quinta-feira, 12 de junho de 2014

Resenha - Reagregando o Social - Bruno Latour

A PERSPECTIVA DO ATOR-REDE
(Bruno Latour)

Por Daniela Bezerra

"O argumento deste livro pode ser definido de maneira simples: quando os cientistas sociais acrescentam o adjetivo “social” a um fenômeno qualquer, aludem a um estado de coisas estável, a um conjunto de associações que, mais tarde, podem ser mobilizadas para explicar outro fenômeno. [...] O que tenciono fazer no presente livro é mostrar por que o social não pode ser construído como uma espécie de material ou domínio e assumir a tarefa de fornecer uma “explicação social” de algum outro estado de coisa " (LATOUR, 2012, p. 17-18).

Talvez a leitura do enunciado tenha provocado em alguns a mesma reação que tivemos ao primeiro contato com obra Reagregando o social: uma introdução a teoria do ator-rede de Bruno Latour. Certamente a sentença “o social não pode ser construído” causa impacto, e o argumento usado pelo autor para chegar a tal conclusão desperta dúvidas, sobretudo, com relação a maneira em que percebemos e nos propomos a estudar o mundo ao nosso redor. Será que olhamos para esse mundo dinâmico em que vivemos com o mesmo olhar e pretensão que tinham os primeiros pensadores da sociologia?
Em Latour, como nos alerta o enunciado, encontramos uma proposta de redefinição daquilo que para nós, sociólogos, seria tão claro, tão fácil de identificar: o social.  O autor critica a maneira como os cientistas sociais trabalham com esse termo, pois da forma que é apresentado comumente, transmite a falsa idéia de que é possível encontrar com facilidade um conjunto de associações que podem fornecer explicações para um dado fenômeno. Retomando ao significado etimológico da palavra sociologia, Latour explica o seu posicionamento: socio - logia significa ciência do social e esse é justamente o foco do problema. Nem a sociedade é estável e nem a ciência, portanto, o objeto e a metodologia das ciências sociais precisam passar por uma nova roupagem.
Podemos então nos perguntar: “que vem a ser uma sociedade? Que significa a palavra social? Por que se diz que determinadas atividades apresentam uma dimensão social? Como alguém demonstra a presença de fatores sociais operando? Quando o estudo da sociedade ou de outro agregado social se torna profícuo?” (LATOUR, 2012). Para responder as tais indagações Latour recorre a duas abordagens da sociologia, uma que chama de tradicional e outra de associativa. A primeira reflete, segundo ele, uma posição de senso comum, a idéia de que a sociedade está presente em tudo, de que vamos estudar e compreender o “contexto social” ou a “estrutura social” ou ainda os “fatores sociais” que levam a tal ou qual fenômeno. “Comentar a inevitável dimensão social daquilo que nós e os outros fazemos em sociedade tornou-se tão corriqueiro quanto usar um celular, pedir uma cerveja ou discorrer sobre o complexo de Édipo” (21).  Na segunda perspectiva, não existe ordem social, contexto social, força social.  É cair na idéia de que a sociedade não existe, contudo, o social pode ser entendido como associações entre elementos distintos, “um tipo de conexão que não são em si mesmas sociais”.
O “social” é então entendido como movimento de reassociação e reagregação, ou seja, está longe do estável, do estagnado. A proposta de Latour é encontrar uma alternativa para a sociologia, que não se desprenda por completo do seu “apelo tradicional”, pois reconhece que a sociologia do social é útil quando buscamos compreender os elementos já aceitos na esfera coletiva. Mas quando adentramos nas mudanças trazidas pela inovação tecnológica e até mesmo as questões de grupo (os limites de suas fronteiras) essa sociologia não dá conta de perceber as associações exigentes.
A teoria do ator -rede – ou ANT – surge nesse contexto: da necessidade em vincular a teoria social a estudos de tecnologia. Segundo essa teoria, precisamos perceber as amarrações existentes entre humanos e não humanos, homens e objetos são vistos aqui como igualmente capazes de gerar significados. O entendimento de redes está relacionado a idéia de que existem vários fios que nos conectam, sem necessariamente formar uma unidade, mas sim um processo contínuo de associações.
A teoria do ator - rede postula ainda que definir ou ordenar o social é tarefa dos próprios atores e não dos analistas, no lugar de priorizar a compreensão da ordem, buscar perceber as conexões. “É como se disséssemos o atores: ‘não vamos tentar disciplinar vocês, enquadrá-los em nossas categorias; deixaremos que se atenham os seus próprios mundos e só então pediremos sua explicação sobre o modo como os estabeleceram’” (LATOUR, 44).
Por seu alto nível de abstração, a ANT pode parecer a primeira vista algo irreal para ciência. Mas daí o autor mais uma vez nos leva a refletir: “por que somente a sociologia estaria proibida de inventar seu próprio caminho e obrigada a ater-se ao óbvio? (LATOUR, 45).
Na primeira parte do livro intitulada Como desdobrar controvérsias sobre o mundo social, encontramos algumas críticas do autor ao fato das ciências sociais terem deixado de lado algumas das associações existentes. Nessa parte Latour expõe as 5 grandes incertezas: sobre a natureza do grupos, das ações, dos objetos, dos fatos e dos tipos de estudos realizados sob o rótulo de social. Também apresenta as dificuldades em aplicar a metodologia da ANT. daremos atenção especial nesse resumo as duas primeiras fontes de incerteza.
Na primeira fonte – “não há grupos, apenas formação de grupos” – a crítica de Latour é direcionada a tendência da sociologia em procurar enquadrar os atores sociais em grupos, o que acaba influenciando a pesquisa social, já que delimita a própria extensão da pesquisa. “A primeira característica do mundo social é o constante empenho de alguns em desenhar fronteiras que os separem de outros” (51). Ele chama a nossa atenção para o fato de que a sociologia tem dado maior atenção em encaixar os atores em entidades do que em perceber as associações. É como se deixássemos de lado a constatação de que existem inúmeras formações de grupos, algumas inclusive, contraditórias.
O que o autor apresenta aqui é o primeiro passo do método da ANT: rastrear as pistas deixadas pelos atores em suas associações. A função do cientista social não é dá estabilidade ao social, e a idéia de grupo fixo sustenta isso. É antes, buscar perceber as conexões existentes, as associações feitas. Chegamos então a primeira fonte de incerteza: “não há grupo relevante ao qual possa ser atribuído o poder de compor agregados sociais e não há componente estabelecido a ser utilizado como ponto de partida incontroverso” (LATOUR, 2012; 52).
A aplicação dessa metodologia no momento atual, onde não encontramos na sociologia um consenso geral do que representaria um agrupamento, seria até mesmo uma tarefa mais fácil. Os trabalhos desenvolvidos dessa maneira conseguem ter mais sucesso na percepção das controvérsias na formação dos grupos, nas disputas e nos recursos mobilizados para esse feito.
Latour nos convida a perceber que em sua formação, os grupos deixam traços que podemos perseguir. Primeiramente podemos observar que na delimitação de um grupo há sempre aqueles que falam sobre ele, o que deveria ser ou o que forma precisa assumir. Estes são os que costumeiramente justificam a existência do grupo. “Não existe grupo sem oficial de recrutamento. Não há rebanhos de ovelhas sem o seu pastor” (LATOUR, 2012; 55).
Um segundo traço tem a ver com o fato de que no percurso de construção de um grupo sempre são expostos antigrupos, o que eles não são. O delineamento de grupos é uma tarefa dos próprios atores, o que ao pesquisador é vantajoso, pois mostra como os atores sociais mapeiam o “contexto social”. O pesquisador que trabalha com a ANT percebe que está, “em termos de reflexividade, sempre um passo atrás daqueles que estuda” (57).
Em terceiro, as fronteiras são marcadas, defendidas e conservadas, essa é uma maneira de tornar segura a definição do grupo. Por fim, muitos porta vozes permitem a definição durável de um grupo, estes podem ser um cientista social, um estatístico, um jornalista, entre outros. Esses quatro traços apresentados acima constituem, portanto, conexões sociais possíveis de serem estudadas, mais informativas e reais do que partir de um grupo supostamente bem delimitado. De acordo o autor, os teóricos do social seguem a tendência “de apelar para a inércia social” (59), mas os da ANT percebem que os grupos são feitos e refeitos constantemente, é uma definição performativa.
Na segunda fonte de incerteza – “a ação é assumida” – Latour afirma que o ator não é a fonte da ação, mas é “alvo de um amplo conjunto de entidades que enxameiam em sua direção” (LATOUR, 2012; 75). Usar a expressão ator significa que não se sabe quem está de fato atuando, a fonte de incerteza está na própria origem da ação. “A incerteza deve permanecer como tal o tempo todo, pois não vamos afirmar pressurosamente que os atores talvez não saibam o que fazem, enquanto nós, cientista sociais, conhecemos a existência de uma força social capaz de obrigá-los a fazer as coisas sem querer” (LATOUR, 2012; 76).
Mas aí também encontramos um problema: priorizar as variáveis ocultas de uma ação. O alerta dado por Latour é referente aos perigos de substituir uma expressão precisa por aquilo que é implícito a ela. Por exemplo: um criminoso que diz, “não tenho culpa, meus pais eram cruéis”. E nós, enquanto cientistas sociais, dizemos: “a sociedade fez dele um assassino”, ou “ele tenta justificar o erro”, ou ainda, “ele é produto de um conjunto e ações cruéis de seus pais”. Quando na verdade ele só disse: “não tenho culpa, meus pais eram cruéis”. Isso significaria que devemos deixar de lado as tentativas de apreender as variáveis ocultas? Não. Mas precisamos dá ênfase também aos outros impulsos da ação.
Segundo o autor não saberemos ao certo o que nos levou a agir, mas podemos identificar alguns argumentos explicativos da ação: são parte de um relato, e, portanto, responsáveis por um efeito; possuem uma figura qualquer, ou seja, a ação possui uma imagem ou corpo que nos proíbe ou exige fazer algo; também aparece opondo-se a outras ações e são acompanhadas por uma teoria da ação, inclusive dos próprios atores da ação.
Se aceitamos a premissa de que existe um sentido claro para a ação, ou seja, de que ela acontece por um motivo conhecido, óbvio, a sociologia poderá ser vista como uma disciplina que induz alguém a fazer alguma coisa. Como então proceder? Latour responde: “temos de tomar uma decisão, caso desejemos estabelecer conexões sociais de maneiras novas e interessantes: ou nos afastamos dos analistas que só dispõem de uma metafísica completa ou ‘seguimos os próprios atores’, que apelam para muitas”.

LATOUR, B. Reagregando o social: uma introdução à teoria do ator-rede. Salvador: EDUFBA-EDUSC, 2012.

Um comentário:

Liz Miranda disse...

Um autor de escrita vigorosa e difícil. Obrigada por auxiliar no meu entendimento.