações sociais. Aqui as formas de consumo constroem relações, ou seja, quando um produto é consumido de maneira semelhante tende a derrubar as fronteiras sociais, quando consumido de maneira diferente gera barreiras. Além disso, um mesmo produto trás dimensões simbólicas distintas, por exemplo, para uns o vinho serve apenas como bebida, para outros, terem uma garrafa específica na coleção é também uma maneira de consumir. Vários autores se mostram simpáticos a esse posicionamento. A terceira e última perspectiva apresenta o consumo como meio de satisfação de prazeres pessoais e realização de sonhos.
Featherstone encerra esse capítulo argumentando que o consumo não é apenas um derivado da produção e que por tal motivo, a sociologia deveria analisá-lo além da proposta herdada pela teoria da cultura de massas, que o coloca como algo negativo. Na cultura de consumo tanto persiste a economia de prestígio que classifica o status de seu portador, quanto há o uso imagens, signos e bens simbólicos que são geradores de sonhos e desejos.
Tomar o pós- modernismo como orientação serviu como uma maneira de demonstrar o lugar que este ocupa nas transformações que acontecem na esfera cultural. Featherstone acredita que independentemente do rumo histórico que este (o pós- modernismo) possa tomar os seus movimentos terão reflexos diretos na problematização das organizações culturais cotidianas.
By Daniela Moura Bezerra
sábado, 23 de outubro de 2010
SANSONE, Lívio. Três Visões sobre Cor e Raça no Brasil. Afro-Ásia, nº 32, 2005. pp. 307-314.
O texto aqui apresentado foi escrito a partir da resenha feita por Lívio Sansone de três livros lançados no começo dessa década sobre o tema das relações raciais no Brasil. Apesar dele inicialmente declarar que são obras distintas em suas perspectivas analise, admite ser os três livros detentores de uma mesma preocupação específica em relação aos mecanismos de dominação racial.
O primeiro livro comentado trata-se da obra escrita por Robin Sheriff com o titulo de Dreaming equality, lançado em 2001 e que segundo Sansone, traz suas experiências em campo durante o período em que viveu e pesquisou em uma favela carioca, sendo em sua opinião uma etnografia muito bem feita sobre a cidade do Rio de Janeiro. Busca mostrar como pessoas de diferentes cores e posição social falam sobre raça e diferença, explorando a linha entre cultura de cor e praticas racistas, e a forma pela qual as pessoas de classe “baixa” criam seus próprios discursos, subvertendo os discursos oficiais sobre o Brasil como uma nação intrinsecamente e distintivamente mestiça. Apesar de ter a autora negligenciado seguimento intermediários da população carioca em sua pesquisa para Sansone o seu livro é um convite a etnografia para qualquer pesquisador.
O segundo livro comentado trata-se da obra de Jonathan Warren Racial revolutions, lançado em 2001, para Sansone diferente de uma etnografia este livro vai em uma linha panfletaria contra o tratamento bárbaro do índio no Brasil. Sansone critica a forma como o autor utiliza as fontes, chamando atenção para a terminologia usada por Warren que freqüentemente não deixava as coisas muito claras para o leitor. A debilidade desse livro para Sansone reside na condição de que o autor habita a despreocupada fronteira entre o racial e o étnico. Segundo ele devemos ser cuidadosos porque raça e identidade são categorias discursivas as quais se deve sempre explicar em seu contexto, sendo a idéia central do livro uma contestação dos pressupostos do sistema brasileiro de relações raciais, baseado em uma combinação de intimidade e distância, miscigenação e racismo, e na negação da importância de qualquer política de identidade para os racialmente subalternos.
O terceiro livro comentado foi escrito por Sandra Graham, com o titulo de Caetana says no publicado em 2002, e segundo Sansone trata-se de uma micro-história bem escrita e documentada sobre dominação e negociação entre senhores e escravos na zona cafeeira de São Paulo. Para ele a idéia chave da obra é que mesmo em uma sociedade com uma divisão de pode radicalmente assimétrica, existiam mais escolhas do que poderíamos imaginar em todos os lados. Sansone finaliza sua analise do terceiro livro afirmando que o mesmo não é uma obra sobre antropologia propriamente, mas que antropólogos deveriam ler, pela investigação minuciosa e busca incessante pelo esgotamento das fontes pesquisadas pelo autor.
sexta-feira, 15 de outubro de 2010
'O insulto racial: as ofensas verbais registradas em queixas crimes' de Antônio Sérgio Alfredo Guimarães
Trazendo mais uma contribuição para esse bloco de textos do GERTS que discute com mais profundidade as questões étnicos/raciais e os processos identitários, o presente texto pretende nos ajudar a compreender como por meio de queixas crimes registradas de injúrias raciais podemos percebe o processo das construções de uma identidade estigmatizada.
Antônio Sérgio Alfredo Guimarães traz em seu texto ‘O insulto racial: as ofensas verbais registradas em queixas crimes” uma discussão tão pertinente para os estudiosos de raça, etnicidade e identidade. Pois, o objetivo do autor no presente artigo é investigar como a partir o insulto racial em si, pode – se perrcener um elemento na construção de uma identidade social estigmatizada.
A pretensão assim, é entender sociologicamente o insulto racial e a identidade construída por meio do estigma. Guimarães afirma que o insulto caracteriza – se como uma violação de uma norma social muito significante, para além, aqui no Brasil temos o Código Penal na sua lei 9.459 o amparo legal do que pode ocorrer se um individuo insultar o outro, portanto, o insulto além de ser uma aplicativo da norma social, tem um caráter legal bem definido, para mais tem também função de emergir e reafirmar estigmas. E tanto o é, que é a partir das queixas registradas que o autor consegue fazer a analise necessária no sentido de entender o fenômeno da injúria como sendo um recurso para entender a construção identitária estigmatizada de um grupo social e, mais do que isso as demarcações sociais dos grupos sociais e raciais brasileiros.
Partindo dessas afirmações, podemos considerar que a injúria racial é utilizada como um recurso de demarcação/hierarquia social/racial, e que de tal forma tornou – se um aparelho na construção da identidade, principalmente por meio dos estigmas que os insultos trazem quando externalizados frente às identidades sociais. Para mais, o autor categoriza os tipos de insulto, considerando que existem injúrias sintéticas que são acionadas num sentido de trazer em si toda uma constelação de estigmas referentes a um grupo social ou racial (exemplo de termo injurioso que caracteriza – se dessa forma: ‘preto’ e ‘negro’) e outras injúrias que servem como ratificadoras da injúria sintética.
O autor faz essa ressalva, pois, para ele, o termo sintético é tão abrangente que precisa ser aglutinados a insultos que reafirmem o lugar do insultado, exemplificando a questão aglutina- se ao termo sintético o lugar de pertença do insultado, como também a sua classe social, religiosidade, local de moradia (exemplo: ‘preto favelado’). Segundo o autor o insulto tem por característica também ser acionado para causar o conflito ou como um dispositivo que ocorre durante o conflito e, essa observação torna – se relevante no sentido que para ele o espaço e a ordem aonde o insulto é acionado é de extrema importância na analise, pois, dessa forma pode – se perceber como os espaços são demarcados, e mais ainda por quem são demarcados socialmente. Essa afirmação comprova – se quando o autor chega à conclusão que o espaço aonde ocorre há maior incidência de insultos raciais é o local de trabalho, espaço esse entendido como um local de disputa e conflito.
Observar – se assim, que para alguns setores da sociedade existem espaços que são demarcados não só a partir da classe social do individuo como também do seu pertencimento étnico e racial. Dessa forma, Guimarães aponta uma discussão que através do campo aonde encontram – se a identidade, a pertença e a etnicidade os espaços são demarcados a partir do conflito e da disputa externalizada por meio da injúria racial.
Outro dado interessante apontado por Guimarães é o do gênero, em sua pesquisa ele observou que boa parte dos insultos foram proferidos a mulheres. Com mais esse recorte, Guimarães apresenta mais uma reflexão a partir da injúria racial que é a do gênero em consonância com a raça, apontando assim, um tipo de dupla demarcação externalizada novamente pela injúria racial.
Para mais, o autor conclui que o insulto tem a função de ‘de ensinar a vítima seu lugar’, acredita – se assim, e de forma muito lúcida, que dentro do universo do insultante e do insultado os lugares que são demarcados não podem e não devem ser descentrados, pois num processo sócio – cultural esses espaços estão assegurados de alguma forma para algumas camadas sociais e raciais da sociedade brasileira.
Percebe – se assim, que o insulto é mais um recurso utilizado por alguns setores no sentido de reivindicar um não deslocamento social, e muito menos racial de um grupo, o insulto se apresenta como uma verbalização da inconformidade de alguns setores que se acham ofendidos e invadidos em espaços bem demarcados por novos grupos sociais e raciais que de alguma forma estão num mesmo tipo de paridade profissional, residencial, escolar.
Ou seja, o insulto racial apresenta – se como um instrumento de institucionalização de um inferior racial, pois, a atribuição de inferioridade consiste na marcação sintética como a cor, e as qualidades e propriedades negativas, pois bem, nota – se assim, que as propriedades negativas estão centradas num bojo aonde tanto insultante como o insultado consideram ruins ou impróprias, para além, percebe – se também como existem estereótipos e estigmas que são considerados ‘válidos’ tanto pelo insultante, como pelo insultado e como também pela autoridade policial.
Conclui – se assim, a partir da reflexão de Guimarães que a posição de inferioridade do negro também é reforçada através de insultos/injúrias raciais, que nada mais são que humilhações públicas, e que esses posicionamentos apresentam como alguns espaços são demarcados socialmente e racialmente, e como os insultos ganham a função de reivindicação virulenta desses espaços em prol de um só grupo social e racial.
terça-feira, 12 de outubro de 2010
Entre Campos: Nações, Cultura e o Fascínio da Raça.
Paul Gilroy nasceu em Londres, em 1956. É o primeiro titular da Anthony Giddens Professorship in Social Theory na London School of Economics (LSE). No seu percurso intelectual multidisciplinar tem-se interessado por literatura, arte, música, história da cultura e ciências sociais. Seu trabalho é conhecido em áreas como o racismo, nacionalismo e etnicidade, bem como sua abordagem inovadora da história da diáspora africana no hemisfério ocidental. Doutorou-se no Center for Contemponary Cultural Studies da Universidade de Birmingham. Lecionou no Goldsmith College, em Yale e tem trabalhado como curador convidado na Tate Galery e na Casa das Culturas do Mundo em Berlim. Tem lecionado em universidades de todo o mundo e suas obras estão traduzidas em francês, italiano, português, espanhol, alemão, entre outras.
Partindo do conjunto de modificações que o conceito “raça” passou em diversas etapas ao longo da história, o autor nos leva a uma reflexão no processo de sua construção, e como hoje isso se apresenta na mídia e mercado.
O discurso racial como parte de uma identidade envolve uma série de questões que vão além de questões biológicas como o DNA. Esse discurso adotado nos séculos XIII e XIX tem sido mudado para uma visão pós- racial. Seguindo autores como Fanon, Martin Luther King Jr, entre outros. Gilroy nos aponta para um novo humanismo para repensar a História.
Sua proposta ambiciosa de que abandonemos o conceito de raça esbarra no conflito dual entre povos que se consideram superior por esse critério, e entre povos que se consideram injustiçados pelo mesmo, e o consideram importante no processo de reparação histórica, por todo contexto de colonialismo, escravidão racial, e discriminação do negro. Assim, “raça” torna-se um “elemento fissurável”, e seu principal objetivo é libertar a humanidade de suas limitações preconceituosas de ambos os lados.
Gilroy também mostra “raça” como status na percepção do corpo humano. A manipulação do material genético, como revolução biotecnológica suscita status comercial, “glamour”, e padrões de beleza, apresentados pelo mercado global, emergindo o multiculturalismo, ou seja, o corpo se mostra por um conjunto de valores como idade, gênero, religião, e vão além de sua composição como grupos raciais.
No texto, o autor destaca o período Nazista, como a “raça” a servir a fins militares e autoritários e nacionalistas no século XX, como o período mais horrível na história da humanidade, e que rompeu todos os limites éticos e morais, causando o que ele caracteriza como “catástrofe raciológica”, causando uma transgressão cultural aos princípios básicos dos direitos humanos. Nesses termos, a “raça” é tomada por noções de ideologias ultranacionalistas e termos de biopolítica.
Atualmente, precisamos entender a “raça” por contextos antropológicos, geográficos, e filosóficos, ou seja, a partir da construção das ciências humanas modernas.
No contexto filosófico, o Iluminismo reforçou a separação das raças, amparado pela filosofia Kantiana com suas considerações sobre o “Pensamento do Belo e do Sublime”, onde ele subestima a capacidade intelectual dos negros da África com relação ao branco. Na verdade, ele aponta implicitamente os projetos imperiais europeus, como forma de dominação dos demais povos, e é daí sua posição contra a mistura racial.
No período posterior à abolição da escravidão é necessário uma visão pós-iluminista para efetivar a justiça. Fanon nos aponta para um universalismo anticolonial e não-racial como contribuição com as construções políticas modernas.
O que significa que devemos passar do conceito de modernidade para pós-modernidade como uma nova compreensão de raciologia como um processo político e econômico, como forma de romper essas disputas metodológicas presentes de ambos os lados. O conceito de multiculturalismo nos traz um novo projeto ético como resposta aos problemas patológicos do “racismo genômico”.
Atualmente, a identidade pode ser também entendida como algo a ser possuído, ela carrega um status para seus membros, que reforça a coletividade entre eles. Mas, seu conceito pode ser distorcido devido às transformações dos meios sociais e da tecnologia. Desse modo, o uso da palavra diáspora oferece uma melhor compreensão da cultura como algo que deixa de ser enraizado e passa a evidenciar uma dinâmica de sentido transcultural.
Assim, o autor apresenta a relevância do conceito de diáspora como alternativa a “raça”. Um exemplo interessante que ele cita é o caso de Bob Marley. Ele representa a identidade diaspórica pós-moderna.Sua música difundiu a cultura de seu etiopianismo militante e como porta-voz da liberdade do povo negro, porém seus ideais foram distorcidos por uma multiplicidade de sentidos, como estruturas adaptáveis de marketing de mercado, como elemento da rebeldia e transgressão, ou como puro e benigno. O estudo da figura de Bob Marley é algo que permite uma análise do sentido de identidade como que tendo um caráter multicultural, adaptável à globalização.
By Alessandra Souza.
segunda-feira, 20 de setembro de 2010
Potogee: ser português na Trinidad - Miguel Vale de Almeida
No que concerne aos objetivos aqui encerrados, do vasto material atribuído ao autor, tive contato com um capítulo intitulado “Potogee: ser português na Trinidad”, presente no livro “Um mar da cor da terra” (Celta, Oeiras, 2000). Vamos ao ponto.
Para o autor, interessado na construção das ideias de raça e etnicidade em contextos pós-coloniais multiétnicos, “a Trinidad surgia como um terreno não turístico e complexo do ponto de vista da variedade de grupos étnicos e raciais”(p. 1). Primeiro, veio a conquista espanhola (Colombo, 1498). Antes de sua independência em 1962 ainda passaram por lá africanos, ingleses e holandeses. Acrescente-se uma grande leva de asiáticos no séc. XIX (indianos e chineses) e portugueses dos Açores envolvidos em querelas religiosas. É a partir de uma análise dessa colcha de retalhos caribenha que Miguel Vale de Almeida irá tecer considerações teóricas importantes acerca de etnicidade e raça, poder, diferenciação e identidade pessoal.
Quando chegou à ilha de Trindade, em 1994, o autor estabeleceu contato com a pesquisadora de ascendência portuguesa Jo-Anne Ferreira. O trabalho da mesma referia-se a uma análise da minoria étnica portuguesa na ilha de Trindade. “Ferreira defende uma visão histórica de grupo étnico contra uma visão de auto-identificação, visão esta que informa toda a sua pesquisa.” (p. 5)Em Trinidad, os portugueses não são considerados nem brancos nem negros, são classificados de acordo com um vasto corpus de categorias possíveis referentes à raça e ocupam funções sociais associadas a uma classe intermediária. Foi através do aprofundamento da relação social com Jo-Anne, conhecendo sua família e amigos, todos atores daquele espaço característico a que se propunha compreender, que o autor pôde enxergar “as nuances dos processos de identificação e diferenciação étnica e racial” (p. 8). O resultado de séculos de condição colonial – e algumas décadas pós-coloniais – marcados pela assimilação de diversos grupos etnicamente auto-indentificados como distintos é uma sociedade hegemonicamente construída a partir de categorizações arbitrárias de raça e etnia refletidas nas funções sociais desempenhadas pelos atores. Embora as pessoas (como os familiares de Jo-Anne) possuam plenas condições culturais de interpretar histórica e sociologicamente “uma sociedade que nasceu da escravatura e do sistema de classes com assento na raça” (p. 8), estão sujeitas ao fato de que “a origem étnica e racial é da ordem da hegemonia na Trinidad: é o grande modelo de referência para pensar e mapear as identidades sociais e é no seu seio e através da disputa semântica em torno dos seus referentes que se dá a luta por emancipações várias e mudanças de significados” (p. 9). Em Trinidad, a “tez da pele, a raça, a origem étnica, a religião, são o centro das conversas, das disputas, das alianças, até da vida política nacional e das produções culturais expressivas, da música ao grande ritual do Carnaval” (p. 9). Então observamos que esse processo de objetivação da origem étnica (que determina funções sociais e categorias generalizantes, quase sempre pejorativas, em relação a portugueses, negros, indianos) e o fato de uma mão-de-obra pós-escravista, juntos, ajudam a compreender a constituição da formação da identidade étnica na ilha de Trindade. O autor ainda observa que, ao lado de uma ideia predominante sobre o sincretismo da sociedade de Trinidad, encontra-se o paradoxo da fidelidade étnica. Esta concepção encontra paralelo em Wilmsem, o qual, segundo o autor, “desloca o centro do argumento para o fato de que a etnicidade surge no exercício do poder. Assim, têm sempre de coexistir várias etnicidades para que haja etnicidade, e os grupos dominantes não são nunca etnicidades, pois detêm eles o controle definicional hierarquizante.” (p. 16) Obervamos que o acesso a recursos e meios de produção é ulterior à “consciência étnica” e que o conceito de etnicidade, na prática, pode ser utilizado por grupos de forma política e marginalizante. Uma teoria sobre a etnicidade que leve em conta tais variantes está mais próxima, segundo o autor, de dar conta da análise da “mudança social”. Etnicidade estando ligada a “condições objetivas de desigualdade na arena do poder social”, enquanto a identidade “refere-se à classificação subjetiva num palco de prática social” (p. 16) Então, a etnicidade é uma circunstância e a identidade um “estado existencial”? Segundo Miguel Vale de Almeida, mais que representação de uma circunstância, a etnicidade deve levar ao questionamento dos critérios utilizados pelos grupos que tomam definições, enquanto a identidade, antes de um aspecto da existência, apresenta caráter ativo e performativo.
Antes de finalizar o capítulo, o autor faz certas considerações, alertando para os usos de palavras como multiculturalismo, pós-modernidade e globalização, fluxos, fronteiras, e, ainda, comentando a perspectiva radical nos estudos que relacionam cultura e poder. Para o autor, na análise de uma construção social multiétnica pós-moderna faz-se necessário levar em consideração as relações de poder, mas elas precisam ser analisadas à luz dos empreendimentos políticos coletivos e, ainda, levar em consideração a subjetividade que consta nos estilos e projetos de vida individuais.
quinta-feira, 16 de setembro de 2010
Sobre a autoridade etnográfica
Resenha de Eduardo Lopes Teles
James Clifford é professor do Programa de História da Consciência na Universidade da Califórnia, em Santa Cruz (EUA). Em sua obra, sempre versando sobre antropologia e modernidade, encontramos Person and myth: Maurice Leenhardt and the melanesian World (1982), The predicament of culture: twentieth-century ethnography, literature and art (1988), Routes: travel and translation in the late twentieth century (1997). Como o próprio autor destaca, em entrevista concedida a José Reginaldo dos Santos Gonçalves, sua obra sofre grande influência de Raymond Williams, principalmente do livro Cultura e Sociedade, em que ele historiciza a idéia de Cultura nas “versões mais literárias e humanistas”. A partir desse caminho aberto por Williams, Clifford vai ver novo horizonte ser trilhado e propor historicizar a cultura no sentido antropológico ou etnográfico (CLIFFORD, 1998, p.253-4).
No primeiro artigo, Sobre a autoridade etnográfica, Clifford demonstra como se foi construindo historicamente a noção de autoridade etnográfica, ou seja, o modo como o autor se coloca presente no texto, como ele legitima um discurso sobre a realidade. Trata-se do famoso “Eu estive lá”, que dá provas de que o que pesquisador viu existe, do que o que ele diz é verdadeiro. Nesse sentido, Malinovski, principalmente com o seu Os Argonautas do Pacífico Ocidental repleto de fotografias é o divisor de águas. Antes dele, “o etnógrafo e o antropólogo, aquele que descrevia os costumes e aquele que era construtor de teorias gerais sobre a humanidade, eram personagens distintos. (Uma percepção clara da tensão entre etnografia e antropologia é importante para que se perceba corretamente a união recente, e talvez temporária, dos dois projetos)” (CLIFFORD, 1998, p.26). Após Malinowski, ou mais precisamente de 1900 a 1960, assistimos cada vez mais a profissionalização e academicização do trabalho de campo, que se torna hegemônico. Por outro lado, a etnografia passou a encenar estratégias específicas de autoridade, onde o autor tentava traduzir para o leitor a sua experiência em texto. Pergunta-se Clifford: “Se a etnografia produz interpretações culturais através de intensas experiências de pesquisa, como uma experiência incontrolável se transforma num relato escrito e legítimo?” (CLIFFORD, 1998, p.21). A resposta talvez possa ser encontrada na criação, onde Malinowski foi grande contribuinte, de “um novo teórico pesquisador de campo que desenvolveu um novo e poderoso gênero científico e literário, a etnografia, uma descrição baseada na observação participante” (CLIFFORD, 1998, p.27).
Para que esses modos de autoridade etnográfica se firmassem, eram necessárias, no entanto, algumas inovações institucionais e metodológicas. Clifford cita, em primeiro lugar, a legitimação do pesquisador de campo profissional, de padrões normativos de pesquisa, de sofisticação científica e da simpatia relativista. Outra questão importante era o domínio da língua nativa, ou apenas a utilização de termos lingüísticos nativos pelo pesquisador na etnografia, onde o domínio da língua não era crucial. Em terceiro lugar, como se uma cultura pudesse ser apreendida apenas pelo que vê o observador treinado, dava-se ênfase ao poder de observação. “Como uma tendência geral, o observador-participante emergiu como uma norma de pesquisa. Por certo o trabalho de campo bem-sucedido mobilizava a mais completa variedade de interações, mas uma distinta primazia era dada ao visual: a interpretação dependia da descrição” (CLIFFORD, 1998, p.29). Também se buscava aliar a descrição à teoria, como forma de “chegar ao cerne” de uma cultura mais rapidamente. Assim, a pretensão era que a etnografia estivesse mais para abstrações teóricas do que para inventários exaustivos de costumes e crenças. Em quinto lugar, como a idéia de que a cultura era um todo complexo, achava-se que o entendimento poderia ser obtido através do estudo exaustivo de uma das partes desse todo. Por isso, se privilegiavam as análises sobre instituições específicas da cultura por parte do pesquisador. Por fim, havia uma preferência pelos aspectos sincrônicos na análise, devido ao curto tempo de duração da pesquisa, onde muitos estudos acabavam perdendo de vista a dinamicidade da cultura.
Em seguida, James Clifford focaliza em seu texto os modos de autoridade: o experiencial, o interpretativo, o dialógico e o polifônico. O modelo clássico de modo de autoridade seria o experiencial, que é exemplificado com Malinwski, onde se tenta comprovar o “Eu estive lá”. Também se tenta mostrar que uma experiência de campo foi produtiva envolvendo “o leitor na complexa subjetividade da observação participante”, ou então, unindo “o leitor e o nativo numa participação textual” (CLIFFORD, 1998, p.32). Sendo assim, há um processo que cria a idéia de que o etnógrafo possui uma “sensibilidade para o estrangeiro” e da etnografia como portadora de uma verdade, mas que, ao mesmo tempo podia ser encarada como mistificação. No fundo mesmo, a experiência do etnógrafo não pode ser traduzida. “Os sentidos se juntam para legitimar o sentimento ou a intuição real, ainda que inexprimível, do etnógrafo a respeito do “seu povo” (CLIFFORD, 1998, p.38).
Sobre o modo de autoridade interpretativo, a crítica principal recai no entendimento de que se possa ver a cultura como um conjunto de textos, “‘a textualização’ é entendida como pré-requisito para a interpretação”. Aqui, o discurso se transforma num texto (CLIFFORD, 1998, p.39). Porém, para o autor, não há como você trazer um discurso para ser interpretado tal qual um texto é lido. “A interpretação não é uma interlocução. Ela não depende de estar na presença de alguém que fala” (CLIFFORD, 1998, p.40). Por conseguinte, Clifford destaca que, “em última análise, o etnógrafo sempre vai embora, levando com ele textos para posterior interpretação”, pois “o texto, diferentemente do discurso, pode viajar. Se muito da escrita etnográfica é feita no campo, a real elaboração de uma etnografia é feita em outro lugar” (CLIFFORD, 1998, p.40-41). Os textos são então desligados de seu contexto de produção e realocados ficcionalmente num contexto englobante, onde os autores do evento (um ritual, uma festa, por exemplo) separam-se de sua produção para dar lugar ao etnógrafo, entendido agora como uma espécie de intérprete literário.
Atualmente esses dois modos de autoridade, o experiencial e o interpretativo, estão cedendo lugar ao dialógico e ao polifônico. O modo de autoridade dialógico entende a etnografia como resultado de “uma negociação construtiva envolvendo pelo menos dois, e muitas vezes mais sujeitos conscientes e politicamente significativos” (CLIFFORD, 1998, p.43). Já o modo de autoridade polifônico, que rompe com as etnografias que pretendem conter uma única voz, geralmente a do etnógrafo, propõe a “produção colaborativa do conhecimento etnográfico, citar informantes extensa e regularmente” (CLIFFORD, 1998, p.54). Desse modo, o autor nota que uma “realidade cultural” acaba sendo inventada através de um processo textual, já que o etnógrafo precisa torná-la inteligível para o leitor, que acha estranha essa “realidade cultural”. Contudo, Clifford vê que a antropologia moderna tenta por os informantes nativos como construtores ativos dessa realidade, quebrando o poder absoluto do etnógrafo baseada na sua observação pessoal. As múltiplas vozes presentes na etnografia, que se queria esconder, agora se quer descobrir.
Por fim, em Sobre a autoridade etnográfica, James Clifford se distancia do entendimento canônico problematizando a questão do que seja a etnografia. Nesse sentido, releva os “processos criativos (e, num sentido amplo, poéticos) pelos quais os objetos culturais são inventados e tratados como significativos” (CLIFFORD, 1998, p.39) e, ao mesmo tempo, mostra que a coerência que se busca na etnografia, tal qual um texto literário “depende menos das intenções pretendidas do autor do que da atividade criativa de um leitor” (CLIFFORD, 1998, p.57).
Por Eduardo para o GERTS
sexta-feira, 10 de setembro de 2010
“LA DIFFÉRANCE” DE JACQUES DERRIDA
DERRIDA, J [1968]. La Différance. Disponível em:
BOTÍA, A. B. Jacques Derrida. Disponível em:
Jacques Derrida (El Biar, Argélia, 15 de agosto de 1930 – Paris, 8 de outubro de 2004), foi um pensador e escritor francês de origem argelina, conhecido principalmente como o criador da desconstrução. Seus trabalhos, (freqüentemente associados ao pós-estruturalismo e ao pós-modernismo), tiveram um impacto profundo sobre a teoria da literatura e os estudos literários de um modo geral.
Sua obra não se apresenta como algo terminado, sistemático ou ordenado. Sua escrita é fragmentaria, posicionando-se no limite da filosofia, pretendendo desconstruí-la. Seus primeiros livros trataram sobre fenomenologia (introdução A origem da geometria de Husserl, 1962 e a Voz e o Fenômeno, 1967, um estudo sobre o signo em Husserl, no qual mostra que a voz- portadora de um sentido ideal- possui uma prioridade sobre o fenômeno); comentários críticos às obras de Levinas, Foucault, Hegel, Lévi-Strauss, Freud e Rousseau, coligidos em seu livro A escritura e a diferença (1967); ao mesmo tempo, por estes anos, desenvolveu sua principal tese: nova concepção da escrita (não substituída pela palavra falada) como meio de se opor ao logo centrismo, sendo sua obra mais importante nesta linha Da Gramatologia (1967).
Na conferência La Différance, pronunciada na Sociedade Francesa de Filosofia em 27 de janeiro de 1968, Derrida realizou uma análise semântica da différance. O autor propõe o uso do termo différance escrito com a no lugar de e, formado a partir do particípio presente do verbo diferir. A diferença entre a escrita da différance (com a no lugar do e) é puramente gráfica, se escreve ou se lê, porém não se ouve, outorgando um privilégio ao grafismo sobre o fonologismo na construção do sentido.
A différance, que para Derrida, não é uma palavra nem um conceito, pode possuir, entre outros significados, o de não ser idêntico, distinto, ser outro, discernível. Esta diferença, no sentido de diferir, tratada como questão de alteridade, de dessemelhança, de antipatia e de polêmica, produz-se entre os elementos ativa e dinamicamente, e com persistência na repetição, intervalo, distância, espaçamento.
Diferir ainda possui o sentido de atraso, a ação de deixar para mais tarde, de ter em conta o tempo e as forças em uma operação que implica um cálculo econômico, um desvio, uma demora, um atraso, uma reserva, uma representação, conceitos que se resumem a “temporização”.
Diferir no sentido de contemporizar é, para Derrida, recorrer, consciente ou inconscientemente a mediação temporal e contemporizadora de um desvio que suspenda a execução ou a satisfação do desejo ou da vontade, efetuando-o também num modo que anula ou modera o efeito. Esta temporização é também temporalização e espaçamento, fazer tempo do espaço e espaço do tempo, constituição originária do tempo e do espaço.
Espaciar temporalizando cria todo o sentido, qualquer dicotomia (subjetividade/objetividade, sensível/inteligível) nos é apresentada como o efeito da différance, é a raiz comum de todas as oposições, pelo que podemos falar que a différance produz todo tipo de diferenças.
As diferenças geradoras de sentido se materializam quando inscritas em cada elemento da língua mediante um traço, que remete a outros elementos da cadeia. Por meio desta estrutura de remissão todo elemento funciona, tem sentido ou significa, remetendo a outro elemento passado ou posterior. Assim, o traço se constitui no texto, sem que este necessite de algo que o explique ou justifique de modo transcendente.
A différance seria ainda a causalidade constituinte, o processo de ruptura e de divisão cujos elementos diferentes seriam os produtos ou efeitos constituídos. Ela não denota passividade ou atividade, recordando algo como a voz média, não implicando numa operação que se pense como passividade nem como a ação de um sujeito sobre um objeto, nem a partir de um agente nem de um paciente, nem a partir nem a vista de qualquer um dos termos.
Derrida tem nas reflexões semiológicas de Saussure uma das principais fontes para seu pensamento sobre a diferença. Saussure sublinhou o caráter arbitrário e diferencial do signo na linguagem. Os elementos da significação funcionam pela rede de oposições que os distinguem e os relacionam uns aos outros. Neste sentido, apesar das críticas que formula a determinadas proposições saussureanas, Derrida colocará a diferença como a origem produtora de todo o sentido, e todo o processo de significação como um jogo formal de diferenças.
Para o autor, a filosofia vive na e de differánce, tratando do mesmo que não é o idêntico. Este mesmo é a differánce como passo desviado e equívoco de um diferente do outro, de um termo da oposição ao outro. A filosofia opera com duplas em oposição, onde cada um aparece como differánce do outro, como o outro diferido na economia do mesmo, o inteligível como diferindo do sensível, como sensível diferido; o conceito como intuição diferida-diferente; a cultura como natureza diferida-diferente.
Baseando suas reflexões nas idéias de Nietzsche, Derrida compreende que a differánce é esta discórdia “ativa”, em movimento, de forças diferentes e de diferenças de forças que ele opõe a todo sistema da gramática metafísica em todas as partes onde governa a cultura, a filosofia e a ciência.
As idéias de Heidegger acerca das diferenças entre o ser e o ente são traço marcante no pensamento derridariano. Assim, Derrida destaca que a diferença entre o ser e o ente tem desaparecido sem deixar marca, traços. O traço mesmo da diferença se tem perdido, a marca em si mesma nunca pode manifestar-se como tal.
Pelo estilo denso de escrita, pela complexidade dos referenciais teóricos e debates que estabelece com vários pensadores, La Différance é um texto cuja leitura não é indicada a um público não acadêmico, sendo produtiva para pesquisadores que trabalham com questões de alteridade, identidade e relações interétnicas.
Portanto, La Différance de Jacques Derrida, texto muito rico como contribuição teórica, constrói importantes reflexões sobre a constituição semântica do termo différance que, em seus aspectos gerais, transmite uma mensagem fundamental: a importância de vivermos juntos, de maneira harmoniosa, na diferença.
Por Diogo Monteiro.
10 set. 2010.
sexta-feira, 3 de setembro de 2010
Identidade étnica, identificação e manipulação
Roberto Cardoso de Oliveira, pós-doutorado pela Harvard University (1972), doutorado em Sociologia (1966) e graduado em Filosofia (1953) pela Universidade de São Paulo. Foi professor em várias universidades, pesquisou nas áreas de epistemologia da Antropologia, identidade, etnicidade e cidadania. Foi autor e organizador de vários livros, entre eles: “O Trabalho do Antropólogo”; “Nacionalidade e Etnicidade em Fronteiras”; “Sobre o Pensamento Antropológico” e “Identidade, Etnia e Estrutura Social”.
Neste capítulo, escrito nos anos 70, o autor objetiva discutir o conceito de identidade étnica, descrever algumas modalidades de sua constituição, possibilidades de sua explicação e manipulação. O contato interétnico, diz Oliveira, é um dos fenômenos mais comuns na contemporaneidade, pois parte das relações entre indivíduos e grupos distintos, sejam nacionais, transnacionais, raciais ou culturais. Esse contato deu um grande boom graças ao processo de globalização, diminuindo e expandindo, ao mesmo tempo, o mundo de hoje.
O conceito de grupo étnico deve ser concebido como um “tipo de organização social” que possui características de auto-atribuição e atribuição por outros com propósitos de interação que se relaciona diretamente a identidade étnica. Um grupo étnico agrega uma população que partilha uma cultura comum. Os indivíduos ou os grupos étnicos têm sido classificados a partir de seus traços culturais particulares que são visíveis. As diferenças passam a ser agora entre culturas, não entre organizações étnicas que podem ser relacionadas como um conjunto de traços culturais, os quais conduzem as análises sobre as formas culturais manifestas. Essa definição de grupo étnico designa uma população que:
a) “se perpetua principalmente por meios biológicos”;
b) “compartilha de valores culturais fundamentais, posto em prática em formas culturais num todo explícito”;
c) “compõe um campo de comunicação e interação”;
d) “tem um grupo de membros que se identifica e é identificado por outros como constituinte de uma categoria distinguível de outras categorias da mesma ordem” (Barth, 1969, p. 10-11). Para Oliveira, a identificação étnica se dá quando uma pessoa sugestiona o uso de termos raciais, nacionais ou religiosos para se identificar e ao mesmo tempo aos outros comuns como uma noção de grupo.
É importante frisar que é no nível coletivo ou social que a identidade se edifica e se realiza. Já a sua expressão étnica, os mecanismos de identificação são fundamentais, porque eles refletem a identidade em processo assumido por indivíduos ou grupos em diferentes situações concretas. Em todos os âmbitos a identidade possui um conteúdo marcadamente reflexivo e/ou comunicativo que supõe um código (signos) de categorias a fim de orientar e desenvolver as relações sociais como um sistema de oposições ou contrastes. A identidade étnica é um meio de diferenciação em relação a algum indivíduo ou grupo que se confrontam e se afirmam negando ou aceitando a outra identidade visualizada.
Percebe-se que a identidade étnica emerge ou é ativada em situações particulares, principalmente de conflito. Nas relações interétnicas em conjunto com a dinâmica de fricção interétnica, as relações sociais se dão em termos de dominação e sujeição do indivíduo em relação ao grupo étnico pertencente como se verá nos exemplos a seguir: (I) “A Identidade em contextos intertribais” e (II) “A identificação no confronto com os brancos”:
(I) De uma coisa já sabemos, que a identidade contrastiva e o sistema de referência ideológico são formas de atualizar a identidade étnica. Por exemplo, em regiões interculturais como o alto Xingu, diferentes grupos indígenas, em interação, afirmam suas respectivas identidades por meio de um sistema de referência ou de categorias construídas como uma ideologia de relações intertribais, principalmente em relação aos de “fora”. Nessa região, os matrimônios entre os indivíduos dos diferentes grupos sociais produziram um sistema de relações sociais em termos do qual um indivíduo sempre terá alternativas para sua identificação tribal, seja cumprindo a regra da patrilateralidade, quer invocando a matrilateralidade. Como regra secundária, um indivíduo também poderá invocar seu conhecimento da língua e o lugar de nascimento como indicador de pertinência histórica. Infelizmente em regiões onde a colonização foi mais intensa, como a do Chaco, às margens ocidentais do rio Paraguai, território brasileiro, não permitiu que sobrevivessem nos dias de hoje sistemas de relações intertribais que nem a do alto Xingu e do Rio Negro. Mas alguns fenômenos podem ser observados e entendidos através da concepção das identidades étnicas (ou tribais). Aqui Oliveira faz menção à manipulação de identidades feitas por um koixomunetí (médico-feiticeiro) da aldeia Terêna denominada Cachoeirinha. É a história do índio F.S, filho de pai Layâna e mãe Terêna, ambos, subgrupo Guaná (estes se fundiram com diversos outros grupos, remanescendo com maior intensidade, a etnia Terêna). Este koixomunetí afamado em ambas as aldeias joga com suas “identidades virtuais” dependendo das circunstâncias e das pessoas com quem interage. Outra forma de identificação em contextos intertribais, é a chamada “identidade histórica” aqui mencionada os Kinikináu que por ser um grupo minoritário e estigmatizado, para efeito de competição contrastam sua identidade com os seus vizinhos Terêna. Ela emerge sempre quando se pretende marcar seus direitos sobre a terra. Entretanto, pode ser renunciada dependendo das circunstâncias, mas que a qualquer momento pode ser invocada, atualizada. Os Kinikináu na falta de um grupo étnico de referência apelam à sua historcidade para se representarem como categoria étnica num sistema ideológico determinado.
(II) As relações interétnicas não se dão apenas em sistemas de interações intertribais, dão-se também em situações de contato entre índios e brancos e status sociais, sendo que esta relação é sempre de dominação e sujeição. Tais fenômenos se manifestam em conformidade com a diversidade das situações de contato. As relações interétnicas envolvem etnias de escalas diversas. Dentre os casos que mais afetam e desagregam os grupos indígenas em contato com a sociedade nacional, estariam às crianças que despertam desde cedo uma identidade negativa que se prolonga até a maturidade. O autor relata um caso de manipulação de identidades entre índios e brancos a partir de terras de reservas indígenas onde habitavam não índios - arrendatários de terras. O caso é a respeito de um mestiço residente na aldeia Mariuaçu, dentro da reserva supervisionada pelo “Posto Indígena Ticunas”. O grupo familiar em foco preocupava-se em identificar seus membros mais jovens, filho de um mestiço (de pai branco e mãe Tukúna) e de uma Tukúna. Dentro dos princípios estruturais da etnia Tukúna essas crianças jamais poderia ser identificados como membros desta etnia, posto que esta se recebe pela linha paterna. O avô das crianças, sogro do mestiço, percebendo que a não incorporação dos seus netos na comunidade Tukúna constituía uma ameaça para eles aos seus direitos sobre a terra da reserva, promoveu a identificação étnica dos novos membros de sua família a etnia Manguari recebendo nomes do clã materno. Esta era uma pressão vista não só do lado da comunidade Tukúna de Mariuaçu, ciosa de não permitir intrusos em suas terras, mas também do posto indígena que descrimina os moradores não índios da reserva. A decisão do sogro ao ativamento da identificação étnica de seus netos e genro é sintomática da sociedade nacional afirmando seus direitos a terra e a proteção numa região de conflitos entre brancos e índios.
Enfim, Oliveira expõe seu método dizendo que partiu de uma abordagem estruturalista. Trata-se de apreender “modelos conscientes”, pois não se pretendeu esgotar todas as possibilidades de emergência da identificação étnica. Nem se poderia esgotar. Os argumentos das modalidades desse tipo de identificação está contido na ordem do discurso, particularmente de cunho ideológico. O conteúdo cultural proposto significa valores que são fatos empíricos “passíveis de serem descobertos” (p. 21), pois são pontos de vistas dos próprios agentes culturais. Nele coexistem diferentes valores no interior de uma mesma cultura; mas significa também “padrão”. Nesse sentido, “ela é passível de uma certa escolha ou opção em situações determinadas (...)” (p. 22). A cultura do contato, portanto, pode ser entendida para além de um sistema de valores, sendo o conjunto das representações que o próprio grupo étnico faz da sua situação de contato em que está inserido e se identifica a si próprio e aos outros.
Por Mateus Neto
terça-feira, 31 de agosto de 2010
A Sociedade do Consumo
Apresento Jean Baudrillard, sociólogo e filósofo francês, falecido em 2007, cujo trabalho foi dedicado à análise da sociedade contemporânea partindo do princípio de uma realidade construída (hiper-realidade), em que a cultura de massa produz esta sensação de realidade virtual. Nascido em Reims, na sequência de um doutorado em sociologia foi professor desde 1966 na Universidade de Nanterre (Universidade de Paris X).
Detalhando a obra do autor, o termo consumo é recorrente nas suas análises da vida cotidiana. A sociedade de consumo é um termo utilizado na economia e sociologia, para designar todo tipo de sociedade que corresponde com uma avançada etapa de desenvolvimento industrial capitalista e que se caracteriza pelo consumo massivo de bens e serviços, disponíveis graças a produção massiva dos mesmos. O conceito de sociedade de consumo está atrelado ao conceito de economia de mercado que encontra equilíbrio entre oferta e demanda através da livre circulação de capital, produtos e pessoas, sem intervenção estatal.
A sociedade de consumo, como afirma Baudrillard (1995) mostra um mundo atual em que estamos totalmente rodeados por objetos, não de homens. O ser humano, apesar de ser criador de seus utensílios, apesar de ter o poder de criá-los, se sente dominado por eles. Vivemos por e para os objetos. O mundo em que vivemos está controlado por máquinas, elevadores que nos levam de um andar a outro, eletrodomésticos, a televisão que nos distrai de outros afazeres mais importantes etc. Embora não saibamos, somos totalmente escravos e dependentes das máquinas e dos objetos.
Uma das características dos objetos é sua abundância. Existem objetos para todos os gostos e para todos os usos. Todos os objetos que nos rodeiam são expoentes da abundancia, a falta da escassez. Outra importante característica do mundo dos objetos que nos rodeiam é sua distribuição em grupos. Por exemplo, os veículos, os alimentos, os eletrodomésticos…sempre estão acompanhados de outros objetos. Nesse sentido o objeto atua como significante e não como significado. O consumidor percebe o objeto não pela função que cumpre, mas pelo que significa para ele adquirir esse objeto por concreto em um tempo determinado.
Para se tornar um objeto de consumo, o objeto tradicional deve ser convertido em um signo que é carregado de conotações pessoais decorrentes da utilização, da interação com o objeto. Para Baudrillard, o consumo é, pelo que representa socialmente, uma ordem de manipulação de signos, ao ponto de converter-se na negação da realidade sobre a base de uma apreensão ávida e multiplicada de seus signos. O objeto do consumo é antes de tudo um signo que cumpre uma função de representação social que configura o status de pessoa e que de alguma maneira alheia da realidade.
A nossa capacidade de consumo é tal (o consumo de ideias), que todo instante existem várias campanhas publicitárias em que apenas mencionam o nome de um novo produto qualquer, sem informar do que se trata, gerando a necessidade de consumi-lo. Desta forma, surge um novo léxico idealista de signos, que representa o próprio projeto de vida. Nossa vida é consumir: o projeto está satisfeito com a sua aplicação através do consumo. E como a nossa vida é para consumir, o consumo não tem limites.
Os objetos se transformam em signos, de modo a se tornar objetos de consumo que em contraste com o símbolo, carece de significado dado pelo uso. Seu significado é arbitrário, pois é dado pela relação abstrata com outros signos. Entretanto, o consumo não é entendido somente por objetos, mas se estende ao campo dos sentimentos humanos. Baudrillard observa que as relações humanas são “consumidas” e “aniquiladas” através do consumo que atualmente, evoca todos os desejos, projetos, demandas, todas as paixões e todos os relacionamentos incorporados em signos e objetos a serem comprados e consumidos.
Na sociedade de consumo a realidade é um local onde apenas a ideia será consumida, a cultura da ideia de cultura, e não ela, ou a ideia de revolução, mas não a própria revolução. A nossa dinâmica existencial consiste na sistemática, e por tempo indeterminado, de objetos de consumo. Nesse sentido, afirma o autor que pensar, na ideia de consumo moderado, é assumir um moralismo ingênuo ou absurdo, pois o consumo como é concebido se torna um obstáculo ao progresso, baseando-se na fragilidade do efêmero, escondendo reais conflitos que afetam todos os indivíduos.
Segundo Baudrillard, o crescimento de uma sociedade tem relação direta com a manutenção de uma desigualdade social. A necessidade de manter uma ordem social da desigualdade, uma estrutura de privilégio, é o que produz e reproduz o crescimento como elemento estratégico. Assegura o autor que o crescimento não é símbolo de abundância, mas, pelo contrário, depende da miséria e da desigualdade entre as pessoas.
À guisa de conclusão, percebo que o drama “da alienação”, que sob a influência de movimentos marxistas, havia encorajado a sociedade no início do século XX, foi substituída, por uma ideologia centrada num mundo contemporâneo caracterizado por um processo de desmaterialização da realidade: o olhar do homem não é mais dirigido para a natureza, mas as telas de televisão, pois a comunicação tornou-se um fim em si mesmo e um valor absoluto.
By Mesalas Santos
sábado, 28 de agosto de 2010
Fredrik Barth – Grupos Étnicos e suas fronteiras
No livro intitulado “Grupos Étnicos e suas fronteiras” Barth traz uma abordagem sobre a etnicidade e a persistência das fronteiras criadas por partes das unidades étnicas.
A etnicidade estaria relacionada com a organização dos grupos étnicos, ela é atribuída pelos próprios autores, e as fronteiras seriam mantidas apesar da movimentação e intercambio entre eles, alem do que delimitariam a posição do grupo ou indivíduos nas diversas relações.
Certas relações estáveis são mantidas através dessas fronteiras baseadas em estatutos étnicos como afirma a seguir: “As distinções étnicas não dependem de uma ausência de interação social e aceitação, mas são, muito ao contrario, freqüentemente as próprias fundações sobre as quais são levantados os sistemas sociais englobantes”.(p. 186) .
Ele aborda 3 principais pontos nos ensaios desta obra.
1- define os grupos étnicos como categorias de atribuição e identificação realizadas pelos próprios autores, organizando assim a interação entre as pessoas.
2- explora os diversos processos que parecem estar envolvidos na geração e manutenção desses grupos.
3-desloca-se o foco de investigação interna aos grupos para as fronteiras étnicas e manutenção delas.
Barth utiliza as fronteiras para compreender as dinâmicas do grupo. Ele dinamiza a identidade étnica afirmando que ela não é estática, se transforma a partir das relações e como qualquer outra identidade, coletiva ou individual dependendo do interesse, ou contexto. A interação entre os sujeitos e grupos, permitem transformações continuas que modela a identidade, em processo de exclusão ou inclusão, determinando quem esta inserido no grupo e quem não está. Compartilham diversas características más principalmente esses grupos se organizam a fim de definir o “eu” e o “outro”. Se manifestam de maneira à categorizar e interagir com os outros.
Exteriormente atribuem aos grupos étnicos uma identidade baseada em fatores objetivos e que muitas vezes não correspondem as suas características reais. O autor recomenda que para entender as dinâmicas desses grupos é necessário levar em consideração as características que são significantes para os próprios atores.
Os grupos étnicos possuem padrões valorativos que os definem em quanto tal, e a forma como cada grupo ou cada um irá se portar em contato com outros grupos, na interação interétnica, com o intuito de adquirir visibilidade e dialogar com outro. No entanto esses padrões não são fixos, podem mudar e ressignificar-se em outro momento, conforme o contexto social.
Em suas pesquisas, ainda notou que os indivíduos e grupos com identidade étnica definem seus comportamentos a fim de ser coerente com sua identidade evitando praticas e situações que impliquem um desacordo com suas posições valorativas para evitar sanções sociais negativas. Ou seja, a manifestação de certas práticas dependem do contexto, da situação, do interesse por parte do indivíduo ou grupo.
A partir da análise das fronteiras se percebe as dinâmicas e interesses envolvidos no processo identitário, elas são mantidas a partir de um conjunto imitado de traços culturais. A auto-atribuição étnica irá influenciar na organização do grupo e interferir nas relações mantidas por eles.
quinta-feira, 19 de agosto de 2010
João Batista de Macedo Freire Filho possui os títulos de Mestre e Doutor em Literatura Brasileira pela PUC - Rio. Atualmente, é coordenador do Programa de Pós-Graduação em Comunicação e Cultura da ECO/UFRJ.
O texto do João Freire Filho traz à baila uma discussão acerca das culturas juvenis e as conseqüências destas na sociedade, outrossim, um debate acerca dos paradigmas que, até então, trataram do tema.
O artigo principia com uma análise de algumas teorias sobre de culturas juvenis, salientando características, que hoje, teriam perdido seu potencial explicativo, pois, segundo o autor, há uma invisibilidade na teoria, pois não percebe, seja por questões epistemológicas ou propriamente políticas um conteúdo plenamente organizado nas culturas juvenis, entretanto, é comum uma associação direta às ideias de mercado, marginalidade e delinqüência.
Isso é, de fato, notável nos estudos sobre a cultural metal e do rock em geral, existe uma série de textos acadêmicos que aliam tais culturas à ilegalidade, patologias mentais e emocionais e afins. Ou ainda, a grande lacuna no que diz respeito à presença feminina nas manifestações político-culturais e especificamente nas subculturas juvenis.
O autor fala sobre a importância do Centre for Contemporary Cultural Studies- CCCS, dizendo que a teoria aqui criada dirimiu alguns preconceitos referentes às culturas juvenis, ademais contribuiu para a sofisticação da teoria subcultural. Afinal, o CCCS tinha como escopo desconstruir o conceito mercadológico da cultura juvenil e tratar de forma mais próxima e meticulosa as origens sociais, econômicas e culturais dos fenômenos e culturas dos jovens do pós-guerra, portanto, sem negligenciar variáveis de qualquer natureza, essa análise de agora seria feita numa perspectiva total, talvez dada, pela característica interdisciplinar do centro.
No presente artigo, porém há uma ressalva quanto à produção do CCCS, ressalva esta feita pelos pós-subculturalistas que baseados em marcos teóricos como a sociologia do gosto e a teoria da performatividade, Bourdieu e Butler, respectivamente, pretendiam reavaliar o trânsito entre os jovens, a cultura global e suas produções, incluindo agora uma noção de hibridismo e globalização. Essa reavaliação fez surgir um novo vocabulário ( neotribos, comunidades emocionais, canais, subcanais, estilos de vida, etc.) e afastando a noção de subcultura, cujo valor explicativo, havia esgotado.
Entretanto, para o João Freire Filho a questão de centro seria a resistência. Para ele e outros autores, o CCCS teria conferido um valor muito grande às manifestações criadas pelos jovens, porém não haveria nenhuma demonstração teórica ou histórica de que as agremiações juvenis do pós-guerra tivessem um núcleo, cujo potencial fosse notadamente, contra-hegemônico, assim, nota-se que nem todos os grupos ofereciam uma contrapartida para superar a tão criticada relação de subordinação.
O autor ainda discorre a respeito de subcultura que nasce em um contexto de margem, tornar-se do mainstream e em seguida retornar a sua origem ou para outros lugares, de modo diferente da percepção original, i.e., da absorção de novos elementos no seio da subcultura. Tal processo de hibridização dá-se, pelo contato com a mídia, seja de massa ou mídia de nicho, Estado e a própria relação de consumo desses bens culturais.
Ainda há uma discussão sobre movimentos espontâneos organizados para uma finalidade específica, a saber, um acidente ambiental, escândalos políticos, uma grande festa, nesses casos, segundo o autor, os envolvidos se agrupam em redes para dispersão de uma ideia tal, e fazem valer seus pleitos, desejos e sensações. Neste caso, a espontaniedade funciona como um canal que leva o envolvido até as subculturas, através dele que se conhece o grupo, os pares e sua história. Tal panorama mostra como a estrutura do grupo é efetiva, real e subjetiva.
Algumas subculturas quanto ao conteúdo político, sendo mais sagazes, outras mais frágeis, todas, porém interligadas pelo contexto de dispersão material e simbólica, atraindo sempre público, seja indistinto (massa ou ecumênico) ou distinto (convergência de identidade) para as suas realizações físicas ou virtuais sobre alguma temática das esferas pública ou privada, todas a sua maneira, manipulando uso de recursos da tecnologia da informação, todas gerando confusão entre um pensamento desejoso, o vivido, a prática concreta, etc. E os sujeitos envolvidos ávidos por solução, realização plena de seus gostos.
Jefferson Dantas sobre Das subculturas às pós-subculturas juvenis: músicas, estilo e ativismo político.