Mais de 40 anos depois do golpe militar ocorrido no Brasil, em 02 de abril de 1964, Barros (1994) acredita que a memória do regime ditatorial que se seguiu a ele pode parecer apenas um amontoado de generais-presidentes que desfilam de forma impositiva pela história do Brasil. Porém, há outras memórias sobre o período que buscam ser compartilhadas, já que a produção de uma memória supõe que outra foi silenciada, ou apenas não evidenciada.
O presente texto busca apresentar algumas questões sobre o meu projeto de dissertação de mestrado em antropologia, ainda em fase inicial. Partindo da ideia de que a ditadura militar é um tema que ainda mereça muita discussão e que, geralmente, tem apenas um lado mais divulgado, principalmente aos jovens, o trabalho busca analisar o cinema como um mecanismo de disseminação de memórias às juventudes de hoje sobre o período no Brasil.
As formas pelas quais o país passou da ditadura para a pós-ditadura, lenta e sem julgamento devido, “provocam diferentes imposições de silenciamento sobre os crimes cometidos” (SOUZA, 2008, p. 58). A questão das memórias da ditadura no país pode ser discutida através do que nos diz Pollak, que aponta o retraimento de lembranças sobre eventos e experiências traumáticas (POLLAK apud SOUZA, 2008, p. 58).
O cinema, devido o uso de imagens e a maneira com que se comunica com o espectador, além de ser uma forma de entretenimento, é um importante mecanismo de transmissão de informação. Imagens postas, dispostas podem ou não provocar reflexões e ser promotoras e construtoras de memórias. Neste caso, memórias com o sentido atribuído por Halbwaschs: como leituras do passado elaboradas no presente, sendo individuais e coletivas ao mesmo tempo. “O processo de rememoração provocado pela linguagem fílmica é ainda mais marcante” (ZANINI, 2008, p. 4) pela possibilidade de comunicação e facilidade de contar uma história.
Até o momento, o objetivo principal da pesquisa é entender como e de que forma o cinema pode revelar à juventude de hoje uma nova perspectiva sobre o período ditatorial brasileiro, diferente daquela contada pela história oficial e livros nas escolas, entendendo que a memória é um importante mecanismo de manipulação e criação de identidades. Dentre os objetivos específicos, a dissertação pretende também analisar como o cinema brasileiro trabalha com a temática, entender como o cinema produzido no país lida com a juventude e analisar a forma que obras transmitem uma história.
A pesquisa busca encontrar, a partir de uma interpretação da arte cinematográfica, uma sensibilidade maior sobre o período analisado, compreendendo como tais memórias individuais podem se tornar importantes para a criação da memória coletiva. Para Geertz (1997), a capacidade de uma arte fazer sentido varia de indivíduo para outro, é, como todas as outras capacidades plenamente humanas, um produto da experiência coletiva que vai bem mais além dessa própria experiência. O diálogo entre cinema, história e memória (SANTOS, 2009) é possível devido a importância que os filmes têm hoje na vida das pessoas. A arte faz parte da vida e não há outro meio de interpretá-la senão dentro do curso da vida do mundo (GEERTZ, 1997). No caso das obras cinematográficas sobre a ditadura militar, “os filmes organizam imaginativamente, pela emoção, uma memória suplementar, a qual se refere tanto àquele passado como aos momentos posteriores” (SOUZA, 2008 p. 51).
Os filmes selecionados para análise serão a partir do período conhecido como “retomada do cinema brasileiro”, em 1995. No primeiro momento, no qual se encontra a presente pesquisa, está sendo realizado um levantamento bibliográfico e filmográfico para concluir a metodologia, além de entender a relação entre memória, cinema e antropologia. A princípio, o passo seguinte é analisar a relação do jovem com o cinema brasileiro, a partir do levantamento de filmes feitos para a juventude e a recepção deles pelo público, pesquisando dados como bilheteria, temáticas e a forma como o jovem é retratado.
Em seguida, haverá uma discussão de aspectos da ditadura militar no Brasil, além de um estudo de como os filmes nacionais tratam o tema, analisando obras consideradas importantes devido a temática, seu sucesso e a história por trás de sua produção, como Batismo de Sangue e Ação entre Amigos.
Por último, será demonstrado como o cinema pode ajudar a contar outra história da ditadura no país, disseminando diferentes memórias para a juventude e como ela a recepciona, a partir da análise da linguagem, da narrativa, dos atores, das histórias e também da carreira cinematográfica, a recepção e a opinião dos jovens.
Barbosa (1999) acredita que o cinema e a antropologia têm estabelecido um intenso diálogo ao longo de suas histórias, sendo um deles compreender as relações entre a produção imagética de uma sociedade e sua própria vida social. Sem cair ingenuamente no engano de considerar o cinema como espelho da vida, procura-se caminhos para desvendar essa complexa relação entre arte e vida
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BARBOSA, Andréa C. M. Marques. Ana Lúcia Andrade. O filme dentro do filme. Revista de Antropologia, 2000. Disponível em http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0034-77012000000100013. Acesso em outubro de 2010.
BARROS, Edgar. Os governos militares. São Paulo: Editora Contexto, 1994.
GEERTZ, Clifford. A interpretação das culturas. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1978
HALBWACHS, Maurice. A memória coletiva. São Paulo: Vértice, Editora Revista dos Tribunais, 1990.
POLLAK, Michael. Memória, esquecimento, silêncio. Rio de Janeiro: Estudos históricos, 1989.
SOUZA, Maria Luiza Rodrigues. Tese de doutorado: Um estudo das narrativas cinematográficas sobre as ditaduras militares no Brasil (1964 – 1985) e na Argentina (1976 – 1983). Brasília: Universidade de Brasília, 2007.
ZANINI, Maria Catarina Chitolina. Por que cinema com antropologia? Breve relato de uma experiência etnográfica de recepção fílmica. UFSCAR, 2008.
4 comentários:
Oi Dani,
Eu gostaria que você nos falasse um pouco mais os balizamentos de sua proposta, bem como sobre metodologia de pesquisa. Abraços. Frank.
Dani,
Queria que você falasse um pouco de que história sobre a ditadura é essa que é contada aos jovens e qual a história sobre a ditadura que o cinema pode transmitir? Existe uma "versão" narrada comumente aos joves que é diferente da possível "versão" do cinema? Comenta sobre isso!
E a outra questão seria sobre como, na prática, pretende alcanças esses jovens receptores dos filmes a serem trabalhados? Onde encontrá-los e como trabalhar metodologicamente com eles?
Bju
Tâbia
Olá,
não conseguir entender bem. Como é que você pretende trabalhar memória (coletiva e -ou- individual) e cinema sobre o período da intervenção das forças armadas no Brasil numa versão narrada aos jovens que é diferente da tradicional? É isso que você deseja ou entendi mal mesmo? Mas use este espaço para falar mais sobre suas pretensões de trabalho.
Oi, Frank, Tânia e Mateus. Desculpem a demora para responder, mas nos últimos dias estou sem internet. Vamos lá...
Parto da ideia de que a história oficial sobre a ditadura militar que é mais comumente transmitida (no caso dos jovens de hoje, principalmente nas escolas) conta apenas um lado do que foi o período ditatorial no Brasil. A lei da anistia, o abafamento de memórias individuais, a demora para abertura dos arquivos, o não julgamento de torturadores (onde muitos ainda estão no governo ou são nomes de ruas em todo o país) ou até a tentativa de impedir a exibição da novela “Amor e Revolução”, do SBT, por ex-militares demonstram o interesse de que apenas uma história seja conhecida.
Duas formas de pesquisa me levaram a perceber que muitos outros pontos relacionados à época foram silenciados (ou menos evidenciados) e as juventudes de hoje pouco conhecem sobre estas outras versões da ditadura.
Primeiro, foi a partir de um levantamento bibliográfico (como de livros que trabalham questões como da memória coletiva em períodos dolorosos, etc.), notícias e também uma pesquisa de como a memória é tratada em outros países da América Latina, como Argentina e Chile. Segundo, a partir de entrevistas e conversas com jovens. O mais interessante deste ponto foi ver que muitos deles não têm conhecimento do passado do país, muitos não tinham conhecimento das torturas ou da forma que o país passou a ser “democrático”, por exemplo. Uma destas entrevistas foi realizada no curso de graduação em serviço social da UFS, no ano passado. Após a exibição do filme “Batismo de Sangue”, assisti à aula da professora e passei um questionário aos alunos e poucos conheciam o conteúdo apresentado na obra.
Há muitas outras formas de apresentar outras memórias sobre a ditadura militar, sendo o cinema uma delas. A partir do período que vou trabalhar (a retomada do cinema brasileiro), muitas obras apresentam esta temática de alguma forma e, no geral, de uma forma diferente da que consta nos livros escolares, por exemplo.
Minha pesquisa visa entender se estes filmes podem ajudar a contar estas outras memórias para a juventude, para que assim conheçam o passado do país por uma perspectiva diferente da história oficial.
A metodologia do trabalho está em construção, pois a pesquisa passou por alterações há pouco tempo e ainda estou trabalhando nela. No momento, estou fazendo leituras e um levantamento bibliográfico, filmográfico e de dados e, analisando, a princípio, apenas as histórias dos filmes. O objetivo é entender a relação cinema-memória, cinema-ditadura e cinema-juventudes. Após isto, os filmes escolhidos serão analisados em todo o seu universo. Para trabalhar a recepção fílmica dos jovens a estas obras será necessário exibir os filmes para um grupo e realizar entrevistas para entender como e de que forma as memórias foram transmitidas a eles. Acredito que a escola é o melhor local para encontra-los.
Obrigada pelos comentários. Conversamos mais amanhã.
Abs!
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