Esta coletânea E-book foi organizada tendo como eixo principal a reunião de estudos acadêmicos que nos últimos anos abordaram o tema das relações étnico-raciais em Sergipe. O estímulo dos organizadores foi a constatação de uma interessante produção de estudos que caracterizam e visibilizam questionamentos críticos e vigorosos sobre o tema, a partir das abordagens e das experiências de negros e negras que atuam com pesquisa em e sobre Sergipe. Portanto, este livro é uma iniciativa de encontros e rompimentos sobre os assuntos que atravessam as relações raciais no estado, trazendo novos temas e revisitando outros a partir da perspectiva de autores e autoras com trajetórias implicadas pelo lugar de fala. Os textos aqui apresentados foram originalmente pensados a partir de pesquisas que se aproximam ou se encontram em certos temas e interesses, especialmente pelo motivo de realizarem revisões críticas ou trazerem alguma dimensão inédita sobre elas, bem como por despertarem para outros enfoques e abordagens inusitados até então. De um modo ou de outro demonstram o relevo, a relevância e a potência da discussão sobre as relações étnico-raciais em Sergipe. (pdf)
quarta-feira, 14 de junho de 2023
terça-feira, 6 de junho de 2023
Jovens Mulheres e o Direito à Cidade a partir da prática do Surfe e do Skate em Aracaju
Por Letícia Oliveira Feijão Galvão[1]
Na contemporaneidade, a emergência de novas narrativas identitárias e as disputas e sentidos que estas atribuem ao espaço público têm ocupado relevantes campos de pesquisa nas ciências sociais. Durante a minha trajetória acadêmica, venho estudando múltiplas formas de agências juvenis e como essas agências se articulam a elementos presentes no cotidiano de parte das juventudes sergipanas contemporâneas. Atualmente, minha proposta de pesquisa de doutorado se baseia em trazer para análise categorias como corpo, gênero e cidade a partir das microculturas juvenis que se formam através da prática do surfe e do skate (ou skateboarding) na cidade de Aracaju. Mais precisamente, como a prática de ambos os esportes pode agir como um recurso de reivindicação feminina do espaço urbano[2] e qual é o papel da ação coletiva nesse contexto.
Para viabilizar essas investigações,
utilizo alguns textos sociológicos e antropológicos que dialogam com as minhas
principais questões de pesquisa. Aqui, apresentarei algumas contribuições de
dois deles: o livro A invenção do
cotidiano: artes de fazer, de Michel de Certeau, e o texto Ondas, cenas e microculturas juvenis, de
Victor Sérgio Ferreira. Meu intuito é mostrar como ambas as produções
apresentam conceitos centrais para pensar como o direito à cidade é
reivindicado pelas mulheres que se associam a coletivos voltados ao surfe, ao
skate e aos estilos de vida que se estruturam a partir dessas práticas.
Em Ondas, cenas e microculturas juvenis, Ferreira (2008) define, a
partir de uma leitura do antropólogo Carles Feixa, as microculturas como
“contextos sociais onde ocorrem fluxos de significados e valores manejados por
pequenos grupos de jovens na vida cotidiana, atendendo a situações locais
concretas” (FEIXA apud FERREIRA, 2008, p. 101). O autor pontua, também, que as
microculturas contemporâneas não respondem às dinâmicas sociais que as rodeiam
como os “rituais de resistência" (HALL; JEFFERSON, 2003) das décadas
passadas: segundo Ferreira (2008, p. 102), no lugar de um estilo de vida contestatório
e militante, “passa a existir um estilo de vida celebratório, orientado por uma
ética de existência que cultiva valores hedonistas, experimentalistas,
presenteístas e convivialistas, no sentido do alargamento das possibilidades de
expressão individual”. Podemos pensar os estilos de vida que se estruturam a
partir de práticas cotidianas - como o surfe e o skate, por exemplo - como
parte desse fenômeno.
Já em A invenção do cotidiano: artes de fazer, Michel de Certeau
investiga como os sujeitos intervêm material e simbolicamente nas suas
respectivas realidades a partir de “estratégias” e “táticas” estabelecidas
nesses contextos. É precisamente no terceiro capítulo dessa obra em que o autor
situa o que seriam essas estratégias e táticas, que estruturam as “artes de
fazer” - modos de “caminhar, ler, produzir, falar etc.” (CERTEAU, 2014, p. 87)
presentes no cotidiano dos agentes. Em Fazer
com: usos e táticas, Certeau aponta o que distingue ambos os movimentos e
quais são os seus efeitos na vida social.
É importante frisar que Certeau
situa, em primeiro lugar, o papel do consumo nessa dinâmica, como sendo
caracterizado sobretudo por suas “astúcias”; pela possibilidade de inversão de
signos e práticas estabelecidos hierarquicamente no cotidiano. Em seguida,
Certeau busca destrinchar a ideia de estratégia: segundo ele, a estratégia
seria o cálculo ou a manipulação das relações de forças exercidas por sujeitos
de poder. A estratégia é uma conduta necessariamente hierárquica, cartesiana,
manifesta pelos “poderes invisíveis do Outro” (CERTEAU, 2014, p. 93).
As táticas, por sua vez, seriam
justamente o oposto: seria um “movimento dentro do campo de visão do inimigo”,
uma “arte do fraco” (CERTEAU, 2014, p. 94). Dessa forma, se as estratégias são
estabelecidas de forma a propagar relações de poder, as táticas são as práticas
que subvertem essa relação; são as possibilidades de construção de outras
formas de consumir, de ser e estar nos espaços públicos e privados. Como posto
pelo autor (2014, p. 97), “a tática é determinada pela ausência de poder, assim
como a estratégia é organizada pelo postulado de um poder”.
Diante do exposto, é possível
associar utilizar tanto a noção de microculturas juvenis, pensada por Ferreira,
quanto os conceitos de artes de fazer, estratégias e táticas trabalhados por
Certeau para analisar sociologicamente as relações entre mulheres, esportes,
estilos de vida e espaço público em Aracaju. Quando pensamos no direito à
cidade, é pertinente que pensemos, também, nas possibilidades de ação - ou,
mais precisamente, nas artes e astúcias de reinvenção da cidade, como propõe
Diógenes (2020) - que engendram práticas cotidianas capazes de desafiar
estruturas de poder presentes no espaço público.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BARROS, Erna. “Uma cidade muda não muda”: mulheres, graffiti e espaços urbanos hostis. Tese (Doutorado em Sociologia). Universidade Federal de Sergipe, 2020.
CERTEAU, Michel de. Fazer com: usos e táticas. In: A invenção do cotidiano: 1. Artes de fazer.
22. ed. Petrópolis: Vozes, 2014.
DIÓGENES, Glória. Diagramas da
Juventude Contemporânea: Artes e Astúcias de Reinvenção da cidade. In: Juventudes Contemporâneas: Desafios e
Expectativas em Transformação. Rio de Janeiro: Editora Telha, 2020.
FERREIRA, Victor Sérgio. Ondas,
cenas e microculturas juvenis. PLURAL,
Revista do Programa de Pós‐Graduação em Sociologia da USP, São Paulo,
v.15, 2008, pp.99‐128.
HALL; JEFFERSON, Tony (orgs.). Resistance through rituals: youth
subcultures in post-war Britain. London: Routledge, 2003.
[1] Graduada em
Ciências Sociais e Mestre em Sociologia pelo Programa de Pós-Graduação em
Sociologia da Universidade Federal de Sergipe (PPGS/UFS). Membro do Grupo de
Estudos Culturais, Identidades e Relações Interétnicas (GERTs).
segunda-feira, 5 de junho de 2023
Juventude e Instituição: sentimentos, percepções e o reconhecer-se para ser reconhecido
Por Raiane Santos
O sociólogo e filósofo
alemão, Axel Honneth (1949), ao vislumbrar a teoria do reconhecimento a partir
das discussões já antecipadas na filosofia de Hegel, compreende que tal teoria
é baseada em três fases: no amor, no direito e na estima. O autor entende que a
primeira fase do reconhecimento, acentuada pelas relações afetivas e pelo amor,
deve ser considerada sobretudo a partir das relações primárias, “na medida em
que elas consistam em ligações emotivas fortes entre poucas pessoas [...] e de
relações pais/filhos”. (p.159). Esta fase do reconhecimento pautada nos afetos,
acaba sendo objeto de estudos também no campo da psicanálise, mostrando,
inclusive, que a relação mãe-filho quando passa por um rompimento simbiótico
ainda na primeira infância, pode gerar distúrbios no comportamento do bebê,
isso porque “a interação entre mãe e criança se efetua como um processo
altamente complexo, no qual ambos os implicados se exercitam mutuamente na
capacidade de vivenciar em comum sentimentos e percepções”. (HONNETH, 2009,
p.162).
No que diz respeito à
segunda fase do reconhecimento, sendo o direito, Honneth (2009, p.193), afirma
que “um sujeito é respeitado e encontra reconhecimento jurídico não só na
capacidade abstrata de poder orientar-se por normas morais, mas também na
propriedade concreta de merecer o nível de vida necessário para isso”. Por
último, a terceira fase do reconhecimento - baseada na estima - demonstra que
os sujeitos operam diante de um processo de solidariedade, onde as relações
sociais são estabelecidas de forma simétrica. Esta última fase funciona como
uma consequência da segunda, ou seja, para que o sujeito consiga se enxergar de
forma valorativa em meio a sociedade, é indispensável que o mesmo se reconheça
enquanto sujeito de direitos.
As três fases do
reconhecimento ao serem associadas ao contexto do acolhimento institucional,
nos levam a pensar que as trajetórias de vida dos jovens que já passaram e que
ainda se encontram em instituições de acolhimento são atravessadas por três
segmentos: o rompimento do laço afetivo/parental; a luta para que sejam vistos
como sujeitos de direitos e o autorreconhecimento permeado pela estima social a
partir dos valores aspirados comunitariamente, ou seja, nos espaços de
acolhimento institucional.
A socióloga Lia
Pappámikail, em seu artigo intitulado Juventude(s),
autonomia e Sociologia: questionando conceitos a partir do debate acerca das
transições para a vida adulta, menciona que diante dos vários sentidos
associados à juventude, ainda é permanente a ideia de que “o jovem é alguém
inacabado, em processo de construção ou em devir. Este fato imprime a esta fase
de vida um incontornável caráter transitório e ambíguo que tornou desde sempre,
a sua análise conceitualmente complexa (...)”. (PAPPÁMIKAIL, 2010, p.399).
A discussão levantada
pela socióloga aponta para vários temas que emergem nos debates a respeito das
juventudes, mas um dos fatores que ganha foco e que podemos associar aos
debates que envolvem as dimensões do reconhecimento é o processo de transição
que ocorre entre as categorias jovem e adulto. Quando Pappámikail coloca que o
jovem é um sujeito em processo de construção, refere-se também a condição de
construir uma determinada identidade, construção esta que acaba passando, em
determinada fase, pelo processo de se reconhecer e ser reconhecido em ou a
partir de algo. Pensar o processo de transição entre etapas da vida implica em
diversos arranjos, seja a partir do matrimônio, inserção no mercado de
trabalho, independência financeira, entre outros aspectos e categorias. Nesse
sentido, a reflexão que é posta em pauta coloca em questão como jovens que
utilizam os serviços de acolhimento institucional se reconhecem enquanto
sujeitos e de que modo o ato de reconhecer-se implica na maneira como enxergam
as etapas de transição ao longo de suas trajetórias?
Referências:
HONNETH, Axel. Luta por reconhecimento: a gramática moral dos
conflitos sociais. Tradução de Luiz Repa. São Paulo: Editora 34, 2009.
PAPPÁMIKAIL, Lia. Juventude(s), autonomia e Sociologia:
questionando conceitos a partir do debate acerca das transições para a vida
adulta. Sociologia: Revista do Departamento de Sociologia da FLUP, Vol. XX,
2010, pág. 395-410.