Foto: Paulo Maia
Laise Maria da Silva
Débora Rejane Viana Sobral
Gil Marcos dos Santos Carvalho
Paulo Aírton Maia
Débora Rejane Viana Sobral
Gil Marcos dos Santos Carvalho
Paulo Aírton Maia
No âmbito do debate sobre bens
culturais e materiais, entendemos que todo patrimônio remete ao comportamento
humano e constitui uma referência a histórias. Situar historicamente a noção de
patrimônio requer, portanto, um olhar sobre a consagração, circunstanciada a
acontecimentos, pela prioridade e centralidade de projetos de identidades e de
sua relação com a memória social.
Desse modo, o estreitamento entre
temas tão abrangentes – Patrimônio, Memória e Identidades – se faz necessário
pela relação interdependente entre eles. Seria difícil tratar o patrimônio
cultural, por exemplo, sem considerar que, como um bem identitário de um grupo
social, foi construído ao longo do tempo, graças às práticas sociais e à
manutenção de tradições presentes na memória de tal grupo por gerações.
No caso da noção de patrimônio
material, Fonseca (1997), observando os processos de tombamentos abertos entre
1970 e 1990 no Brasil, adentra ao universo das apropriações suplementares do
termo, em processos e produtos, como decorrência do seu uso extensível e, ao
mesmo tempo, distinto no campo de proteção ao patrimônio. Assim, Fonseca (1997)
nos leva a perceber as modificações políticas da noção de patrimônio material
no âmbito nacional e internacional.
Ao focar certas questões sobre o
tema do patrimônio cultural e imaterial no Brasil, Gonçalves (1996) considera
importante a identificação da “matéria prima” fornecida por representações, da
história, da geografia, da biologia e de instituições produtivas e
reprodutivas, pela memória coletiva, por fantasias pessoais, pelos aparatos de
poder e revelações de cunho religioso (Castells, 1999). Segundo Gonçalves
(1996), a circulação de representações entre essas práticas ordinárias, resulta
numa objetificada representação do patrimônio, que o torna legítimo e legitima
outras existências.
Chagas (1997) salienta que
nessa construção cultural e política do patrimônio, acontece um jogo de
múltiplas oposições que resulta de um processo de construção que envolve outras
dimensões, como, por exemplo, o poder.
Daí, pensar a construção ou o reconhecimento do patrimônio, requer também
considerar as noções de espaço e tempo que abonam a sensatez ou lógica nos
processos sociais, e na fixação de valores.
É, portanto, a partir dessa
relação entre patrimônio e valores sociais que somos levados à possibilidade, à
necessidade e à conformação da noção de identidade como instrumento de fruição
da individuação e da conciliação mutua. Aqui, estamos interessados no
importante papel do patrimônio sobre a identidade de um povo, ou como este
processo de identificação ocorre a partir daí (Ennes e Marcon, 2015). Se
considerarmos, segundo Hall (2006), que as sociedades sofrem mudanças
constantes, rápidas e permanentemente, as identidades da sociedade moderna
também estão sendo fragmentadas, e sofrendo um deslocamento constante, sendo
importante analisarmos quais as implicações disto sobre a memória e o patrimônio.
Para Hall (2006) a modernidade
torna-se uma crise quando algo que se supunha como fixo, coerente e estável,
provoca um deslocamento na experiência cotidiana dos sujeitos e os leva a um
processo de dúvida e de incerteza. Por isso a identidade deve ser tomada como
uma questão importante a ser explorada. Sobretudo porque nessa sociedade a
fragmentação da identidade está relacionada a mudanças provocadas pelo fenômeno
da globalização que impacta sobre os processos de constituição das identidades
culturais.
As identidades, portanto,
constituem fontes de significado no processo de construção de individuação dos
sujeitos. Segundo Castells (2018), a identidade pode ser compreendida com uma
fonte de significado e de experiência de um povo. Trata-se também de um
processo de construção de significado com base em um atributo cultural ou de um
conjunto de atributos inter-relacionados.
Por isso compreendemos que um bem
cultural e material contribuem para a manutenção e continuidade das afirmações
de identidades culturais e dinamização das tradições, embora entendendo que
eles são acionados e reivindicados nos processos sociais e a partir das
relações de poder. Neste caso, as identidades seriam expressões fundamental de tais processos e relações que
ativam a memória social perante "os outros", uma vez que “as
identidades se constroem a partir de visões do passado, que funcionam como
pontos de referência para determinados grupos, e fornecem coerência, no tempo,
a seus quadros de representação simbólica” (Santana e Simões, 2015, p.90).
Halbwachs (1990) aponta que uma
memória mesmo sendo individual é construída a partir de uma relação que
pertença a um grupo, logo, segundo o mesmo, é impossível uma memória ser
exclusivamente individual. Para ele, a memória recebe diferentes influências
sociais e possui uma forma particular de articulação entre essas influências.
Quando a memória se torna coletiva, também se evidencia uma negociação sobre os
marcos desta memória, o que no sentido do debate sobre patrimônio seriam os
considerados bens tangíveis e intangíveis.
A memória, portanto, é seletiva
(Chagas, 1997) e, consequentemente, permeada por relações de poder e afeita ao
esquecimento (Ricouer, 2003). Sendo assim, consideramos que as disputas sobre a
memória são pautadas pela legitimação do que será escolhido para ser lembrado e
o que será deixado no esquecimento. Vale ressaltar, por outro lado, que segundo
Pollak (1989), o silêncio imposto a certos grupos e suas memórias relegadas ao esquecimento ou invisibilidade,
tornam-se uma resistência a memórias que se tornam impositivamente vitoriosas e
oficiais.
Pensando em um exemplo prático
sobre tais disputas de memória, podemos considerar as memórias constituídas
como narrativas, nas exposições de museus estatais, como um exemplo de como
certos grupo sociais hegemônicos selecionam as memórias que serão consideradas
como institucionais e que serão apresentadas silenciando as que não fazem parte
das formas de representações social consideradas oficiais.
Por fim, vale dizer que se o
patrimônio é uma representação da memória, é por meio dele que um grupo social
expressa suas identidades, atribui sentidos, gera sentimentos de pertença e
procura salvaguardar sua permanência no tempo. Quando alguns grupos sociais não
estão aí representados ou quando a representação sobre eles é invisibilizada,
inferiorizada ou desqualificada, a sua participação nas relações de poder são
desconsideradas. Entre os nossos desafios está a necessidade de compreendermos
como e em função de que estes processos ocorrem, principalmente nestes tempos
de disputas entre identidades mais fluídas, ambivalentes e descentradas versus
as concepções de identidades fixas, centradas e estáveis.
REFERÊNCIAS
CASTELLS, Manuel. O PODER DA
IDENTIDADE. Tradução: Klauss Brandini Gerhardt. São Paulo: Paz e Terra, 1999.
CHAGAS, Mario. MEMÓRIA E PODER:
dois movimentos. CADERNOS DE SOCIOMUSEOLOGIA, nº 19, 1997.
CHOAY, Françoise. A alegoria do
patrimônio. São Paulo: Editora UNESP, 2001.
ENNES, M. e MARCON, F. Das
Identidades aos Processos Identitários: repensando conexões entre cultura e
poder. Revista Sociologias. Porto Alegre: UFRGS, v. 15, n. 35, 2014.
FONSECA, Maria Cecília Londres. O
Patrimônio em Processo: Trajetória da Política Federal de Preservação no
Brasil. Rio de Janeiro: Edições UFRJ/IPHAN, 1997.
GONÇALVES, José Reginaldo Santos.
O patrimônio como categoria de pensamento. In. ABREU, Regina; CHAGAS, Mário
(orgs.). Memória e patrimônio: ensaios contemporâneos. 2ª ed. Rio de Janeiro:
Lamparina, pp.25-33, 2009.
HALL, Stuart. A identidade
cultural na pós-modernidade, Rio de Janeiro, DP&A, 2006.
HALBWACHS, Maurice. A Memória
coletiva. Trad. de Laurent Léon Schaffter. São Paulo, Vértice/Revista dos
Tribunais, 1990. Tradução de: La mémoire collective.
POLLAK, Michael. Memória,
esquecimento, silêncio. Estudos Históricos. Rio de Janeiro: CPDOC /FGV, v.2, n.
3, 1989.
RICOUER, Paul. Memória, história,
esquecimento. Haunting Memories? History in Europe after Authoritarianism,
Budapeste, 2003.
SANTANA, Gisane Souza; SIMÕES,
Maria de Lourdes Netto. Identidade, memória e patrimônio: a festa de Sant’Ana
do Rio do Engenho, Ilhéus (BA). Textos escolhidos de cultura e arte populares,
Rio de Janeiro, v.12, n.1, p. 87-102, mai. 2015.
WOODWARD, Kathryn. IDENTIDADE E
DIFERENÇA: UMA INTRODUÇÃO TEÓRICA E CONCEITUAL. In: SILVA, Tomaz Tadeu (org.)
HALL, Stuart; Woodward, Kathryn. Identidade e diferença. A perspectivas do
Estudos Culturais. Petrópolis: Editora Vozes, 2000.
2 comentários:
Olá pessoal, texto interessante, fruto das leituras do pessoal do GT Patrimônio, Memória e Identidades, que nos provoca a reflexão, na minha opinião, sobre dois aspectos centrais. O primeiro deles tem relação com o dilema entre da memória com algo a ser resgatado, recuperado ou selecionado e da memória como um processo de construção social implicada pelas experiências individuais e coletivas das relações sociais, no espaço-tempo. Neste sentido, pensar a memória de forma substancializada é também colocar em evidência uma memória, geralmente a da perspectiva hegemônica das disputas sociais, enquanto entendê-la como processual é pensá-la a partir das dinâmicas e das contradições sociais, em que se evidenciam as tensões, os conflitos e os múltiplos participantes e suas múltiplas perspectivas. o segundo é sobre esta relação entre memória e identidades e o modo com o qual se evidencia que as desigualdades e as disputas sociais que as geram, também são mediadas pelo que é considerado patrimônio histórico e cultural material ou imaterial, a partir do modo com os signos são solidificados e apropriados e significados como narrativas hegemônicas das memórias coletivas. A partir destas duas questões, eu gostaria de provocá-los sobre os tempos em vivemos e os fenômenos sociais que nos desafiam incluindo aí os vossos interesses e projetos de pesquisa. Como no debate sobre sobre memória, sobre patrimônio, sobre cultura popular, sobre produção cultural, sobre turismo, sobre política pública, sobre democracia ou sobre grupos sociais geracionais, sobre desigualdades de gênero, sobre relações de classe e sobre relações étnico-raciais, nós podemos pensar nesta relação entre estes dois conceitos memórias e identidades? Uma última questão, que tem relação direta com os tempos que correm, como analisarmos as disputas que estão ocorrendo em torno da memória social sobre o sentido de autoritarismo e democracia no Brasil, desde uma perspectiva não substancializada e polarizada? Quais os monumentos, acervos, museus e símbolos existentes no Brasil sobre este tema? Que narrativas temos aí? Como foi tratada esta memória e como ela afeta o debate atualmente?
Excelente provocação, Frank. Percebo as questões que você coloca como gatilhos que me inquietam e me levam a desejar seguir refletindo e abrindo, pelo menos em um primeiro momento, mais questões sobre as quais não havia sequer pensado antes. Gosto muito do questionamento sobre "as disputas em torno da memória social" e sua relação com nossa democracia. Creio que essa pergunta vale ouro, pois pra mim abre um campo de visão sobre o qual não tenho me aventurado e sobre o qual guardo grande interesse, a relação antropologia e política. Grato por suas obervações.
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