Daniela Nogueira Amaral
Danielle Parfentieff de Noronha
Tânia Carolina Viana de Oliveira
O
texto que constitui o terceiro capítulo do livro Dimensões Culturais da
Globalização de Arjuna Apadurai tem o sugestivo título de Etnopaisagens
globais: notas e perguntas para uma antropologia transnacional. A partir do
neologismo etnopaisagens, o autor enfatiza,
ao tempo que esclarece, um outro modo e um novo olhar sobre aquilo que até
então era preponderantemente a forma mais corrente de se fazer antropologia, afinal,
a perspectiva na qual se move e se detém o observador para explorar o seu
objeto de análise afeta também aquilo que se observa - etnopaisagens que
reverberam diferentemente para aqueles que clicam aspectos diferenciados de
suas nuances. Em outros termos, e atualmente de maneira mais paroxista, o
antropólogo que trabalha tendo como instrumento de investigação o estudo etnográfico,
no instante mesmo de focar o outro, interfere no modo de percepção e, ousamos dizer,
até de tradução desse outro. Sabemos que de certa maneira esse imbróglio
metodológico já há muito é discutido e enfatizado como constitutivo das
relações que nas ciências humanas envolvem subjetividade, escolha e valores no
complexo universo do que se concebe como neutralidade axiológica e objetividade
científica. Entretanto, essa perspectiva surge de modo mais contundente,
sobretudo, num tempo em que os engessamentos de uma cultura localizada vêem-se
perpassados por fluxos de vidas que migram, deslocam-se, abrem-se para outras
realidades; vidas que, às vezes, sentadas diante das telas de TV ou de cinema, incorporam
as histórias contadas às suas próprias histórias particulares, à medida que fruem,
disseminam, ressignificam modos, modas,
idéias e ideais . Nesse aspecto, coloca-se,
senão em xeque, ao menos sob outra ótica, práticas analíticas que devem
abranger movimentos interativos os mais diversos dentro da dinâmica que opera
com uma desterritorialização que afeta
perfis culturais e, outrossim, evidencia o conteúdo fictício que os sedimenta
no imaginário daqueles que nesses perfis se re-conhecem.
Assim,
no texto de Apadurai, o antropólogo que se detém sobre as vidas que em trânsito
se refratam, lembrando-nos daquilo que Eduard Said nomeia como geografias pessoais, ou, dizendo
de outra forma, o antropólogo que se debruça sobre o movediço espaço da desterritorialização,
vê-se instado a conduzir um modus operandi diverso no seu registro etnográfico
e, antes de fazer as vezes do pintor meticuloso, estrategicamente fixado no
melhor ponto para abranger mais detalhadamente a paisagem, remete-nos ao
câmera-men que se vê às voltas com uma multiplicidade de ângulos para captar a
movimentação da cena, visto que a cultura substantivada adjetiva-se em culturas que se interpenetram como películas que se movem
umas dentro das outras, preconizando um cosmopolitismo etnográfico para
flagrá-las em seu devir incessante.
Os
Estudos Culturais como partícipes desse estado de coisas, acirram e sedimentam
os debates não mais sobre metanarrativas emblemáticas, mas sobre a
potencialidade de decodificações da cultura traduzida em micronarrativas interpretativas
que desvelando ou tentando desvelar enigmas particulares – a natureza da
localidade como experiência vivida - desconstroem a centralidade de um eu
essencialista nos moldes do Iluminismo e enfocam o papel da imaginação como
repertório dos mais significativos nas representações que configuram a vida
social. Isso não significa dizer que se perde a perspectiva de uma
macroetnografia que considera aspectos mais cosmopolitas em suas edições
narrativas, mas, ao contrário, enfatiza-se a relação entre os elementos micro e
macro que se embaraçam na constituição de um novo significante, logicamente
respaldando novos e múltiplos significados. Acreditamos que é nesse sentido que
Apadurai sublinha a importância dos meios de comunicação como “diacríticos
semióticos fortes” na construção de mundos possíveis, nem sempre acessíveis é
preciso esclarecer, mas que funcionam como variações que trazem outros
elementos à realidade local. Elementos que travestem-na com costumes e estilos,
que não sendo seus originalmente, passam a conotar uma outra visão da
coletividade sobre si mesma quando inserida no apelo mais abrangente das
miradas da globalização. Nesse aspecto, inúmeras fantasias podem advir de
contatos filtrados pelas lentes da ficção e que talvez por isso mesmo apontem
outras maneiras de perceber o cotidiano como que trespassado por múltiplas linguagens
no hiper-texto de vidas banais, onde o debate sobre a palavra, o mundo e a
relação entre eles é cada vez mais oportuno e até imprescindível. É importante
enfatizar que alguns aspectos destacados nesse texto são extremamente
visionários quanto às implicações comunicativas que envolvem os fluxos
imaginários e identitários configurados depois da Internet.
O antropólogo destaca ainda três exemplos para
evidenciar as considerações que subjazem à necessidade dessa macroetnografia ou
etnografia cosmopolita a qual defende. O primeiro exemplo, eminentemente
pessoal, sublinha a globalização e a desterritorialidade conjuntamente. Numa visita
de sua família a um templo indiano famoso, para que seu irmão receba as bênçãos
dos deuses para um bom casamento para sua filha, o séquito de indianos e
americanos - a mulher e o filho do antropólogo estão presentes - constata-se
que um dos mais destacados sacerdotes do templo foi para Houston, entronizando
a deusa Meenaki nas terras americanas. Nos muitos fios que engendram essa trama
de peculiaridades parentais, o esperado casamento da indiana acontece com um
estudante de Química de Nova Yorque; o filho do antropólogo indiano, em sua
viagem de turismo na trilha de suas raízes imaginárias, tece os fios de sua
vida de meio- americano ou de “americano com hífem” através das biografias que
transpõem localidades, e o cientista que reconstrói as memórias da “sua”
Madurai; um brâmane tâmil criado em Bombaim e feito homo academicus nos Estados
Unidos, lança sobre essas vidas de culturas que se interpenetram seu olhar
interpretativo.
No
segundo exemplo, a ficção deflagra o que o mito desvelava no passado, é a deixa
condizente para as reflexões de Apadurai. A alegoria do realismo mágico de
Júlio Cortázar – um Argentino nascido em Bruxelas – serve de mote para
salientar como a literatura pode espelhar os deslocamentos, as desorientações e
as ações das vidas-mundo inscrevendo-as em mapas de socialização e moralidade, enveredando-se,
na esteira dos Estudos Culturais, sobre a política e a poética da cultura. Num
conto intitulado “Nadando numa piscina de calhaus cinzentos”, a interpretação
de Apadurai, embarcando agora numa viagem mais radicalmente fictícia, sublinha,
entre outras coisas, através das metáforas de Cortázar, a irracionalidade de
competições que exaurem os atletas na luta pelo destaque e pelo sucesso; num
outro prisma, num mundo engendrado de contextos no mínimo insólitos, como a
piscina que já não se preenche apenas com água, as pessoas tentam viver, muito
e amiúde, como eficientíssimos atletas que se esforçam por superar
particularidades pessoais e locais, mergulhando nos desafios que os novos
cenários nacionais abarcam.
Na
terceira vinheta, o cinema assume as vozes da escritura e através dos recursos
imagéticos que ele manipula, a desterritorialização é enfocada em suas
reverberações mais comezinhas e não menos imaginadas. Na película Índia Cabaret de Mira Nair, flagra-se
pequenos espaços da vida de mulheres que buscam um lugar onde caibam, a um só
tempo, suas fantasias e necessidades, “todas elas prostitutas honestas e
pertinazes que fabricam uma identidade de artistas”. Numa espécie de imitação
caricata de si mesmas, essas dançarinas, orgulhosas e envergonhadas, negociam
suas vidas imaginadas longe de casa. O filme, realizado em 1984, põe em tela,
literal e metaforicamente falando, o cinema que imita, mas também tenta revelar
os dramas de prostitutas reais em pequenos cabarés como o de Meghaj quando
essas mulheres investem no papel de prostitutas fictícias glamourizadas pela
Sétima Arte. Assim, numa ficcionalidade de mão dupla, em que se apela para a
metalinguagem, as vidas imaginadas tramam uma existência em que se movem como
verdadeiros personagens de uma narrativa em que se representam de maneira
figurada. Para Apadurai, o filme em questão é um modelo gritante de como a
etnografia artística pode contemplar, num mundo desterritorializado, “os
problemas de personagem e ator, pois que opera com o fabrico de si num mundo de
tipos e de tipificação”.
Diante
do exposto, suspeitamos, conduzidos pelas reflexões que o texto de Arjuna
Apadurai propõe, que a etnografia nos dias que correm não pode se furtar de
narrar a nova ordem que os cenários desterritorializados comportam, onde as
etnopaisagens não deixam de ser bagagens pessoais que se carrega de locais que
sobrevivem à custa também das particulares memórias inventadas que lhes
representam. Nesse aspecto, o cosmopolitismo dos anos 90, facilmente detectável
nas inúmeras linguagens que os meios de comunicação enfeixam, pode fazer parte
de um novo inventário etnográfico que flagre não o exótico ou o selvagem, mas o
dialogismo de vidas e culturas que se interceptam, ou melhor, se re-produzem
diferentemente à medida que são diversamente imaginadas. Para isso, re-cursos
etnográficos antigos podem conduzir novos percursos, onde o momento histórico
presente é que precisa ser lembrado com seus desafios de globalização.
[i] Resenha
de APPADURAI, Arjun. Etnoopaisagens
globais: notas e perguntas para uma antropologia transnacional. In: Dimensões culturais da globalização. Lisboa:
Teorema, 2004.
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