segunda-feira, 28 de setembro de 2015

Resenha do texto “A Ideologia como Sistema Cultural”

Resenha do texto “A Ideologia como Sistema Cultural”

Referência bibliográfica

GEERTZ, Clifford. A Ideologia como Sistema Cultural. In: A Interpretação das Culturas. 1.ed. [Reimpr.]. Rio de Janeiro: LTC, p. 107 – 134, 2011.

Mateus Antonio de Almeida Neto (GERTS)


Antropólogo estadunidense, Clifford Geertz(1926-2006) destacou-se na cena acadêmica nos anos sessenta do século XX ao focar sua atenção na então ignorada “antropologia simbólica” ou “antropologia interpretativa”, na qual os símbolos são vistos como veículos de cultura. Autor de diversos ensaios, artigos e livros, sua obra “A Interpretação das Culturas (1973)” é uma das mais conhecidas pelo público brasileiro e referência em diversos campos das Ciências Sociais.A cultura, para o antropólogo, deve ser vista como um texto socialmente elaborado e, como contexto, no qual os comportamentos adquirem inteligibilidade.Além disso, a análise literária e textual é uma constate em seus trabalhos, como o universo das questões microscópicas em relação às explicações marco e totalizantes,comum no período entre e pós-guerra. 

Em “A Ideologia como Sistema Cultural”, Geertz destaca que uma das ironias da história intelectual moderna é o fato de o termo “ideologia” ter se tornado totalmente ideológico. Anteriormente significava uma coleção de propostas políticas, um tanto intelectualizadas e impraticáveis; mas tornou-se um conceito com afirmações, teorias e objetivos integrados que constituem um programa político-social com uma implicação de propaganda convencional, a exemplo do fascismo, que foi alterado na Alemanha para servir à ideologia nazista, entre outrosque circundou e invadiu a vida pública nos países ocidentais durante os séculos XIX e XX, ameaçando alcançar a dominação universal. 

No texto, o autor indaga o que o conceito de ideologia, mesmo com tantas contribuições no campo científico, está fazendo entre as ferramentas analíticas de uma ciência social que, à base de uma alegação de objetividade, avança suas interpretações teóricas como visões da realidade social, se o poder crítico das ciências se origina de seu desprendimento, portanto, esse poder não estaria comprometido quando a análise do pensamento político é governada pelo mesmo?Sobre tal prisma, aprofundou a discussão a partir de algumas questões, entre elas, se a absorção de um referente próprio, ideológico, propõe a destruição sobre a utilidade científica do conceito? Outra,se pode continuar a ser um conceito analítico, já que propõe uma concepção de ideias enraizadas na sociedade?

Dessa forma, Geertz enveredou através da formação do homem acadêmico: a adesão disciplinada a processos impessoais de pesquisa, o isolamento institucional, o compromisso vocacional com a neutralidade, o conhecimento cultivado e corrigido dos próprios preconceitos em vista das discussões para o autoconhecimento, o que ainda gera discussão dentro da própria ciência social.

O autor também destaca que a teoria da “ação simbólica” praticamente foi intocada pela ciência social, a questão de como símbolos enraizados na sociedade são significados e funcionam no sentido da análise como uma forma de apreender, formular e comunicar realidades sociais que podem esquivar-se à linguagem da ciência e formar padrões socioculturais, assim como o uso de metáforas no sentido de fazer analogias. 

Em suas pesquisas, ao lidar com a ideologia como uma entidade em si mesma, Clifford a trabalhou como um sistema ordenado de símbolos culturais, traduzidos diante dos distintos contextos social e psicológico. Para o antropólogo, o cientista social deve analisar sua corporificação de símbolos como suas limitações e traduzi-los em forma de texto, como pensamento ordenado; o contrario poderia trazer implicações equivocadas ou ideológicas, deformada ou viciada por preconceitos e emoções pessoais- o que parece ser uma crítica aos estruturalistas que buscavam explicações macro e generalizantes. Dessa forma,afina seu caleidoscópio para as superestruturas. 

Com a contribuição das ciências sociais percebeu que,as ideologias são conduzidas por um conjunto de crenças coerentes e abrangentes.Dualista, opõe o nós contra o eles.Alienante, trabalha no sentido de articular, atacar e destruir instituições políticas estabelecidas.Doutrinária, reclama a posse completa e exclusiva da verdade política e abomina o diálogo.Totalista objetiva ordenar a vida social e cultural a partir de seus ideais.Futurista, diz trabalhar por um fim visto como utópico, como demonstra a análise científica.

No texto, Geertz destaca duas abordagens principais aos estudos dos determinantes sociais da ideologia: a “teoria do interesse” e a “teoria da tensão”. A primeira, cunhada por uma espécie de tradição marxista,parece constituir o equipamento intelectual-político padrão do homem de rua, no qual o enraizamento das ideias-sistemas culturais dar-se no terreno da estrutura social, através dos que professam e dependem de tal sistema, e volta-se para a luta dita de classe.Denota que as ideias políticas são armas, uma forma de institucionalizar uma visão particular da realidade – a do grupo, classe ou partido – e assim apossar-se do poder político e reforçá-lo na busca por vantagens, o que é comum observar nas repúblicas mais jovens, no embate dito entre esquerda e direita.

Já a “teoria da tensão”, parte do sentido da análise contextual mais sistemática, na relação entre o eu e o outro, no sentido em que nenhum arranjo é ou pode ser bem-sucedido com os problemas funcionais que enfrentam, haja vista as descontinuidades e discrepâncias entre os diferentes setores da sociedade: a economia, a comunidade política, a família, entre outros. É através da experiência do ator social que as imperfeições e as contradições sociais se exacerbam.

Na Indonésia da segunda metade do século XX era comum essa observação, pois o processo político estava associado a símbolos ideológicos na tentativa de desembaraçar o catálogo da República e dar um sentido e um propósito à comunidade politica.O conceito de governo desenvolvido na Indonésia, por exemplo, fora elaborado de forma tradicional, como os Estados clássicos fora hinduizados nos séculos IV a XV, depois revistos e enfraquecidos pós terem sido primeiro islamizados e, depois, substituídos pelo regime colonial holandês.O crescimento constante, associado ao controle administrativo holandês em meados do século XIX e principio do XX, como a diversidade étnica, geográfica, religiosa e de símbolos restringiu mais a tradição.De outro lado, o crescimento do papel político do exército, desde a presidência e o serviço civil, até os partidos e a imprensa, forneceu a outra metade ameaçadora do quadro tradicional.

Nesse sentido, Geertz enfatiza que as diferenças entre ciência e ideologia, como sistemas culturais, devem ser analisadas entre as estratégias simbólicas que englobam situações que elas representam. A ciência nomeia a estrutura das situações de tal forma que revela, no conteúdo de sua atitude, seu desinteresse. Seu estilo é contido, analítico e procura maximizar a clareza intelectual. A ideologia, porém, nomeia a estrutura das situações de maneira tal que revela em sua atitude um compromisso com elas. Seu estilo é ornamental, deliberadamente sugestivo e procura motivar a ação. Ambas se preocupam com a definição de uma situação problemática e constituem resposta a uma falta sentida de informações. “Enquanto a ciência é a dimensão de diagnóstico, de critica da cultura, a ideologia é a dimensão justificadora, apologética – refere-se à parcela da cultura que se preocupa ativamente com o estabelecimento e a defesa dos padrões de crença e valor” (GEERTZ, 2011, p. 133).

No texto “Ideologia como Sistema Cultural”, o autor destaca que a teoria da “ação simbólica” fornece mecanismos no sentido de analisar a sociedade segundo modelos ou padrões nativos, através de um conjunto de símbolos que consiste na construção de um modelo ou imagem dos aspectos culturais relevantes de uma determinada sociedade, o que Geertz denominou de “teoria extrínseca”. Portanto,é através da construção de ideologias, de padrões esquemáticos da ordem social, que o homem pode fazer de si mesmo, um animal político.

3 comentários:

Diogo Monteiro disse...

Prezado Mateus, parabéns pela resenha. Mais uma vez Geertz nos apresenta uma reflexão instigante acerca dos problemas teórico-metodológicos das ciências sociais. Ele nos fala, a partir de Mannheim, sobre as dificuldades que os cientistas sociais têm em elaborar uma "concepção não-avaliativa da ideologia", ou seja, das dificuldades em distinguir "juízos de fato" (o que a realidade é) dos "juízos de valor" (o que a realidade deveria ser), a objetividade da subjetividade no momento em que se desenvolve analiticamente dado objeto de pesquisa, como, de maneira análoga, nos alertava Weber. Concordo que é muito difícil para nós pesquisadores nos distanciarmos da ideologia durante a prática científica.Daí a tendência a rotularmos determinado fenômeno, objeto de nossas pesquisas, através de termos como "positivo" ou "negativo", "selvagem" ou "refinado", "progressista" ou "conservador" etc. Porém, o próprio Geertz (2011, p.133)admite a possibilidade de o estudioso adotar, de forma não contraditória,uma postura ao mesmo tempo crítica (científica) e apologética (ideológica), enfatizando que isso seria o sinal de um certo nível de sofisticação intelectual. Dessa forma, penso que esse grau de sofisticação intelectual, necessário para a utilização não contraditória da objetividade e da subjetividade, deva resultar de uma vasta experiência na realização de pesquisas na seara das ciências sociais, o que exige um grande investimento em tempo e em reflexão analítica. Abraço e até breve!

Felipe Araujo disse...

Caros colegas,

discussão muito interessante, particularmente por se tratar de um tema compartilhado por diversas disciplinas e áreas para além da Antropologia, como a Filosofia, as Letras, a Sociologia e a Ciência Política (até mesmo, a princípio, entre ciências naturais como a Biologia e a Física). Embora considere que a premissa de Geertz seja bastante delicada (pela distinção meramente factual entre dimensões da crença científica enquanto diagnóstica e da atitude ideológica enquanto inerentemente político-apologética), acredito que sua discussão e seu ponto de vista continua atual e necessário principalmente em função de uma hipótese que se confirma de maneira quase profética nas décadas seguintes dentro do campo antropológico: a segurança metodológica e a eficácia técnica da "textualização" interpretativa do objeto antropológico colocada pelo autor como alternativa metodológica viável, a compreensão da cultura como texto, do fazimento de si como inerente ao processo de construção das interpretações individuais (e coletivas) dos sistemas de pensamento. Aliás, uma tese forte da "Interpretação das Culturas", que irá pressupor a prática da etnografia como a análise de um discurso social que se recria constantemente através de significantes e comportamentos, símbolos e discursos.

Parabéns pelo texto, creio que a polêmica persiste, ainda que para além das ciências sociais.

Mateus Neto disse...

Caro Diogo e Felipe, suas observações sintetizam bem o texto “Ideologia como Sistema Cultural”. Valeu pela excelente síntese de vocês. Suas posições críticas nos brindam com um bom guia para os prezados colegas se nortearem na leitura.
Penso muito próximo ao Felipe, quando diz que essa discussão vai além das ciências sociais. Mas o Geertz é bastante pontual na sua crítica sobre as ideologias. Contudo, sempre que leio esse texto do Geertz me remete a terceira geração dos Annales, especificamente a crítica sobre o uso excessivo de teorias ao invés da análise sistemática das fontes, a busca por explicações generalizantes e estruturais ao invés de estudos pontuais (micro) e a análise particular sobre os universos distintos de cultura (a superestrutura). Essa crítica também é possível ler nos escritos de Foucault e Certeau, entre outros, que de forma nada simplista aparecem no mundo acadêmico e tornam-se referência para discutir uma série e temáticas, tanto de forma teórica como metodológica.
O final dos anos sessenta e setenta do século XX foi rico no sentido da quebra de alguns paradigmas acadêmicos que eram vistos como modelos explicativos do universo de forma generalizante – a tradição sociológica francesa durkheimiana e o estruturalismo de Strauss; a tradição britânica do materialismo histórico até a influência do pensamento de Max Weber, Simmel, entre outros. Acredito que é importante essa percepção no sentido de entender como a “obra” de Geertz é importante para pensar a sociedade e a vida humana – as questões socioculturais através de outros prismas mais pontuais, como a cultura, o universo mental dos sujeitos – agora a partir do próprio sujeito.
Também é interessante pensar como ao longo da história o discurso acadêmico foi transformado em ferramenta de manipulação das massas, grupos etc... no caso explicito do marxismo, pois é mais corriqueiro nos depararmos com tal. Ou seja, totalmente ideológico. Nesse sentido, não precisamos ir longe, é só acompanhar algumas postagens de notáveis nomes das ciências sociais no “face”. Isso é apenas uma provocação... Nesse sentido, o texto nos brinda com algumas narrativas interessantes para pensar sobre tal.
Estou totalmente aberto ao debate...