terça-feira, 22 de dezembro de 2015

Resenha: “Uma descrição densa: por uma teoria interpretativa da cultura.”


GEERTZ, Clifford. Uma Descrição Densa: Por Uma Teoria Interpretativa da cultura. In: A    Interpretação das culturas. Rio de Janeiro: Zahar, 2008. P. 3-21.

 
Liana Matos Araújo¹

liana.matos2@gmail.com

 

O livro “A Interpretação das Culturas” é um clássico na antropologia e representa um momento diferencial na história dessa ciência. Com base na compreensão e interpretação dos fenômenos sociais, Geertz apresenta logo no primeiro capítulo dessa obra o conceito de cultura a partir da semiótica. Para isso, ele destaca suas primeiras definições como ponto de partida: abordar a cultura como uma teia de significações tecida pelo próprio homem (partindo das ideias de Weber) em contraponto ao “todo complexo” da teoria estrutural funcionalista. Desta maneira, traz o estudo sobre a cultura "não como uma ciência experimental em busca e leis gerais, mas como uma ciência interpretativa, à procura do significado." (p.4).

Assim, para tornar esse conceito mais hermenêutico e reconhecido em sua importância, segundo ele, é preciso saber o que os cientistas fazem, ou seja, o que os praticantes da antropologia executam em sua prática profissional: a etnografia. Desta forma, esse conhecimento se torna mais completo quando tomamos a noção da prática etnográfica elaborada a partir de uma descrição densa. Essa prática se dá a partir da tentativa de "ler um manuscrito estranho, desbotado, cheio de elipses, incoerências, emendas suspeitas e comentários tendenciosos, escrito não como os sinais convencionais do som, mas com exemplos transitórios de comportamento modelado." (p.7).

De acordo com Geertz, elaborar uma etnografia a partir de uma descrição densa é interpretar e elaborar uma leitura da leitura que os nativos fazem da própria cultura. A etnografia enquanto um método de pesquisa antropológica tem a função não somente de guiar o pesquisador em campo, mas também atua como um fundamento do papel do antropólogo sem a necessidade dele se tornar um objeto de estudo, um nativo. Assim, ao realizar um trabalho etnográfico, além dele proporcionar o posicionamento do pesquisador ele permite realizar uma compreensão da interpretação que os nativos têm de suas interpretações se tornando assim uma leitura de segunda e/ou terceira mão já que para ele somente o próprio nativo faz interpretação em primeira mão.

A descrição densa defendida e apresentada por ele está embasada em três características que se  fundamentam em uma: ser interpretativa. Assim, a descrição densa serve para “traçar curva do discurso social: fixa-lo numa forma inspecionável.”(p.13). O antropólogo, diante deste discurso, anota e regista algo que não deixa de existir após ter acontecido se tornando  assim um relato na pesquisa de campo. Em resumo: a descrição etnográfica é formada pela interpretação do discurso e o registro deste relato.

É imprescindível mencionar o quanto as abordagens teóricas de Geertz se tornaram um sinal diacrítico na história da ciência antropológica. Assim, ao estudar a antropologia e buscar entender seu escopo principal não é "responder às nossas questões mais profundas, mas colocar a nossa disposição as respostas que outros deram e assim inclui-las no registro de consultas sobre o que o homem falou. "(p.21).  Entretanto, sua obra não esteve aquém de críticas e, ao mesmo tempo, pode proporcionar a superação de uma teoria com cunho etnocêntrico. Desta forma, a Interpretação das Culturas é uma obra clássica disponível aos leitores desde 1973 e aborda temas até hoje discutidos em sala de aula, congressos e na literatura antropológica: os saberes antropológicos, a cultura e a prática antropológica.

¹ Mestre em Antropologia Social pela Universidade Federal de Sergipe.

 

4 comentários:

Frank Marcon disse...

Antes de mais nada, gostaria de agradecer a Liana e a Suene pelas duas ótimas resenhas de textos tão fundamentais como estes. O primeiro uma reflexão epistemologica sobre a relação entre a noção de cultura e a etnografia e o outro uma reflexão nua e crua sobre o fazer etnográfico a partir de dentro. Quase que como um texto falando de outro, os dois se completam entre si. A ideia de que a etnografia é um registro de interpretação densa, também a coloca num contexto de discussões sobre a prática metodológica, sobre o ético e sobre o conceitual. A etnografia como um potencial reflexivo também sobre as próprias limitações da análise, ou seja, reconhecendo que a interpretação cultural é científica, mas nem por isto isenta de valores, de falhas e de ilusões sobre o que discorre. A prática da descrição densa humaniza o fazer antropológico, bem como apresenta um cenário simbólico, em que o papel do etnógrafo é analisar as disputas pelo sentido. No meio deste caminho, a presença do antropólogo não pode ser desconsiderada, enquanto produtora de sentido. Estamos diante de um dos maiores dilemas para as ciências humanas, do "como fazer para garantirmos uma análise válida?". No meu entender, Geertz nos dá interessante pistas para isto, no texto da briga de galos, quando se coloca como sujeito em interação com o evento que analisa e narra sua experiência a partir de uma experiência coletiva, quando explora os possíveis sentidos submersos daquele ritual, bem como quando fala da experiência de como é ver, escutar e sentir a partir do seu lugar social na interação (o ponto de observação é um lugar de relação com a experiência do que se observa); no texto sobre a descrição densa, depois de todo o tecido teórico que constitui sua reflexividade sobre a teoria da cultura e da prática etnográfica, Geertz tira das nossas costas o peso da objetividade da interpretação sobre a cultura como substância, ao dizer que o papel da antropologia é dizer algo mais sobre o humano, sobre a necessidade de entendermos a cultura como uma teia de singificados em que estamos enredados, sobre como produzir um registro o mais profundo e densamente interpretativo possível sobre a experiência humana, a partir dos limitações da etnografia. Abraços e bon nadal!

Unknown disse...

Olá Liana. Parabéns pela resenha.
Considero o texto "Uma descrição densa" uma espécie de compêndio didático que deve ser lido por todos que pretendem se iniciar na ciência antropológica. Apesar de não ter anunciado essa intenção "didática", nesse texto Geertz apresenta, além de uma definição do objeto de estudo da Antropologia - a cultura -, os ensinamentos do passo a passo da prática etnográfica, os elementos que compõem a descrição densa, fundamentais para quem pretende se inserir naquele campo de estudo. Apesar da exposição clara do autor acerca dos aspectos conceituais e metodológicos que envolvem a "descrição densa", ainda fico a me perguntar sobre os motivos que tornam suas diretrizes tão difíceis de serem contempladas durante o exercício da escrita etnográfica, a ponto de o termo "descrição densa" ser evitado em alguns trabalhos de pesquisa de conclusão de cursos de graduação ou até mesmo de pós-graduação. Abraços.

Eline Limeira disse...

Primeiramente gostaria de parabenizar pela resenha.
E falando sobre o texto, Geertz me desperta principalmente para as discussões sobre cultura e etnografia.
O autor destaca para mim de forma bastante clara que em se tratando de cultura tudo está exposto, pois não existe nada para explicar a cultura que não esteja dado, portanto, o etnógrafo agiria como um interprete, pois nas palavras do próprio Geertz a descrição etnográfica é interpretativa e microscópica, pois o antropólogo consegue a partir de um fato particular compreender conceitos e teorias por hora complexos, e por vezes inaplicáveis. Acho fantástico a forma como ele traz para o leitor a etnografia como algo construído, ficcional, o etnógrafo que pode talvez quem sabe se assemelhar a um romancista, aquele que problematiza um fato considerado “banal”, na intenção de ler uma realidade considerada estranha aproximando-a do considerado semelhante ou normal, utilizando suas palavras: “Compreender a cultura de um povo expõe a sua normalidade sem reduzir sua particularidade”. Leitura muito envolvente.

Unknown disse...

Excelente Resenha Liana,
Ao reler o texto “Uma descrição densa”, dois elementos foram cruciais nesse momento, o primeiro relacionado à discussão sobre etnografia e o segundo sobre a ideia de subjetividade do pesquisador. Além disso, ressalto a reflexão sobre a complexidade do pensamento antropológico e sobre os desafios da sua escrita. Destaco também, que o autor está preocupado aqui em refletir sobre a ideia de contexto num sentido muito amplo, ou seja, enfatiza a forma como os contextos são mobilizados na vivência do pesquisador que nesses momentos, buscam realizar os primeiros registros etnográficos nas comunidades. Geertz, enfatiza a importância de confrontar outras realidades com as suas próprias, alargando a compreensão humana sobre as diferenças culturais Assim, aprofunda seu pensamento mergulhando na teia de relações entre essas camadas de contextos, que para ele precisa ser analisando de forma densa. Criando um texto complexo que interliga diferentes possibilidades de uso dessa categoria nas pesquisas de cunho etnográfico . Ampliando o campo de atuação do antropólogo. Já que a descrição densa pode ser visto, enquanto um guia de metodologia de escrita, pois, se constitui como o fio que tece o trabalho antropológico, levando-nos tanto à pesquisa de campo quanto à interpretações teóricas e possibilitando todo o trabalho de análise de dados do pesquisador. Finalizo, destacando que Geertz chama atenção em sua pesquisa para às singularidades e particularidades da vida social, nos estingando a pensar sobre as diferentes culturas.