sábado, 9 de março de 2024

O Antropólogo como Autor


GEERTZ, Clifford. Obras e vidas: o antropólogo como autor. 1ª ed. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 2002. 

GEERTZ, Clifford. Works and lives: the anthropologist as author. 1ª ed. Stanford, California: Stanford University Press, 1988. 


Por Gabriela Losekan 

Doutoranda em Sociologia (PPGS/UFS) 

Bolsista CAPES e Membro GERTS 

Logo no prefácio de Obras e vidas: o antropólogo como autor (2002), Clifford Geertz esclarece dois pontos importantes para a compreensão da sua argumentação ao longo do livro: o termo antropologia é usado como equivalente a trabalhos etnográficos e, embora questões biográficas e históricas sejam relevantes para a discussão sobre esse tipo de trabalho, sua principal intenção é compreender como antropólogos escrevem. Em síntese, sua argumentação é orientada aos aspectos textuais presentes em determinados trabalhos etnográficos, escritos por Claude Levi-Strauss, Edward Evan Evans-Pritchard, Bronislaw Malinowski, e Ruth Benedict. Então, além do capítulo que inicia o livro, Estar lá, e o capítulo que o encerra, Estar aqui, cada capítulo que compõe o desenvolvimento do livro é dedicado a um autor e obra em específico. Nesse sentido, essa resenha se limita ao capítulo inicial e final da obra.

No primeiro capítulo, Estar lá, Geertz nos provoca a pensar sobre os possíveis sentidos literários da escrita antropológica ao indagar o que faz com que textos etnográficos sejam persuasíveis. Na sua visão, a extensão de descrições etnográficas e seus argumentos teóricos, sozinhos, não são capazes de convencer de que o que o antropólogo diz, resulta de ter estado lá, “em contato estreito com vidas distantes” (p 17). Para que isso ocorra, a escrita é essencial pois, “impossibilitados de recuperar os dados imediatos do trabalho de campo para uma reinspeção empírica” (p. 17), é o aspecto do trabalho etnográfico que fará com que alguns etnógrafos sejam mais eficientes em transmitir suas impressões em texto e, com isso, mais ouvidos pela comunidade acadêmica e demais leitores. 

Após situar o leitor sobre a relevância da escrita para o trabalho etnográfico, Geertz passa a argumentar sobre a função do antropólogo enquanto autor do texto etnográfico. Nesse ponto, ele conduz às seguintes discussões que emergem da análise literária de textos etnográficos: a questão da assinatura enquanto construção de uma identidade autoral, e a questão do discurso, um modo de enunciar as coisas relacionado a essa identidade. A questão da assinatura, isto é, a presença (ou tentativa de disfarce) autoral em um trabalho etnográfico esteve relacionada com um problema epistemológico, “impedir que visões subjetivas distorçam fatos objetivos” (p. 21). Um impasse comumente relacionado ao trabalho de campo e à descrição etnográfica enquanto método, e não ao discurso que está implicado na escrita de “textos ostensivamente científicos a partir de experiência em grande parte biográficas” (p. 22). 

Admitir que os textos etnográficos “tendem a parecer romances, pelo menos tanto quanto laudos laboratoriais” (p. 20), ao mesmo tempo que permite pensar a questão da assinatura, estabelece um dilema: a oscilação entre a postura do “físico não-autoral” e do “romancista hiper autoral”, sem de fato permitir nenhum dos dois. Isso demonstra a dificuldade que o antropólogo enfrenta ao tentar se situar “num texto do qual, ao mesmo tempo, espera-se que seja uma visão íntima e uma avaliação fria” (p. 22). Para elucidar esse impasse, Geertz traz dois exemplos de autores que abordaram diretamente o dilema da assinatura em suas obras: o livro de Raymond Firth, We, the Tikopia, originalmente publicado em 1936, e o livro de Loring Danforth, The death rituals of rural Greece, publicado em 1982. Apesar das diferenças de posicionamento dos autores no texto - Firth preocupado com a neutralidade científica e Danforth, com um engajamento mais humanista -, Geertz destaca que ambos autores conseguiram nos convencer de que estiveram lá e “de que se houvéssemos estado lá, teríamos visto o que viram, sentido o que sentiram e concluído o que concluíram” (p. 29). 

Para abordar a questão do discurso nos textos etnográficos, Geertz mobiliza o ensaio foucaultiano, Que é um autor? e o texto de Roland Barthes, Autores e escritores. Em síntese, Foucault diferencia autores que são fundadores da discursividade, isto é, autores que quando produziram suas obras produziram algo mais (um teoria, uma tradição, uma disciplina...), e autores que são produtores de textos particulares. Por outro lado, Barthes diferencia autores que escrevem e escritores que escrevem algo. Para o autor, a escrita, ou a linguagem, se constituiu numa práxis, enquanto para o escritor, é meramente um meio. Nesse ponto sobre a questão do discurso, novamente um dilema: na visão de Geertz, o discurso antropológico continua “empacado” entre a alternativa do discurso propriamente literário e do discurso propriamente científico. Em síntese, “a incerteza que aparece, em termos da assinatura, até que ponto e de que maneira invadir o próprio texto, aparece, em termos do discurso, como até que ponto e de que maneira compô-lo imaginativamente” (p. 34-35). 

Se no primeiro capítulo, Geertz argumenta sobre a importância de pensar a assinatura e o discurso na escrita do texto etnográfico, no último capítulo, Estar aqui, o autor tece reflexões sobre as consequências de “(...) olhar para os textos de etnografia, além de olhar através deles” (p. 181, grifos do autor). O ponto central do capítulo é a discussão sobre o papel e o futuro da antropologia frente às reorganizações políticas do mundo, momento em que já não é mais possível fugir do ônus da autoria, uma vez que “(...) as fundações morais da etnografia foram abaladas do lado do Estar lá, pela descolonização” (p. 117) e “suas fundações epistemológicas foram abaladas, do lado do Estar aqui, por uma perda generalizada da confiança nas histórias aceitas sobre a natureza da representação” (p. 177). Nesse contexto, Geertz levanta dois questionamentos: quem deve ser convencido hoje em dia e convencido de quê? Tendo em vista que os objetos de estudo que estão lá e o público que está aqui não são mais separáveis ou moralmente desvinculados. 

Para Geertz, mesmo nesse novo contexto, a tarefa do etnógrafo continua sendo demonstrar que os relatos sobre como vivem os outros podem transmitir convicção. Para tanto, “o vínculo textual entre as facetas do Estar Lá e do Estar Aqui da antropologia, a construção imaginativa de um terreno comum entre o Escrito A e o Escrito Sobre (...) é a fons et origo de qualquer capacidade que tenha a antropologia de convencer alguém de alguma coisa” (p. 188). Em que pesem as críticas aos textos escolhidos, à análise literária decorrente deles e, incluso, à estilística argumentativa do autor (Massi, 1992; Peirano, 1989), o leitor é convencido de que é preciso resgatar a análise textual do texto etnográfico para compreender como “(...) os processos literários afetam o modo pelo qual os fenômenos culturais são percebidos e apresentados” (Massi, 1992, p. 166), especialmente frente aos dilemas morais, políticos e epistemológicos que emergem das mudanças políticas do mundo. Por fim, o que ainda está disponível para o antropólogo? Escreve Geertz: “(...) facultar a conversa através de linhas societárias – de etnia, religião, classe, sexo, língua, raça – que se tornaram progressivamente mais matizadas, mais imediatas e mais irregulares” (p. 191-192). 

Referências

 MASSI, Fernanda. As estratégias textuais de Clifford Geertz. Cadernos de Campo, São Paulo, v. 4, n. 3, p. 166-168, 1992. Disponível em: https://lecturayescrituraunrn.files.wordpress.com/2017/03/resec3b1a-geertz-massi.pdf. Acesso em: 05/03/2024. 

PEIRANO, Mariza. Só para iniciados. Estudos Históricos, Rio de Janeiro, v. 3, n. 5, p. 93-102, 1990. Disponível em: https://www.academia.edu/52674522/S%C3%B3_para_iniciados. Acesso em: 05/03/202

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