quarta-feira, 14 de junho de 2023

Relações étnico-raciais em Sergipe: escritas negras

Esta coletânea E-book foi organizada tendo como eixo principal a reunião de estudos acadêmicos que nos últimos anos abordaram o tema das relações étnico-raciais em Sergipe. O estímulo dos organizadores foi a constatação de uma interessante produção de estudos que caracterizam e visibilizam questionamentos críticos e vigorosos sobre o tema, a partir das abordagens e das experiências de negros e negras que atuam com pesquisa em e sobre Sergipe. Portanto, este livro é uma iniciativa de encontros e rompimentos sobre os assuntos que atravessam as relações raciais no estado, trazendo novos temas e revisitando outros a partir da perspectiva de autores e autoras com trajetórias implicadas pelo lugar de fala. Os textos aqui apresentados foram originalmente pensados a partir de pesquisas que se aproximam ou se encontram em certos temas e interesses, especialmente pelo motivo de realizarem revisões críticas ou trazerem alguma dimensão inédita sobre elas, bem como por despertarem para outros enfoques e abordagens inusitados até então. De um modo ou de outro demonstram o relevo, a relevância e a potência da discussão sobre as relações étnico-raciais em Sergipe. (pdf)



terça-feira, 6 de junho de 2023

Jovens Mulheres e o Direito à Cidade a partir da prática do Surfe e do Skate em Aracaju

 Por Letícia Oliveira Feijão Galvão[1]

 

Na contemporaneidade, a emergência de novas narrativas identitárias e as disputas e sentidos que estas atribuem ao espaço público têm ocupado relevantes campos de pesquisa nas ciências sociais. Durante a minha trajetória acadêmica, venho estudando múltiplas formas de agências juvenis e como essas agências se articulam a elementos presentes no cotidiano de parte das juventudes sergipanas contemporâneas. Atualmente, minha proposta de pesquisa de doutorado se baseia em trazer para análise categorias como corpo, gênero e cidade a partir das microculturas juvenis que se formam através da prática do surfe e do skate (ou skateboarding) na cidade de Aracaju. Mais precisamente, como a prática de ambos os esportes pode agir como um recurso de reivindicação feminina do espaço urbano[2] e qual é o papel da ação coletiva nesse contexto.

Foto da autora - 2022

Para viabilizar essas investigações, utilizo alguns textos sociológicos e antropológicos que dialogam com as minhas principais questões de pesquisa. Aqui, apresentarei algumas contribuições de dois deles: o livro A invenção do cotidiano: artes de fazer, de Michel de Certeau, e o texto Ondas, cenas e microculturas juvenis, de Victor Sérgio Ferreira. Meu intuito é mostrar como ambas as produções apresentam conceitos centrais para pensar como o direito à cidade é reivindicado pelas mulheres que se associam a coletivos voltados ao surfe, ao skate e aos estilos de vida que se estruturam a partir dessas práticas.

Em Ondas, cenas e microculturas juvenis, Ferreira (2008) define, a partir de uma leitura do antropólogo Carles Feixa, as microculturas como “contextos sociais onde ocorrem fluxos de significados e valores manejados por pequenos grupos de jovens na vida cotidiana, atendendo a situações locais concretas” (FEIXA apud FERREIRA, 2008, p. 101). O autor pontua, também, que as microculturas contemporâneas não respondem às dinâmicas sociais que as rodeiam como os “rituais de resistência" (HALL; JEFFERSON, 2003) das décadas passadas: segundo Ferreira (2008, p. 102), no lugar de um estilo de vida contestatório e militante, “passa a existir um estilo de vida celebratório, orientado por uma ética de existência que cultiva valores hedonistas, experimentalistas, presenteístas e convivialistas, no sentido do alargamento das possibilidades de expressão individual”. Podemos pensar os estilos de vida que se estruturam a partir de práticas cotidianas - como o surfe e o skate, por exemplo - como parte desse fenômeno.

Já em A invenção do cotidiano: artes de fazer, Michel de Certeau investiga como os sujeitos intervêm material e simbolicamente nas suas respectivas realidades a partir de “estratégias” e “táticas” estabelecidas nesses contextos. É precisamente no terceiro capítulo dessa obra em que o autor situa o que seriam essas estratégias e táticas, que estruturam as “artes de fazer” - modos de “caminhar, ler, produzir, falar etc.” (CERTEAU, 2014, p. 87) presentes no cotidiano dos agentes. Em Fazer com: usos e táticas, Certeau aponta o que distingue ambos os movimentos e quais são os seus efeitos na vida social.

É importante frisar que Certeau situa, em primeiro lugar, o papel do consumo nessa dinâmica, como sendo caracterizado sobretudo por suas “astúcias”; pela possibilidade de inversão de signos e práticas estabelecidos hierarquicamente no cotidiano. Em seguida, Certeau busca destrinchar a ideia de estratégia: segundo ele, a estratégia seria o cálculo ou a manipulação das relações de forças exercidas por sujeitos de poder. A estratégia é uma conduta necessariamente hierárquica, cartesiana, manifesta pelos “poderes invisíveis do Outro” (CERTEAU, 2014, p. 93).

As táticas, por sua vez, seriam justamente o oposto: seria um “movimento dentro do campo de visão do inimigo”, uma “arte do fraco” (CERTEAU, 2014, p. 94). Dessa forma, se as estratégias são estabelecidas de forma a propagar relações de poder, as táticas são as práticas que subvertem essa relação; são as possibilidades de construção de outras formas de consumir, de ser e estar nos espaços públicos e privados. Como posto pelo autor (2014, p. 97), “a tática é determinada pela ausência de poder, assim como a estratégia é organizada pelo postulado de um poder”. 

Diante do exposto, é possível associar utilizar tanto a noção de microculturas juvenis, pensada por Ferreira, quanto os conceitos de artes de fazer, estratégias e táticas trabalhados por Certeau para analisar sociologicamente as relações entre mulheres, esportes, estilos de vida e espaço público em Aracaju. Quando pensamos no direito à cidade, é pertinente que pensemos, também, nas possibilidades de ação - ou, mais precisamente, nas artes e astúcias de reinvenção da cidade, como propõe Diógenes (2020) - que engendram práticas cotidianas capazes de desafiar estruturas de poder presentes no espaço público.


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BARROS, Erna. “Uma cidade muda não muda”: mulheres, graffiti e espaços urbanos hostis. Tese (Doutorado em Sociologia). Universidade Federal de Sergipe, 2020.

CERTEAU, Michel de. Fazer com: usos e táticas. In: A invenção do cotidiano: 1. Artes de fazer. 22. ed. Petrópolis: Vozes, 2014.

DIÓGENES, Glória. Diagramas da Juventude Contemporânea: Artes e Astúcias de Reinvenção da cidade. In: Juventudes Contemporâneas: Desafios e Expectativas em Transformação. Rio de Janeiro: Editora Telha, 2020. 

FERREIRA, Victor Sérgio. Ondas, cenas e microculturas juvenis. PLURAL, Revista do Programa de Pós‐Graduação em Sociologia da USP, São Paulo, v.15, 2008, pp.99‐128.

HALL; JEFFERSON, Tony (orgs.). Resistance through rituals: youth subcultures in post-war Britain. London: Routledge, 2003.

 



[1] Graduada em Ciências Sociais e Mestre em Sociologia pelo Programa de Pós-Graduação em Sociologia da Universidade Federal de Sergipe (PPGS/UFS). Membro do Grupo de Estudos Culturais, Identidades e Relações Interétnicas (GERTs).

 [2] Parto da hipótese de que, como estudado por Barros (2020), os espaços da cidade são pensados a partir de uma lógica e de um modelo masculinos, sendo o corpo feminino socializado para “pertencer” ao âmbito privado. Nesse sentido, haveria um duplo processo de disputa por reconhecimento por parte das mulheres que se associam ao surfe e ao skate: um primeiro por serem mulheres a ocupar o espaço público, e um segundo por serem mulheres em esportes hegemonicamente masculinos.

segunda-feira, 5 de junho de 2023

Juventude e Instituição: sentimentos, percepções e o reconhecer-se para ser reconhecido

 Por Raiane Santos

 

O sociólogo e filósofo alemão, Axel Honneth (1949), ao vislumbrar a teoria do reconhecimento a partir das discussões já antecipadas na filosofia de Hegel, compreende que tal teoria é baseada em três fases: no amor, no direito e na estima. O autor entende que a primeira fase do reconhecimento, acentuada pelas relações afetivas e pelo amor, deve ser considerada sobretudo a partir das relações primárias, “na medida em que elas consistam em ligações emotivas fortes entre poucas pessoas [...] e de relações pais/filhos”. (p.159). Esta fase do reconhecimento pautada nos afetos, acaba sendo objeto de estudos também no campo da psicanálise, mostrando, inclusive, que a relação mãe-filho quando passa por um rompimento simbiótico ainda na primeira infância, pode gerar distúrbios no comportamento do bebê, isso porque “a interação entre mãe e criança se efetua como um processo altamente complexo, no qual ambos os implicados se exercitam mutuamente na capacidade de vivenciar em comum sentimentos e percepções”. (HONNETH, 2009, p.162).

No que diz respeito à segunda fase do reconhecimento, sendo o direito, Honneth (2009, p.193), afirma que “um sujeito é respeitado e encontra reconhecimento jurídico não só na capacidade abstrata de poder orientar-se por normas morais, mas também na propriedade concreta de merecer o nível de vida necessário para isso”. Por último, a terceira fase do reconhecimento - baseada na estima - demonstra que os sujeitos operam diante de um processo de solidariedade, onde as relações sociais são estabelecidas de forma simétrica. Esta última fase funciona como uma consequência da segunda, ou seja, para que o sujeito consiga se enxergar de forma valorativa em meio a sociedade, é indispensável que o mesmo se reconheça enquanto sujeito de direitos.

As três fases do reconhecimento ao serem associadas ao contexto do acolhimento institucional, nos levam a pensar que as trajetórias de vida dos jovens que já passaram e que ainda se encontram em instituições de acolhimento são atravessadas por três segmentos: o rompimento do laço afetivo/parental; a luta para que sejam vistos como sujeitos de direitos e o autorreconhecimento permeado pela estima social a partir dos valores aspirados comunitariamente, ou seja, nos espaços de acolhimento institucional.

A socióloga Lia Pappámikail, em seu artigo intitulado Juventude(s), autonomia e Sociologia: questionando conceitos a partir do debate acerca das transições para a vida adulta, menciona que diante dos vários sentidos associados à juventude, ainda é permanente a ideia de que “o jovem é alguém inacabado, em processo de construção ou em devir. Este fato imprime a esta fase de vida um incontornável caráter transitório e ambíguo que tornou desde sempre, a sua análise conceitualmente complexa (...)”. (PAPPÁMIKAIL, 2010, p.399). 

A discussão levantada pela socióloga aponta para vários temas que emergem nos debates a respeito das juventudes, mas um dos fatores que ganha foco e que podemos associar aos debates que envolvem as dimensões do reconhecimento é o processo de transição que ocorre entre as categorias jovem e adulto. Quando Pappámikail coloca que o jovem é um sujeito em processo de construção, refere-se também a condição de construir uma determinada identidade, construção esta que acaba passando, em determinada fase, pelo processo de se reconhecer e ser reconhecido em ou a partir de algo. Pensar o processo de transição entre etapas da vida implica em diversos arranjos, seja a partir do matrimônio, inserção no mercado de trabalho, independência financeira, entre outros aspectos e categorias. Nesse sentido, a reflexão que é posta em pauta coloca em questão como jovens que utilizam os serviços de acolhimento institucional se reconhecem enquanto sujeitos e de que modo o ato de reconhecer-se implica na maneira como enxergam as etapas de transição ao longo de suas trajetórias?

 

Referências:

 

HONNETH, Axel. Luta por reconhecimento: a gramática moral dos conflitos sociais. Tradução de Luiz Repa. São Paulo: Editora 34, 2009.

 

PAPPÁMIKAIL, Lia. Juventude(s), autonomia e Sociologia: questionando conceitos a partir do debate acerca das transições para a vida adulta. Sociologia: Revista do Departamento de Sociologia da FLUP, Vol. XX, 2010, pág. 395-410.