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Manifestação #elenão, liderada por mulheres, em São Paulo. Foto: AFP. |
Por
Danielle de Noronha
Em Corpos em aliança e a política das ruas, Judith Butler apresenta diversos temas para refletirmos sobre a relação entre os corpos, os
espaços públicos e as manifestações populares que temos presenciado nos últimos
anos em diversos lugares do mundo. Entre os caminhos possíveis para dialogar
com a obra, destacarei nesta resenha três pontos que considero essenciais para pensarmos
sobre as propostas da autora.
O primeiro trata da distribuição
demográfica da precariedade, condição inerente ao capitalismo e às políticas
liberais e neoliberais. Neste sentido, a partir da materialidade do corpo,
temos a construção de corpos que importam e corpos que não importam. Para
Butler, todxs temos níveis de precariedade, sentidos (principalmente) pelos
mais pobres, mas também por todos que estão expostos “à avassaladora insegurança
e ao senso de um futuro mutilado”, como através da violência e da perda de
direitos, porém tal distribuição é desigual e, além de questões econômicas,
está relacionada a outras formas de diferenciação social, como por exemplo, raça
e gênero.
Sobre isso, a autora demonstra
a importância de entendermos que somos uma única população e que a luta pelos
direitos atende ao coletivo e não aos indivíduos particulares. Neste sentido, as
políticas de gênero, por exemplo, devem criar alianças com outras “populações
caracterizadas”, ou “precárias”, para que seja possível fazer oposição às
forças políticas e econômicas que podem nos levar à precariedade.
Para Butler, uma rede de
mãos poderia buscar “minimizar a inviabilidade do viver que é vivida por certas
vidas”, e as alianças entre os diferentes grupos devem partir da compreensão,
primeiro, que os direitos são para todos, e, segundo, que existe uma
diversidade dentro dos próprios grupos, como por exemplo das minorias sexuais e
de gênero.
A autora acredita numa
luta mais generalizada contra a precariedade, que parte de questões ao mesmo
tempo individuais e coletivas e que requer uma “ética de coabitação”, isto é,
não podemos lutar apenas para que os direitos que interessam a nós sejam
atendidos, principalmente quando eles são usados para encobrir e desviar o foco
“da massiva alienação de direitos políticos de terceiros”.
O segundo ponto tem a ver
com os corpos que ocupam as ruas para manifestar. E aqui é importante perceber
que na maioria das vezes o espaço público não é algo dado como público, então
as ruas também estão sendo objetos de disputa, (re)criando uma relação entre os
corpos e os ambientes materiais, que também são parte da ação. Segundo a
autora:
Por
mais que se deva insistir na necessidade de certas condições materiais para a
assembleia pública e a fala pública, precisamos também questionar como a
assembleia e a fala reconfiguram a materialidade do espaço público e produzem
ou reproduzem o caráter público daquele ambiente material”. Percebemos, então, que
a política não é algo que ocorre exclusivamente na esfera pública, enquanto
oposição à esfera privada, “ao contrário, a política cruza essas linhas divisórias
por sucessivas vezes.
O espaço é o suporte que permite a ação existir, mas
que deve ser reivindicado e também faz parte dos objetos de luta, além de ser
ressignificado ao ser ocupado por pessoas, com ênfase no espaço existente entre
os corpos, que estabelece um espaço de pertence, de direito, à aliança.
Para pensar essa
assembleia pública, isto é, esse espaço de aparecimento, Butler vai dialogar – e
questionar – com Hanna Arendt, que construiu seu pensamento sobre o tema a
partir de uma diferenciação entre os domínios privados e públicos, em que os
públicos estavam naturalmente mais relacionados ao masculino, além de pensar
este espaço a partir da perspectiva da polis grega sobre o que a política deve
ser.
Utilizando exemplos de
protestos recentes, como a Primavera Árabe e o Occupy, entre outros, Butler
reflete como a performatividade corporal que acontece no espaço entre os corpos
– através dos movimentos, sons, formas de se organizar, etc. –, gera um espaço
de aparecimento. Tal espaço possibilita que os corpos que agem politicamente
não ajam sozinhos, e estejam dentro das disputas políticas e não à margem delas.
Neste sentido, tais corpos não estão fora da política e do poder, mas vivem uma
forma especifica de destituição política. Se aceitássemos as narrativas que
buscam naturalizá-los como fora das disputas e performatividades da política,
estaríamos aceitando como corretos os modos dominantes de limites do político. Para
Butler:
uma
das razões pelas quais a esfera do político não pode ser definida pela
concepção clássica de polis é que esta concepção nos despoja
da possibilidade de ter e usar uma linguagem para aquelas formas de
agência e resistência assumidas pelos despossuídos. Aqueles que se encontram em
posições de exposição radical à violência, sem contar com proteções políticas
básicas sob a forma de lei, não estão por este motivo situados ‘fora’ do
político ou despojados de toda e qualquer forma de agência.
Em resumo, quem está fora
das estruturas estabelecidas e legitimas da política está todo tempo também
permeado por relações de poder. A performatividade do corpo é um modo de visibilizar
a relação entre todos os corpos e se opor as formas de diferenciação impostas,
que inclui a violência do Estado. “Os corpos na rua reimplantam o espaço de aparecimento
de modo a contestar e negar as formas existentes da legitimidade política”, e
interferem na organização espacial do poder.
Butler ainda afirma que “o
direito ganha existência quando, então, é exercido, e ele é exercido por
aqueles que agem de maneira orquestrada, em aliança”. A performatividade dos
corpos em aliança questiona essa compreensão da realidade que busca criar
narrativas que colocam pessoas que não têm acesso a esses direitos como irreais
ou fora da política, em uma construção do outro não existente. É também a busca pelo direito de aparecer.
Um terceiro ponto tratado
no texto é sobre o que significa aparecer na política contemporânea e a autora
questiona se atualmente é possível aparecer sem a mídia. Aparecer significa
aparecer para alguém – visual e auditivamente. E muitas vezes isso requer a
construção de espaços em que corpos invisíveis se tornem públicos. Nas palavras
de Butler: “o cenário da rua se torna politicamente potente tão somente quando,
e se, ocorre uma versão visível e audível da cena comunicada em tempo real ou
quase em tempo real, de tal maneira que a mídia não está meramente reportando a
cena, mas é parte da cena e da ação”. Neste sentido, a mídia estende a cena
visual e auditivamente e participa na delimitação e transponibilidade da cena,
a levando para diferentes tempos e espaços simultâneos.
Por um lado, podemos
pensar na mídia tradicional – e globalizada – e os diversos recortes que são
realizados até que a imagem chegue ao público, além dos interesses que fazem com que certas imagens "viagem" e outras sejam invisibilizadas. Para a autora:
Há
muitos eventos locais que jamais são registrados e transmitidos, e há algumas
razões importantes pelas quais isto ocorre. Contudo, quando o evento viaja e é
capaz de invocar e sustentar o ultraje e a pressão globais (o que inclui o
poder de paralisar mercados ou romper relações diplomáticas), então o “local”
terá que ser estabelecido repetidamente em um circuito que, a todo instante,
excede a localidade.
Por outro, hoje temos as
redes sociais e a possibilidade de uma produção mais horizontal de conteúdos (por
mais que devamos levar em consideração que apenas metade da população mundial
tem acesso à internet, segundo estudo de uma agência da ONU). Butler pondera
que é relevante que tais corpos expostos na rua carreguem telefones celulares e
repassem mensagens e imagens, pois, “quando eles são atacados, o ataque envolve
de algum modo a câmera”, e questiona:
Seria
a ação do corpo separável de suas tecnologias? A tecnologia não estaria
ajudando a estabelecer novos modos de ação política? E, quando a censura ou a
violência são direcionadas contra aqueles corpos, elas também não estão sendo
direcionadas contra seu acesso à mídia, de modo a estabelecer um controle
hegemônico sobre que imagens viajam e que imagens não viajam?
Um dos caminhos, mas que
não é suficiente, é que também podemos olhar para a “mídia marginal”, que
produz conteúdos contra-hegemônicos buscando outras narrativas, outros
significados e outras formas de construir a diferença. De todos modos, para a
autora, aquilo que os corpos fazem na rua, quando estão manifestando, é
fundamentalmente conectado àquilo que dispositivos e tecnologias de comunicação
estão fazendo quando “reportam” o que ocorre na rua. Estas são ações diferentes
uma da outra, mas ambas requerem o corpo.
Refletir sobre espaço
público hoje, direito à aparecer e performatividade do corpo inclui entender
que, segundo a autora, esta conjunção entre a rua e a mídia constitui uma
versão bastante contemporânea da esfera pública, em que os corpos que
estão expostos têm que ser pensados como situados simultaneamente aqui e
ali, agora e depois, simultaneamente transportados decorrendo destas duas
modalidades de espaço e tempo, que podem trazer consequências políticas
distintas para esses “lugares” espacial e temporalmente diferentes que estão
sendo ocupados.
Para finalizar, Butler
acredita que os corpos expostos na praça – e todas as suas necessidades ali
representadas – se tornam um assunto crucial da política. Neste sentido, os
corpos que se organizam e dormem na rua “se constituem uns aos outros enquanto
imagens a serem projetadas para todos os que assistiam, peticionando nossa
atenção e reação de modo a arregimentar uma cobertura de mídia que não
consentisse que o evento em curso fosse abafado ou escapulisse”.
Utilizando o exemplo da
Primavera Árabe, a autora considera que foi somente quando aquelas necessidades
que deveriam supostamente permanecer privadas foram expostas dia e noite na
praça, e transformadas em imagens e discursos pela mídia (novas e tradicionais), que se tornou possível
estender o espaço e o tempo do evento ao ponto de trazer mudanças práticas. “Afinal,
as câmeras nunca pararam; os corpos estavam lá e aqui; eles nunca pararam de
falar (nem mesmo ao dormir), e deste modo não puderam ser silenciados, isolados
ou negados: a revolução, de vez em quando, ocorre porque todos se negam a ir
para a casa, aderindo ao asfalto como o lugar de sua convergente e temporária
coabitação”.
BUTLER, Judith. “Bodies
in Alliance and the Politics os Street” in Notes
Toward a Performative Theory of Assembly. Cambridge-Massachusetts:
London-England: Harvard University Press, 2015 [tradução para uso didático por
Leandro de Oliveira. Belo Horizonte .FAFICH/ UFMG, 2016, mimeo].