Por Danielle Noronha
No dia 31 de
março de 1964 era instaurada a ditadura civil-militar, que governou o país por 21
anos. Hoje, 49 anos depois do início do golpe, em meio a revoltas e
comemorações, a tensão pela memória sobre esse período está cada vez mais aparente.
A construção da memória coletiva nacional relativa à ditadura está numa
constante disputa entre as diferentes interpretações sobre esses anos, pelo
fato de haver versões hegemônicas e outras versões menos evidenciadas, que
reivindicam o direito de falar a “verdade” sobre esse passado. A criação da
Comissão Nacional da Verdade, instalada oficialmente em 16 de maio de 2012,
ampliou o espaço oficial para a difusão destas diferentes memórias e ainda mais
o embate entre as versões. Porém, mesmo antes da instituição da comissão,
outros meios eram utilizados como forma de dar visibilidade às memórias
“silenciadas”, que não encontravam espaço nos documentos ou em outros meios
oficiais de veiculação, e a arte se tornou um campo importante para a
manifestação destas diferentes representações.
O cinema se
destaca como uma das principais formas de arte no que diz respeito a
construções idealizadas do que foi a ditadura. Primeiro, pela relação que a
imagem cinematográfica, através de sua projeção, pode criar com o espectador,
já que os filmes são altamente regulados pelo “efeito de real”, ideia que Barthes
(2004) desenvolveu para a literatura, mas que também está presente nos filmes, que
pode criar, reforçar ou modificar o imaginário nacional sobre o período, além
de reformular o discurso sobre a nação. Para Barthes, o “efeito de real”
consiste nas estratégias utilizadas nas narrativas realistas para descrever ao
leitor o ambiente proposto, que representam o “real” a partir de sentidos
conotados e denotados, de tal modo que sejam apagados os resquícios da
artificialidade e criada uma relação entre leitor e texto, a partir das
referências do que o leitor entende por “realidade”. Em segundo lugar, o cinema
remete à relação entre arte e vida, já que os filmes podem ser entendidos como
artefatos culturais que “falam” muito da cultura da qual fazem parte.
A construção da
memória social sobre a ditadura civil-militar, então, em constante movimento e
negociação, é compreendida por distintos agentes sociais de variadas formas. O
cinema é apenas mais um lugar social em que se reivindica espaço para
veiculação sobre pontos de vista deste período, em que é possível ter contato
com novas versões, que no geral, evidenciam memórias que de alguma forma
foram silenciadas. Neste sentido, optar por tematizar a ditadura significa
fazer parte da tensão que busca (re)significá-la para um público presente. A
rememoração também é um ato político.
Desta forma, por
trás da representação cinematográfica e das disputas pela memória do período
estão conceitos que fazem parte de todo esse cenário tenso, em que há uma briga
pelos significados das palavras verdade e silenciamento. É a forma como as
pessoas da nação compreendem o significado dessas palavras que está em disputa,
pois esses temas estão atrelados à grande parte dos discursos sobre a ditadura
e já fazem parte do imaginário sobre o período. O que se busca é indicar o modo
como a sociedade entende e compartilha o passado, a partir da relação entre
imaginário e memória. Esta questão está muito atrelada à ideia de
reconciliação, em que o perdão ainda está sendo negociado, e a conciliação
social ainda está em curso. Quando se trata de trazer questões relacionadas à
memória da ditadura civil-militar são conotados sentimentos que envolvem
silenciamento, além de esquecimento, ressentimento e perdão, que estão também
relacionados com a forma com a qual o país passou do governo autoritário para o
“democrático”, sem punições, e com a imposição de versões que minimizaram as
atrocidades e as diversas violências que foram cometidas nesse período. Assim,
o testemunho apresentado no cinema é utilizado como uma forma de “representação
do passado por narrativas, artifícios retóricos, colocação em imagens”
(RICOUER, 2007, p. 170), que ativa uma memória com o objetivo de não esquecer,
de não silenciar.
A produção
cinematográfica nacional acumulou um grande número de obras que trabalham com
representações acerca deste tema. Os filmes trazem para o presente diferentes
releituras sobre o passado, cada qual balizado por determinados aspectos do
período, mas que de algum modo dialogam entre si, mesmo que no embate por
ressignificações. Dentre os filmes, é possível encontrar distintos gêneros, que
geralmente tiveram seus argumentos pautados em biografias, fatos políticos e/ou
sociais marcantes ou até mesmo em experiências vivenciadas pelos autores das
obras.
Principalmente a
partir da “retomada do cinema brasileiro”, mesmo não sendo possível
classificá-los como uma corrente estética única, é possível determinar
diferentes momentos e estilos de trabalho, em que existem, por exemplo, filmes
com caráter de denúncia, filmes de ação, filmes biográficos e, mais atualmente,
filmes que buscam fazer uma releitura do passado a partir do presente, quando
são trabalhados temas como os traumas, a vingança e a memória, como Corpo (Rossana Foglia, Rubens Rewald,
2007) e Hoje (Tata Amaral, 2012). As
histórias podem ser baseadas em personagens reais, como Lamarca (Sérgio Rezende, 1994), Marighella
- Retrato Falado do Guerrilheiro (Silvio Tendler, 1999) e Zuzu Angel (Sérgio Rezende, 2006); em
acontecimentos reais, como Araguaya - a
conspiração do silêncio (Ronaldo Duque, 2004), Hércules 56 (Silvio Da-Rim, 2006), Batismo de Sangue (Helvécio Ratton, 2007) e Condor (Roberto Mader, 2007) ou em histórias ficcionais formuladas
sobre um “período” real a partir da forma como o autor entende o passado, como Ação entre amigos (Beto Brant, 1998) e O ano em que meus pais saíram de férias
(Cao Hamburger,
2006). Portanto, é possível unificá-los, ao menos, como filmes políticos, pelas
características que estão presentes em seus discursos.
Nesse
aniversário de 49 anos do golpe ainda há muitas dúvidas e lacunas sobre o
período. Novas histórias estão encontrando espaço e muitas outras versões ainda
precisam aparecer para que a sociedade possa (re)formular sua memória social
sobre a ditadura, sem ressentimentos. Enquanto isso, é possível buscarmos filmes
que foram produzidos – e conseguiram driblar a censura – desde 1964 até os dias
de hoje, e neles encontrarmos algumas novas possibilidades de ver, interpretar e
compreender esse passado.
Referências bibliográficas
BARTHES,
Roland. O rumor da língua. São Paulo: Martins Fontes, 2004.
NORONHA, Danielle Parfentieff de. Cinema, memória e ditadura civil-militar: representações sobre as juventudes em O que é isso, companheiro? e Batismo de Sangue. Dissertação de mestrado. Universidade Federal de Sergipe, São Cristóvão, 2013.
RICOEUR, Paul. A memória, a história e o
esquecimento. Campinas, SP: Editora da Unicamp, 2007.