quinta-feira, 31 de maio de 2012

Etnopaisagens globais: notas e perguntas para uma antropologia transnacional

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Daniela Nogueira Amaral
Danielle Parfentieff de Noronha
Tânia Carolina Viana de Oliveira


O texto que constitui o terceiro capítulo do livro Dimensões Culturais da Globalização de Arjuna Apadurai tem o sugestivo título de Etnopaisagens globais: notas e perguntas para uma antropologia transnacional. A partir do neologismo etnopaisagens, o autor enfatiza, ao tempo que esclarece, um outro modo e um novo olhar sobre aquilo que até então era preponderantemente a forma mais corrente de se fazer antropologia, afinal, a perspectiva na qual se move e se detém o observador para explorar o seu objeto de análise afeta também aquilo que se observa - etnopaisagens que reverberam diferentemente para aqueles que clicam aspectos diferenciados de suas nuances. Em outros termos, e atualmente de maneira mais paroxista, o antropólogo que trabalha tendo como instrumento de investigação o estudo etnográfico, no instante mesmo de focar o outro, interfere no modo de percepção e, ousamos dizer, até de tradução desse outro. Sabemos que de certa maneira esse imbróglio metodológico já há muito é discutido e enfatizado como constitutivo das relações que nas ciências humanas envolvem subjetividade, escolha e valores no complexo universo do que se concebe como neutralidade axiológica e objetividade científica. Entretanto, essa perspectiva surge de modo mais contundente, sobretudo, num tempo em que os engessamentos de uma cultura localizada vêem-se perpassados por fluxos de vidas que migram, deslocam-se, abrem-se para outras realidades; vidas que, às vezes, sentadas diante das telas de TV ou de cinema, incorporam as histórias contadas às suas próprias histórias particulares, à medida que fruem, disseminam, ressignificam  modos, modas, idéias e  ideais . Nesse aspecto, coloca-se, senão em xeque, ao menos sob outra ótica, práticas analíticas que devem abranger movimentos interativos os mais diversos dentro da dinâmica que opera com uma  desterritorialização que afeta perfis culturais e, outrossim, evidencia o conteúdo fictício que os sedimenta no imaginário daqueles que nesses perfis se re-conhecem.
Assim, no texto de Apadurai, o antropólogo que se detém sobre as vidas que em trânsito se refratam, lembrando-nos daquilo que Eduard Said  nomeia como geografias pessoais, ou,  dizendo de outra forma, o antropólogo que se debruça sobre o movediço espaço da desterritorialização, vê-se instado a conduzir um modus operandi diverso no seu registro etnográfico e, antes de fazer as vezes do pintor meticuloso, estrategicamente fixado no melhor ponto para abranger mais detalhadamente a paisagem, remete-nos ao câmera-men que se vê às voltas com uma multiplicidade de ângulos para captar a movimentação da cena, visto que a cultura substantivada adjetiva-se em  culturas que  se interpenetram como películas que se movem umas dentro das outras, preconizando um cosmopolitismo etnográfico para flagrá-las em seu devir incessante.
Os Estudos Culturais como partícipes desse estado de coisas, acirram e sedimentam os debates não mais sobre metanarrativas emblemáticas, mas sobre a potencialidade de decodificações da cultura traduzida em micronarrativas interpretativas que desvelando ou tentando desvelar enigmas particulares – a natureza da localidade como experiência vivida - desconstroem a centralidade de um eu essencialista nos moldes do Iluminismo e enfocam o papel da imaginação como repertório dos mais significativos nas representações que configuram a vida social. Isso não significa dizer que se perde a perspectiva de uma macroetnografia que considera aspectos mais cosmopolitas em suas edições narrativas, mas, ao contrário, enfatiza-se a relação entre os elementos micro e macro que se embaraçam na constituição de um novo significante, logicamente respaldando novos e múltiplos significados. Acreditamos que é nesse sentido que Apadurai sublinha a importância dos meios de comunicação como “diacríticos semióticos fortes” na construção de mundos possíveis, nem sempre acessíveis é preciso esclarecer, mas que funcionam como variações que trazem outros elementos à realidade local. Elementos que travestem-na com costumes e estilos, que não sendo seus originalmente, passam a conotar uma outra visão da coletividade sobre si mesma quando inserida no apelo mais abrangente das miradas da globalização. Nesse aspecto, inúmeras fantasias podem advir de contatos filtrados pelas lentes da ficção e que talvez por isso mesmo apontem outras maneiras de perceber o cotidiano como que trespassado por múltiplas linguagens no hiper-texto de vidas banais, onde o debate sobre a palavra, o mundo e a relação entre eles é cada vez mais oportuno e até imprescindível. É importante enfatizar que alguns aspectos destacados nesse texto são extremamente visionários quanto às implicações comunicativas que envolvem os fluxos imaginários e identitários configurados depois da Internet.
 O antropólogo destaca ainda três exemplos para evidenciar as considerações que subjazem à necessidade dessa macroetnografia ou etnografia cosmopolita a qual defende. O primeiro exemplo, eminentemente pessoal, sublinha a globalização e a desterritorialidade conjuntamente. Numa visita de sua família a um templo indiano famoso, para que seu irmão receba as bênçãos dos deuses para um bom casamento para sua filha, o séquito de indianos e americanos - a mulher e o filho do antropólogo estão presentes - constata-se que um dos mais destacados sacerdotes do templo foi para Houston, entronizando a deusa Meenaki nas terras americanas. Nos muitos fios que engendram essa trama de peculiaridades parentais, o esperado casamento da indiana acontece com um estudante de Química de Nova Yorque; o filho do antropólogo indiano, em sua viagem de turismo na trilha de suas raízes imaginárias, tece os fios de sua vida de meio- americano ou de “americano com hífem” através das biografias que transpõem localidades, e o cientista que reconstrói as memórias da “sua” Madurai; um brâmane tâmil criado em Bombaim e feito homo academicus nos Estados Unidos, lança sobre essas vidas de culturas que se interpenetram seu olhar interpretativo.
No segundo exemplo, a ficção deflagra o que o mito desvelava no passado, é a deixa condizente para as reflexões de Apadurai. A alegoria do realismo mágico de Júlio Cortázar – um Argentino nascido em Bruxelas – serve de mote para salientar como a literatura pode espelhar os deslocamentos, as desorientações e as ações das vidas-mundo inscrevendo-as em mapas de socialização e moralidade, enveredando-se, na esteira dos Estudos Culturais, sobre a política e a poética da cultura. Num conto intitulado “Nadando numa piscina de calhaus cinzentos”, a interpretação de Apadurai, embarcando agora numa viagem mais radicalmente fictícia, sublinha, entre outras coisas, através das metáforas de Cortázar, a irracionalidade de competições que exaurem os atletas na luta pelo destaque e pelo sucesso; num outro prisma, num mundo engendrado de contextos no mínimo insólitos, como a piscina que já não se preenche apenas com água, as pessoas tentam viver, muito e amiúde, como eficientíssimos atletas que se esforçam por superar particularidades pessoais e locais, mergulhando nos desafios que os novos cenários nacionais abarcam.
Na terceira vinheta, o cinema assume as vozes da escritura e através dos recursos imagéticos que ele manipula, a desterritorialização é enfocada em suas reverberações mais comezinhas e não menos imaginadas. Na película Índia Cabaret de Mira Nair, flagra-se pequenos espaços da vida de mulheres que buscam um lugar onde caibam, a um só tempo, suas fantasias e necessidades, “todas elas prostitutas honestas e pertinazes que fabricam uma identidade de artistas”. Numa espécie de imitação caricata de si mesmas, essas dançarinas, orgulhosas e envergonhadas, negociam suas vidas imaginadas longe de casa. O filme, realizado em 1984, põe em tela, literal e metaforicamente falando, o cinema que imita, mas também tenta revelar os dramas de prostitutas reais em pequenos cabarés como o de Meghaj quando essas mulheres investem no papel de prostitutas fictícias glamourizadas pela Sétima Arte. Assim, numa ficcionalidade de mão dupla, em que se apela para a metalinguagem, as vidas imaginadas tramam uma existência em que se movem como verdadeiros personagens de uma narrativa em que se representam de maneira figurada. Para Apadurai, o filme em questão é um modelo gritante de como a etnografia artística pode contemplar, num mundo desterritorializado, “os problemas de personagem e ator, pois que opera com o fabrico de si num mundo de tipos e de tipificação”.
Diante do exposto, suspeitamos, conduzidos pelas reflexões que o texto de Arjuna Apadurai propõe, que a etnografia nos dias que correm não pode se furtar de narrar a nova ordem que os cenários desterritorializados comportam, onde as etnopaisagens não deixam de ser bagagens pessoais que se carrega de locais que sobrevivem à custa também das particulares memórias inventadas que lhes representam. Nesse aspecto, o cosmopolitismo dos anos 90, facilmente detectável nas inúmeras linguagens que os meios de comunicação enfeixam, pode fazer parte de um novo inventário etnográfico que flagre não o exótico ou o selvagem, mas o dialogismo de vidas e culturas que se interceptam, ou melhor, se re-produzem diferentemente à medida que são diversamente imaginadas. Para isso, re-cursos etnográficos antigos podem conduzir novos percursos, onde o momento histórico presente é que precisa ser lembrado com seus desafios de globalização.



[i] Resenha de APPADURAI, Arjun. Etnoopaisagens globais: notas e perguntas para uma antropologia transnacional. In: Dimensões culturais da globalização. Lisboa: Teorema, 2004.

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