terça-feira, 6 de junho de 2023

Jovens Mulheres e o Direito à Cidade a partir da prática do Surfe e do Skate em Aracaju

 Por Letícia Oliveira Feijão Galvão[1]

 

Na contemporaneidade, a emergência de novas narrativas identitárias e as disputas e sentidos que estas atribuem ao espaço público têm ocupado relevantes campos de pesquisa nas ciências sociais. Durante a minha trajetória acadêmica, venho estudando múltiplas formas de agências juvenis e como essas agências se articulam a elementos presentes no cotidiano de parte das juventudes sergipanas contemporâneas. Atualmente, minha proposta de pesquisa de doutorado se baseia em trazer para análise categorias como corpo, gênero e cidade a partir das microculturas juvenis que se formam através da prática do surfe e do skate (ou skateboarding) na cidade de Aracaju. Mais precisamente, como a prática de ambos os esportes pode agir como um recurso de reivindicação feminina do espaço urbano[2] e qual é o papel da ação coletiva nesse contexto.

Foto da autora - 2022

Para viabilizar essas investigações, utilizo alguns textos sociológicos e antropológicos que dialogam com as minhas principais questões de pesquisa. Aqui, apresentarei algumas contribuições de dois deles: o livro A invenção do cotidiano: artes de fazer, de Michel de Certeau, e o texto Ondas, cenas e microculturas juvenis, de Victor Sérgio Ferreira. Meu intuito é mostrar como ambas as produções apresentam conceitos centrais para pensar como o direito à cidade é reivindicado pelas mulheres que se associam a coletivos voltados ao surfe, ao skate e aos estilos de vida que se estruturam a partir dessas práticas.

Em Ondas, cenas e microculturas juvenis, Ferreira (2008) define, a partir de uma leitura do antropólogo Carles Feixa, as microculturas como “contextos sociais onde ocorrem fluxos de significados e valores manejados por pequenos grupos de jovens na vida cotidiana, atendendo a situações locais concretas” (FEIXA apud FERREIRA, 2008, p. 101). O autor pontua, também, que as microculturas contemporâneas não respondem às dinâmicas sociais que as rodeiam como os “rituais de resistência" (HALL; JEFFERSON, 2003) das décadas passadas: segundo Ferreira (2008, p. 102), no lugar de um estilo de vida contestatório e militante, “passa a existir um estilo de vida celebratório, orientado por uma ética de existência que cultiva valores hedonistas, experimentalistas, presenteístas e convivialistas, no sentido do alargamento das possibilidades de expressão individual”. Podemos pensar os estilos de vida que se estruturam a partir de práticas cotidianas - como o surfe e o skate, por exemplo - como parte desse fenômeno.

Já em A invenção do cotidiano: artes de fazer, Michel de Certeau investiga como os sujeitos intervêm material e simbolicamente nas suas respectivas realidades a partir de “estratégias” e “táticas” estabelecidas nesses contextos. É precisamente no terceiro capítulo dessa obra em que o autor situa o que seriam essas estratégias e táticas, que estruturam as “artes de fazer” - modos de “caminhar, ler, produzir, falar etc.” (CERTEAU, 2014, p. 87) presentes no cotidiano dos agentes. Em Fazer com: usos e táticas, Certeau aponta o que distingue ambos os movimentos e quais são os seus efeitos na vida social.

É importante frisar que Certeau situa, em primeiro lugar, o papel do consumo nessa dinâmica, como sendo caracterizado sobretudo por suas “astúcias”; pela possibilidade de inversão de signos e práticas estabelecidos hierarquicamente no cotidiano. Em seguida, Certeau busca destrinchar a ideia de estratégia: segundo ele, a estratégia seria o cálculo ou a manipulação das relações de forças exercidas por sujeitos de poder. A estratégia é uma conduta necessariamente hierárquica, cartesiana, manifesta pelos “poderes invisíveis do Outro” (CERTEAU, 2014, p. 93).

As táticas, por sua vez, seriam justamente o oposto: seria um “movimento dentro do campo de visão do inimigo”, uma “arte do fraco” (CERTEAU, 2014, p. 94). Dessa forma, se as estratégias são estabelecidas de forma a propagar relações de poder, as táticas são as práticas que subvertem essa relação; são as possibilidades de construção de outras formas de consumir, de ser e estar nos espaços públicos e privados. Como posto pelo autor (2014, p. 97), “a tática é determinada pela ausência de poder, assim como a estratégia é organizada pelo postulado de um poder”. 

Diante do exposto, é possível associar utilizar tanto a noção de microculturas juvenis, pensada por Ferreira, quanto os conceitos de artes de fazer, estratégias e táticas trabalhados por Certeau para analisar sociologicamente as relações entre mulheres, esportes, estilos de vida e espaço público em Aracaju. Quando pensamos no direito à cidade, é pertinente que pensemos, também, nas possibilidades de ação - ou, mais precisamente, nas artes e astúcias de reinvenção da cidade, como propõe Diógenes (2020) - que engendram práticas cotidianas capazes de desafiar estruturas de poder presentes no espaço público.


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BARROS, Erna. “Uma cidade muda não muda”: mulheres, graffiti e espaços urbanos hostis. Tese (Doutorado em Sociologia). Universidade Federal de Sergipe, 2020.

CERTEAU, Michel de. Fazer com: usos e táticas. In: A invenção do cotidiano: 1. Artes de fazer. 22. ed. Petrópolis: Vozes, 2014.

DIÓGENES, Glória. Diagramas da Juventude Contemporânea: Artes e Astúcias de Reinvenção da cidade. In: Juventudes Contemporâneas: Desafios e Expectativas em Transformação. Rio de Janeiro: Editora Telha, 2020. 

FERREIRA, Victor Sérgio. Ondas, cenas e microculturas juvenis. PLURAL, Revista do Programa de Pós‐Graduação em Sociologia da USP, São Paulo, v.15, 2008, pp.99‐128.

HALL; JEFFERSON, Tony (orgs.). Resistance through rituals: youth subcultures in post-war Britain. London: Routledge, 2003.

 



[1] Graduada em Ciências Sociais e Mestre em Sociologia pelo Programa de Pós-Graduação em Sociologia da Universidade Federal de Sergipe (PPGS/UFS). Membro do Grupo de Estudos Culturais, Identidades e Relações Interétnicas (GERTs).

 [2] Parto da hipótese de que, como estudado por Barros (2020), os espaços da cidade são pensados a partir de uma lógica e de um modelo masculinos, sendo o corpo feminino socializado para “pertencer” ao âmbito privado. Nesse sentido, haveria um duplo processo de disputa por reconhecimento por parte das mulheres que se associam ao surfe e ao skate: um primeiro por serem mulheres a ocupar o espaço público, e um segundo por serem mulheres em esportes hegemonicamente masculinos.

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