terça-feira, 31 de março de 2020

Patrimônio, Memória e Identidades


Foto: Paulo Maia




Laise Maria da Silva
Débora Rejane Viana Sobral
Gil Marcos dos Santos Carvalho
Paulo Aírton Maia

No âmbito do debate sobre bens culturais e materiais, entendemos que todo patrimônio remete ao comportamento humano e constitui uma referência a histórias. Situar historicamente a noção de patrimônio requer, portanto, um olhar sobre a consagração, circunstanciada a acontecimentos, pela prioridade e centralidade de projetos de identidades e de sua relação com a memória social.
Desse modo, o estreitamento entre temas tão abrangentes – Patrimônio, Memória e Identidades – se faz necessário pela relação interdependente entre eles. Seria difícil tratar o patrimônio cultural, por exemplo, sem considerar que, como um bem identitário de um grupo social, foi construído ao longo do tempo, graças às práticas sociais e à manutenção de tradições presentes na memória de tal grupo por gerações. 
No caso da noção de patrimônio material, Fonseca (1997), observando os processos de tombamentos abertos entre 1970 e 1990 no Brasil, adentra ao universo das apropriações suplementares do termo, em processos e produtos, como decorrência do seu uso extensível e, ao mesmo tempo, distinto no campo de proteção ao patrimônio. Assim, Fonseca (1997) nos leva a perceber as modificações políticas da noção de patrimônio material no âmbito nacional e internacional.
Ao focar certas questões sobre o tema do patrimônio cultural e imaterial no Brasil, Gonçalves (1996) considera importante a identificação da “matéria prima” fornecida por representações, da história, da geografia, da biologia e de instituições produtivas e reprodutivas, pela memória coletiva, por fantasias pessoais, pelos aparatos de poder e revelações de cunho religioso (Castells, 1999). Segundo Gonçalves (1996), a circulação de representações entre essas práticas ordinárias, resulta numa objetificada representação do patrimônio, que o torna legítimo e legitima outras existências.
Chagas (1997) salienta que nessa construção cultural e política do patrimônio, acontece um jogo de múltiplas oposições que resulta de um processo de construção que envolve outras dimensões, como, por exemplo, o poder.  Daí, pensar a construção ou o reconhecimento do patrimônio, requer também considerar as noções de espaço e tempo que abonam a sensatez ou lógica nos processos sociais, e na fixação de valores.
É, portanto, a partir dessa relação entre patrimônio e valores sociais que somos levados à possibilidade, à necessidade e à conformação da noção de identidade como instrumento de fruição da individuação e da conciliação mutua. Aqui, estamos interessados no importante papel do patrimônio sobre a identidade de um povo, ou como este processo de identificação ocorre a partir daí (Ennes e Marcon, 2015). Se considerarmos, segundo Hall (2006), que as sociedades sofrem mudanças constantes, rápidas e permanentemente, as identidades da sociedade moderna também estão sendo fragmentadas, e sofrendo um deslocamento constante, sendo importante analisarmos quais as implicações disto sobre a  memória e o patrimônio.
Para Hall (2006) a modernidade torna-se uma crise quando algo que se supunha como fixo, coerente e estável, provoca um deslocamento na experiência cotidiana dos sujeitos e os leva a um processo de dúvida e de incerteza. Por isso a identidade deve ser tomada como uma questão importante a ser explorada. Sobretudo porque nessa sociedade a fragmentação da identidade está relacionada a mudanças provocadas pelo fenômeno da globalização que impacta sobre os processos de constituição das identidades culturais.
As identidades, portanto, constituem fontes de significado no processo de construção de individuação dos sujeitos. Segundo Castells (2018), a identidade pode ser compreendida com uma fonte de significado e de experiência de um povo. Trata-se também de um processo de construção de significado com base em um atributo cultural ou de um conjunto de atributos inter-relacionados.
Por isso compreendemos que um bem cultural e material contribuem para a manutenção e continuidade das afirmações de identidades culturais e dinamização das tradições, embora entendendo que eles são acionados e reivindicados nos processos sociais e a partir das relações de poder. Neste caso, as identidades seriam expressões  fundamental de tais processos e relações que ativam a memória social perante "os outros", uma vez que “as identidades se constroem a partir de visões do passado, que funcionam como pontos de referência para determinados grupos, e fornecem coerência, no tempo, a seus quadros de representação simbólica” (Santana e Simões, 2015, p.90).
Halbwachs (1990) aponta que uma memória mesmo sendo individual é construída a partir de uma relação que pertença a um grupo, logo, segundo o mesmo, é impossível uma memória ser exclusivamente individual. Para ele, a memória recebe diferentes influências sociais e possui uma forma particular de articulação entre essas influências. Quando a memória se torna coletiva, também se evidencia uma negociação sobre os marcos desta memória, o que no sentido do debate sobre patrimônio seriam os considerados bens tangíveis e intangíveis.
A memória, portanto, é seletiva (Chagas, 1997) e, consequentemente, permeada por relações de poder e afeita ao esquecimento (Ricouer, 2003). Sendo assim, consideramos que as disputas sobre a memória são pautadas pela legitimação do que será escolhido para ser lembrado e o que será deixado no esquecimento. Vale ressaltar, por outro lado, que segundo Pollak (1989), o silêncio imposto a certos grupos e suas  memórias relegadas ao esquecimento ou invisibilidade, tornam-se uma resistência a memórias que se tornam impositivamente vitoriosas e oficiais.
Pensando em um exemplo prático sobre tais disputas de memória, podemos considerar as memórias constituídas como narrativas, nas exposições de museus estatais, como um exemplo de como certos grupo sociais hegemônicos selecionam as memórias que serão consideradas como institucionais e que serão apresentadas silenciando as que não fazem parte das formas de representações social consideradas oficiais.
Por fim, vale dizer que se o patrimônio é uma representação da memória, é por meio dele que um grupo social expressa suas identidades, atribui sentidos, gera sentimentos de pertença e procura salvaguardar sua permanência no tempo. Quando alguns grupos sociais não estão aí representados ou quando a representação sobre eles é invisibilizada, inferiorizada ou desqualificada, a sua participação nas relações de poder são desconsideradas. Entre os nossos desafios está a necessidade de compreendermos como e em função de que estes processos ocorrem, principalmente nestes tempos de disputas entre identidades mais fluídas, ambivalentes e descentradas versus as concepções de identidades fixas, centradas e estáveis. 

REFERÊNCIAS
CASTELLS, Manuel. O PODER DA IDENTIDADE. Tradução: Klauss Brandini Gerhardt. São Paulo: Paz e Terra, 1999.
CHAGAS, Mario. MEMÓRIA E PODER: dois movimentos. CADERNOS DE SOCIOMUSEOLOGIA, nº 19, 1997.
CHOAY, Françoise. A alegoria do patrimônio. São Paulo: Editora UNESP, 2001.
ENNES, M. e MARCON, F. Das Identidades aos Processos Identitários: repensando conexões entre cultura e poder. Revista Sociologias. Porto Alegre: UFRGS, v. 15, n. 35, 2014.
FONSECA, Maria Cecília Londres. O Patrimônio em Processo: Trajetória da Política Federal de Preservação no Brasil. Rio de Janeiro: Edições UFRJ/IPHAN, 1997.
GONÇALVES, José Reginaldo Santos. O patrimônio como categoria de pensamento. In. ABREU, Regina; CHAGAS, Mário (orgs.). Memória e patrimônio: ensaios contemporâneos. 2ª ed. Rio de Janeiro: Lamparina, pp.25-33, 2009.
HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade, Rio de Janeiro, DP&A, 2006.
HALBWACHS, Maurice. A Memória coletiva. Trad. de Laurent Léon Schaffter. São Paulo, Vértice/Revista dos Tribunais, 1990. Tradução de: La mémoire collective.
POLLAK, Michael. Memória, esquecimento, silêncio. Estudos Históricos. Rio de Janeiro: CPDOC /FGV, v.2, n. 3, 1989.
RICOUER, Paul. Memória, história, esquecimento. Haunting Memories? History in Europe after Authoritarianism, Budapeste, 2003.
SANTANA, Gisane Souza; SIMÕES, Maria de Lourdes Netto. Identidade, memória e patrimônio: a festa de Sant’Ana do Rio do Engenho, Ilhéus (BA). Textos escolhidos de cultura e arte populares, Rio de Janeiro, v.12, n.1, p. 87-102, mai. 2015.
WOODWARD, Kathryn. IDENTIDADE E DIFERENÇA: UMA INTRODUÇÃO TEÓRICA E CONCEITUAL. In: SILVA, Tomaz Tadeu (org.) HALL, Stuart; Woodward, Kathryn. Identidade e diferença. A perspectivas do Estudos Culturais. Petrópolis: Editora Vozes, 2000.

2 comentários:

Frank Marcon disse...

Olá pessoal, texto interessante, fruto das leituras do pessoal do GT Patrimônio, Memória e Identidades, que nos provoca a reflexão, na minha opinião, sobre dois aspectos centrais. O primeiro deles tem relação com o dilema entre da memória com algo a ser resgatado, recuperado ou selecionado e da memória como um processo de construção social implicada pelas experiências individuais e coletivas das relações sociais, no espaço-tempo. Neste sentido, pensar a memória de forma substancializada é também colocar em evidência uma memória, geralmente a da perspectiva hegemônica das disputas sociais, enquanto entendê-la como processual é pensá-la a partir das dinâmicas e das contradições sociais, em que se evidenciam as tensões, os conflitos e os múltiplos participantes e suas múltiplas perspectivas. o segundo é sobre esta relação entre memória e identidades e o modo com o qual se evidencia que as desigualdades e as disputas sociais que as geram, também são mediadas pelo que é considerado patrimônio histórico e cultural material ou imaterial, a partir do modo com os signos são solidificados e apropriados e significados como narrativas hegemônicas das memórias coletivas. A partir destas duas questões, eu gostaria de provocá-los sobre os tempos em vivemos e os fenômenos sociais que nos desafiam incluindo aí os vossos interesses e projetos de pesquisa. Como no debate sobre sobre memória, sobre patrimônio, sobre cultura popular, sobre produção cultural, sobre turismo, sobre política pública, sobre democracia ou sobre grupos sociais geracionais, sobre desigualdades de gênero, sobre relações de classe e sobre relações étnico-raciais, nós podemos pensar nesta relação entre estes dois conceitos memórias e identidades? Uma última questão, que tem relação direta com os tempos que correm, como analisarmos as disputas que estão ocorrendo em torno da memória social sobre o sentido de autoritarismo e democracia no Brasil, desde uma perspectiva não substancializada e polarizada? Quais os monumentos, acervos, museus e símbolos existentes no Brasil sobre este tema? Que narrativas temos aí? Como foi tratada esta memória e como ela afeta o debate atualmente?

Paulo Maia disse...

Excelente provocação, Frank. Percebo as questões que você coloca como gatilhos que me inquietam e me levam a desejar seguir refletindo e abrindo, pelo menos em um primeiro momento, mais questões sobre as quais não havia sequer pensado antes. Gosto muito do questionamento sobre "as disputas em torno da memória social" e sua relação com nossa democracia. Creio que essa pergunta vale ouro, pois pra mim abre um campo de visão sobre o qual não tenho me aventurado e sobre o qual guardo grande interesse, a relação antropologia e política. Grato por suas obervações.