FOUCAULT,
Michel; MOTTA, Manoel Barros da (Org.). "Isto Não É um Cachimbo".
In: Estética: literatura
e pintura, música e cinema. 2.
ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2006. p. 247-263. (Ditos &
escritos ; 3) ISBN 8521803907
Michel
Foucault publicou "Isto Não É um Cachimbo" exatamente cinco meses após a
morte de René Magritte, autor da pintura a que se refere o texto. De maneira
geral, o ensaio cumpre uma função de elogio, homenagem ao pintor belga,
falecido em um momento de grande importância para a produção do pensador
francês (pouco após a publicação de As
Palavras e as Coisas).
O
texto faz reflexões sobre o tema do cachimbo em dois desenhos. O primeiro,
de 1926, acredito: um
cachimbo desenhado cuidadosamente; e, embaixo [...] esta menção: ‘Isto não é um
cachimbo’. A outra versão [...] em vez de serem justapostos em um espaço
indiferente, sem limites nem especificação, o texto e a figura são colocados
dentro de um quadro; [...] Acima, um cachimbo exatamente semelhante àquele que
está desenhado sobre o quadro, mas bem maior. (p. 247)
Em
síntese, Foucault defende que o primeiro quadro é resultado de um caligrama
desfeito pelo pintor. Aparentemente, i) Magritte retoma a função clássica da
representação plástica, que está baseada numa equivalência entre similitude e
representação, ao desenhar com esmero de detalhes um cachimbo “fiel” à
realidade; ii) retoma a função clássica da representação linguística, que em
sua associação com imagens cumpre um papel de legenda, explicação. Mas esta
explicação contesta a representação plástica, quando a nega.
Sob as aparências de um
retorno a uma disposição anterior, ele [Magritte] retoma suas três funções [de
um caligrama], mas para pervertê-las, e perturbar com isso todas as correspondências
tradicionais da linguagem e da imagem. (p. 251)
A
segunda representação também funcionaria a partir de uma tentativa de retorno a
um “lugar-comum” para a imagem e para a representação linguística, porém
essa superfície é logo
contestada: poiso cachimbo que Magritte, com tantas precauções, havia
aproximado do texto, que ele encerrara com ele no retângulo institucional do
quadro, desapareceu: ele está lá no alto, em uma flutuação sem referência,
deixando entre o texto e a figura da qual ele deveria ter sido a ligação e o
ponto de convergência no horizonte apenas um pequeno espaço vazio, o estreito
rastro de sua ausência – como a marca não assinalada de sua evasão. Então,
sobre seus montantes oblíquos e tão visivelmente instáveis, ao cavalete resta
apenas oscilar, à moldura, se deslocar, ao quadro e ao cachimbo, rolarem no
chão, às letras, se dispersarem: o lugar-comum – obra banal ou lição cotidiana –
desapareceu. (p. 255)
Michel Foucault
analisa ainda as duas produções de Magritte através de uma perspectiva
comparativa aos papéis de Klee e Kandinsky para a pintura ocidental. Segundo
Foucault, esta conteria dois princípios dominantes entre o século XV e o século
XX: uma separação entre representação plástica e representação linguística,
subvertido na obra de Klee, pois este faz “valer em um espaço incerto [...] a
justaposição das figuras e a sintaxe dos signos” (p. 256), e um princípio de
equivalência entre a semelhança e a afirmação de um laço representativo,
abandonado por Kandinsky, pois este “liberou a pintura dessa equivalência” (p.
256).
Ninguém, aparentemente,
está mais afastado de Kandinsky e de Klee quanto Magritte. Pintura mais do que
qualquer outra vinculada à exatidão das semelhanças até o ponto em que ela as
multiplica voluntariamente como para confirmá-las [...], determinada a separar,
cuidadosamente, cruelmente, o elemento gráfico e o elemento plástico: se
acontece de serem sobrepostas como o são uma legenda e sua imagem, e na
condição de que o enunciado conteste a identidade manifesta da figura, e o nome
que se pretende lhe dar. No entanto, a pintura de Magritte não é estranha ao
empreendimento de Klee e de Kandinsky; ela antes constitui, a partir de um
sistema que lhes é comum, uma figura simultaneamente oposta e complementar. (p.
256-257)
O pensador francês conclui que, de certa maneira, Magritte “escamoteia o fundo de discurso afirmativo sobre o
qual tranquilamente repousava a semelhança; e movimenta puras similitudes e
enunciados verbais não afirmativos na instabilidade de um volume sem
referências” (p. 263), e chega a visualizar em “Isto não é um cachimbo” uma
espécie de receita, quase uma fórmula de composição, cujos passos seriam 1)
construir um caligrama; 2) decompor o caligrama, desfazendo seus traços; 3)
permitir que o discurso, desprendido da imagem, “caia” em forma de letras; 4)
permitir que as similitudes se multipliquem para que no fim se constate que 5) “a
pintura cessou de afirmar”.