quarta-feira, 28 de setembro de 2011

Os barbeiros e a modernização de Aracaju

Meu propósito é investigar como o processo de modernização de Aracaju afeta os barbeiros e cabeleireiros e como, por sua vez, eles enfrentam ou se sintonizam com ele. Porém também é interessante saber como a modernização da cidade parece colocar barbeiros e cabeleireiros em posições opostas. Se a cidade é definida, como diz Michel de Certeau, pela produção de um espaço próprio, pelo estabelecimento de um não tempo e por se tornar um sujeito universal e anônimo, o que acontece com esse outro, com esse “homem ordinário” que mora, que pratica e que vive nesse “lugar de transformações e apropriações, objeto de intervenções? (CERTEAU, 2011, p.160 e 161). Sendo assim, num contexto mutante como é a cidade, como os barbeiros e cabeleireiros demarcam sua identidade? Ou melhor, como eles atravessam essas fronteiras laborais, ora se identificando como cabeleireiro, ora como barbeiro, a depender da situação em que se encontram.

Dois exemplos podem ilustrar como os barbeiros, especialmente, passam por uma espécie de “desencantamento de seus mundos autocentrados” (CANCLINI, 2011, p.22). O barbeiro W, que citamos logo no início do trabalho, embora atuasse como barbeiro e na sua narrativa criticasse o proceder dos cabeleireiros, dizendo que muitos deles tem “um jeitinho especial”, afeminando-os, sempre referia a si mesmo como “Eu, cabeleireiro”. É como se, inconscientemente, W tentasse se revestir de um saber mais “moderno”, mais escolarizado, diante de um entrevistador que freqüentava a academia.

Já o cabeleireiro E, que assim se identificava quando da época da entrevista e possuía um Salão de Beleza onde trabalhava com sua filha, também cabeleireira, só atuava como barbeiro. Ele só atendia a clientela masculina e não usava o lavatório, instrumento muito citado nas entrevistas como importante na nova configuração dos salões, que só depois associei a idéia de limpeza. Assim, no dia em que o entrevistei entrou uma mulher com sua filha e ela perguntou se ele estava atendendo, ao que ele respondeu que não poderia atende-la porque não estava atualizado e só atendia a clientela masculina, que ela voltasse outro dia para ser atendida por sua filha, que era cabeleireira. Algum tempo depois, pensei que E manipulava sua identidade profissional, para cobrar mais caro por seu serviço. Atuava como barbeiro, mas se denominava cabeleireiro.

Estes dois casos parecem ter relação o que Stuart Hall afirmava sobre o indivíduo moderno, que tem sua identidade deslocada devido a certos descentramentos: a redescoberta do pensamento marxista, a descoberta do inconsciente de Sigmund Freud, os trabalhos em lingüística estrutural com Ferdinand Seaussure, as idéias de Michael Foucault sobre o poder disciplinar e o impacto do feminismo. (HALL, 2006).

Um tipo diferente de mudança estrutural está transformando as sociedades modernas no final do século XX. Isto está fragmentando as paisagens culturais de classe, gênero, sexualidade, etnia, raça e nacionalidade, que, no passado nos tinham fornecido sólidas localizações como indivíduos sociais. Estas transformações estão também mudando nossas identidades sociais, abalando a idéia que temos de nós próprios como sujeitos integrados. Esta perda de um “sentido de si” estável é chamada, algumas vezes, de deslocamento ou descentração do sujeito. Esse duplo deslocamento – descentração dos indivíduos tanto de seu lugar no mundo social e cultual quanto de si mesmos – constitui uma “crise de identidade” para o indivíduo (HALL, 2006, p.9).

Esses exemplos confirmam que estamos diante de situações em que os indivíduos necessitam manipular sua identidade profissional. Ressalta Fredrik Barth que, quando há mudança de identidade, surge uma ambigüidade, uma vez que, muitas vezes, a manutenção de uma fronteira e da dicotomia categorial parece ser destruída, pois as distinções reais são confundidas. Daí a importância de não nos apegarmos “ao aperfeiçoamento de uma tipologia, mas ao descobrimento dos processos que acarretam tais reagrupamentos” (BARTH, 1998, p.214/215).

Porém, discutindo dentro Grupo de Estudos Culturais, Identidades e Relações Interétnicas (GERTS/NEAB/UFS), e escutando as orientações do professor Frank Nilton Marcon, escolhi a área dos Mercados Centrais de Aracaju como local nossa pesquisa. Em primeiro lugar porque a região dos Mercados deixou de ser o espaço das minhas memórias de infância, um espaço de sujeira após a reforma empreendida pela Prefeitura de Aracaju, em 1996, na gestão de João Augusto Gama. Essa intervenção, que teve um propósito modernizador, fez esse espaço acumular outra função que é atender a demanda turística. Assim, enquanto uma passagem rápida pelo shopping num dia de sábado mostra que este é um dos lugares mais populares da cidade, o número de pessoas do povo na área dos Mercados, parece diminuir em relação aos turistas. O poder do estado transforma esse espaço organizando, higienizando, compartimentando e sanitarizando. Sua reforma deixa permanecer as características arquitetônicas do século passado, mas para atender aos interesses de uma Aracaju que quer ocupar um lugar no roteiro turístico do Brasil, de uma cidade que busca sucesso em um campo econômico cada vez mais promissor: “a cidade como vitrine de consumo da tradição pelo city marketing” (LEITE, 2004, p.18).

Mais especificamente, deterei a atenção ao mais velho dos mercados, o Antônio Franco. Isto porque é nesse mercado que se concentram a maior quantidade de barbeiros de Aracaju que conhecemos, além de ser o lugar onde a tensão desses trabalhadores com os cabeleireiros se apresenta de forma visível, pelos menos em termos de espaço. O Antonio Franco parece ser o local onde “as práticas de intervenção urbana continuam a ‘embelezar’ estrategicamente as cidades históricas por meio por meio de políticas de gentifrication do patrimônio cultural” (LEITE, 2004, p.18). Por ser o espaço onde o processo de modernização da cidade se deu diretamente, quero entender a situação de tensão entre barbeiros e cabeleireiros e como ela se relaciona com este processo. Deste modo, a presença destes trabalhadores numa situação parecida com a hibridação é o segundo motivo de escolha desse local para nossa análise antropológica.

Nas entrevistas que realizei com barbeiros e cabeleireiros durante aquela espécie de pré-campo que durante a minha graduação em História, havia um dado curioso. Em algumas narrativas, os trabalhadores mencionavam que havia uma “divisão de salões por categorias”. Os melhores salões, mais “modernos”, ficavam no centro de Aracaju. Os de segunda categoria ficavam no bairro Siqueira Campos. E os de pior qualidade se localizavam no Mercado, onde “o cara corta até sem camisa”, como afirma o barbeiro L.

Esse dado é interessante, porque embora muitos dos salões de barbeiros que existiam no centro da cidade foram fechados, como o Salão Sergipe, na Rua de São Cristovão, as barbearias do mercado permanecem atuantes e sendo a principal concentração desses profissionais em Aracaju. O fechamento do Salão Sergipe, considerado um dos mais importantes, possuidor de excelentes profissionais, local de onde saíram alguns presidentes da Associação de Barbeiros, Cabeleireiros e Similares de Sergipe, parece indicar que o velho, o tradicional, o “barbeiro antigo” não é mais admitido no centro de uma cidade que se quer moderna. Porém, este ofício ainda esta sendo marcante num lugar popular como o Mercado, apesar de estar perdendo espaço para os cabeleireiros, como mostra a narrativa do Barbeiro G:

[A reforma dos Mercados foi ruim] Pra muita gente. E teve o salão maior que tinha no Mercado... Ou, aliás, no Mercado virado pra rua do, pro GBarbosa. Aí, tinha um salão com oito profissionais, desmancharam, e o dono não recebeu a sala. Deram a sala a Tonho do Couro. E teve muitos que não recebeu a sala. Demoliram e não recebeu. Outros receberam. Mais de mil pessoas botaram na Justiça porque tiveram seus patrimônios demolidos e não receberam. Não receberam e não vão receber. Outros que nunca teve no Mercado receberam sala. Aqui esses barbeiros a maioria nenhum não trabalhou aqui, quase. Essa manicure, não tinha salão

Neste caso, a barbearia tradicional, que pode ser entendida como um lugar de sujeira, parece ser relocalizada como tradição, para legitimar uma idéia de Aracaju moderna (LEITE, 2004, p27). Por esse viés, quero perceber não só o que mudou com esta intervenção da Prefeitura de Aracaju, uma vez a política de gentrification seleciona aqueles que serão excluídos e aqueles que permanecerão no espaço, mas, principalmente, como se encontram esses trabalhadores hoje, qual é a configuração atual.

Acima de tudo, e tendo como suporte Michel de Certeau, o Mercado Antonio Franco parece ser o local onde se pode entender como se deram as “estratégias” do poder instituído. A análise pode mostrar como a cidade é um espaço próprio, aqui através das políticas de gentrification. Por outro lado, também podem ser verificados os “golpes”, as “maneiras de fazer” e/ou “as maneiras de dizer” empreendidas por aqueles que não possuem um terreno próprio: os barbeiros.

Chamo de estratégia o cálculo (ou a manipulação das relações de força que se torna possível a partir do momento em que um sujeito de querer e poder (uma empresa, um exército, uma cidade, uma instituição científica) pode ser isolado. (...) A tática não tem por lugar senão o do outro. E por isso deve jogar como o terreno que lhe é imposto tal como o organiza a lei de uma força estranha. (...) a tática é a arte do fraco. (CERTEAU, 2011, p. 93-95)

Para realizar a pesquisa, penso escutar novamente as entrevistas que foram realizadas não só na região dos mercados centrais de Aracaju, mas também as que foram colhidas em outros bairros da cidade com esses trabalhadores. Estas narrativas podem servir como óculos de mergulhador, protegendo e adaptando meu olhar embaixo da água salgada durante a viagem ao fundo do mar. Elas podem nos fornecer um envolvimento inicial com esse mundo dos barbeiros e cabeleireiros facilitando à chegada as questões de fundo. Através dessa releitura poderíamos ter as mínimas “condições de saber o que e como observar, e o que é teoricamente significativo” (EVANS-PRITCHARD, 2005, p.243).

Aliás, a própria oportunidade de ser entrevistado dava aos barbeiros a “ocasião” de dar lances, ou golpes no poder instituído. A situação da entrevista já era por si só uma “maneira de fazer”, de se contrapor ao espaço próprio, à situação hegemônica, para usar os termos de Michel de Certeau. Não por acaso, diante de um acadêmico que vinha lhes perguntar sobre sua vida laboral, os barbeiros reclamavam dos cabeleireiros, das mulheres, da desorganização da Prefeitura de Aracaju que deixava salões serem implantados sem nenhuma licença e se arvoravam na sua experiência profissional, para se colocarem em um status superior. Já os cabeleireiros, por sua vez mostravam como os barbeiros representavam uma atividade ultrapassada.

Assim, no ato da entrevista tanto barbeiros como cabeleireiros atuam, subvertem a situação de “homem ordinário”, “a memória mediatiza transformações espaciais. Segundo o modo do “momento oportuno” (kairós), ela produz uma ruptura instauradora. Sua estranheza torna possível uma transgressão da lei do lugar” (CERTEAU, 2011, p.149). Daí serem necessárias novas entrevistas, que contem mais sobre como barbeiros e cabeleireiros vêem, atuam e sentem o momento presente.

Porém, também será necessário um período de observação em campo, no Mercado Antônio Franco, onde eu poderia registrar novas “impressões que não são apenas recebidas pelo intelecto, mas tem impacto na personalidade total do etnógrafo, fazendo com que diferentes culturas se comuniquem na experiência singular de uma ‘única’ pessoa” (PEIRANO, 1995). A observação in loco seria importante na formação do pano de fundo das narrativas que colheria com barbeiros e cabeleireiros, para situar a relação entre esses tipos de trabalhadores, na relação deles com as outras profissões presentes no mercado, mas também para que eu possa ter um novo contato com eles e, quem sabe deixar esses trabalhadores mostrarem algumas dados importantes que passam despercebidos.

Diga-se de passagem, que, neste espaço público estão presentes trabalhadores que podem ser inseridos no setor de serviços: barbeiros, cabeleireiros, folheteiro de cordel, donos de bares, comerciantes de ferragens, vendedores de lembranças aos turistas. Com todos eles a relação com a clientela é muito mais comercial do que pessoal, com exceção dos barbeiros e cabeleireiros, que exige uma maior aproximação com o cliente. Inclusive o barbeiro M aponta para a intensificação dessa forma de relação: hoje quase [só] se trabalha com cliente [conhecido]. Não é mais com avulso. Que naquela época existia mais avulso. Vamo supor, você corta cabelo comigo hoje, amanhã corta com [outro], adepois em outro salão assim. É, fidelidade.

Por fim, penso construir o primeiro capítulo contendo as “estratégias” da Prefeitura de Aracaju para transformar os Mercados Centrais em um espaço com função de atender prioritariamente a demanda turística, através da política de gentrification que alterou a paisagem urbana, disciplinou e ainda disciplina os usos do espaço e relocaliza certas tradições (LEITE, 2004, p.20). Nesta parte quero entender como se deu a Reforma dos Mercados e quais são as reflexões atuais desse acontecimento, passados quase 15 anos, inclusive quais foram os critérios utilizados pelo poder municipal para decidir quem seria contemplado e quem seria excluído de continuar a trabalhar no Mercado. Será o momento de caracterizar o local da pesquisa em sua complexidade, o pano de fundo onde atuam os barbeiros e cabeleireiros.

No segundo capitulo, o conteúdo seria basicamente as “táticas” utilizadas pelos barbeiros para se adaptar nesse terreno próprio, no Mercado Antônio Franco, mas também as “táticas” utilizadas contra os que parecem lhes tomar o terreno: os cabeleireiros. Mas também, de certa forma, analisaríamos o inverso, pensaríamos quais as “táticas” utilizadas pelos cabeleireiros para lidar não só com os barbeiros, mas também com o poder instituído na forma de um espaço publico administrado pela Prefeitura de Aracaju.

(Texto de Eduardo Lopes Teles, estudante do Núcleo de Pós-Graduação e Pesquisa em Antropologia da Universidade Federal de Sergipe)

quinta-feira, 8 de setembro de 2011

ÍNDIOS E ICONOGRAFIA DIDÁTICA: EFEMÉRIDES METODOLÓGICAS

Diogo Francisco Cruz Monteiro (NPPA ⁄ GERTS ⁄ UFS)

O texto que segue pretende realizar um breve registro das etapas de constituição da metodologia que norteia as investigações inseridas no projeto de dissertação intitulado Índios e iconografia didática: análise das representações em manuais de história do PNLD 2011, em desenvolvimento no interior das atividades do Núcleo de Pós-Graduação e Pesquisa em Antropologia (NPPA), da Universidade Federal de Sergipe (UFS).

Esta pesquisa trata de identificar o nível de adequação das representações dos índios nos livros didáticos de história avaliados e distribuídos pelo Programa Nacional do Livro Didático (PNLD) do ano de 2011 aos termos da Lei 11.645⁄08, e de que maneira a sua incorporação à escrita didática pode influenciar as percepções de professores e alunos de 4 escolas públicas da cidade de Aracaju sobre as histórias e culturas indígenas.

Objetiva-se ainda analisar as formas de representações sobre os índios elaboradas pelos livros didáticos, professores e alunos do Ensino Fundamental, analisando-se as alegorias e retóricas presentes em seus discursos relacionados aos indígenas, examinar os critérios priorizados pelos professores para a avaliação e escolha dos livros didáticos, as modalidades de uso e apropriação, em situações de ensino e aprendizagem, das suas imagens e textos de temáticas indígenas, além de identificar o grau de conhecimento dos professores acerca das prescrições da Lei 11.645⁄08, e em que medida elas são contempladas em suas práticas pedagógicas cotidianas, principalmente, no que se refere aos modos de tratamento das temáticas indígenas dos livros didáticos em sala de aula.

Para a coleta de dados relacionados aos objetivos acima expostos, realizamos uma sondagem dos títulos de livros didáticos que mais foram adotados nas escolas públicas estaduais de Aracaju via PNLD 2011. Neste sentido, consultamos o Portal do Sistema do Material Didático (SIMAD), no sítio do Fundo Nacional para o Desenvolvimento da Educação (FNDE) na Internet. Nele, tivemos acesso aos títulos de livros didáticos que foram distribuídos às 61 escolas públicas estaduais aracajuanas que aderiram ao último PNLD. A partir daí, recorremos ao sítio na Internet da Secretária de Estado da Educação (SEED-SE), que fornece informações sobre as coleções de livros que foram adotadas nas respectivas escolas da rede. Somente assim, obtivemos uma percepção apurada sobre o nível de abrangência dos manuais nas instituições de ensino públicas estaduais de Aracaju.

Desta forma, optamos pela escolha para a análise dos 4 títulos de livros didáticos mais consumidos nas escolas públicas estaduais da cidade de Aracaju, a saber: História sociedade e cidadania (BOULOS JÚNIOR, 2009), Projeto Radix – História (VICENTINO, 2009), Saber e Fazer História: História Geral e do Brasil (COTRIM; RODRIGUES, 2009) e História e vida Integrada (PILETTI, N; PILETTI, C; TREMONTE, 2009). Destes manuais, examinamos aqueles volumes dedicados ao 7º ano do Ensino Fundamental, pois neles, segundo especialistas, estão contemplados de maneira mais recorrente os conteúdos relativos à história e cultura indígenas, sobretudo, quando se trata de suas experiências no período colonial americano.

As representações sobre os indígenas presentes nos livros didáticos foram expressas por meio da análise conjunta dos conteúdos de suas imagens e textos. Assim, trabalhamos com imagens de naturezas diversas, objetos de descrições, comentários e análises críticas dos autores, presentes tanto nos textos das legendas como nos textos nucleares dos manuais analisados.

O elemento indígena foi identificado nas imagens, através das legendas ou a partir dos textos base anexos que descrevem, analisam e explicam os seus conteúdos. Consideramos apenas as ilustrações em que o índio aparece em primeiro plano e descrito ou definido como “índio”. Por conta da possível deterioração das páginas, da dificuldade de reconhecimento de indivíduos da etnia indígena em imagens de multidões, pela falta de nitidez e má adequação da técnica empregada na figura à página, utilizamos a identificação visual imediata e as informações obtidas através das legendas e textos nucleares.

Após a conclusão destas etapas, cruzamos as informações extraídas da descrição e análise das imagens e dos textos, para percebermos o nível de conexão entre as visões sobre os índios presentes simultaneamente nos textos visuais e verbais, que conformam o universo dos significados tecidos pelos livros didáticos.

O conhecimento sobre os critérios de avaliação e escolha dos livros didáticos, as formas de uso e apropriação de suas imagens e textos de temáticas indígenas, das representações de professores e alunos acerca dos índios e suas culturas, além da identificação do grau de conhecimento dos professores acerca da Lei 11.645⁄08, e do reflexo das suas prescrições nas atividades pedagógicas das escolas públicas de Ensino Fundamental de Aracaju, exigiram o estabelecimento de critérios para o recorte do público alvo a ser investigado e de novos procedimentos metodológicos para a coleta e análise dos dados.

Desta forma, decidimos estudar o cotidiano das práticas pedagógicas de 4 instituições de Ensino Fundamental da cidade de Aracaju: Escola Governador João Alves Filho, Escola Estadual Professor Acrísio Cruz, Colégio Estadual Leandro Maciel e Escola Estadual Senador Lourival Fontes. Nelas, iniciamos a extração de informações por meio de observações e posteriores descrições das aulas da disciplina história em 4 classes do 7º ano, respectivamente, uma classe para cada escola e de depoimentos coletados de entrevistas com professores e alunos.

A seleção das instituições e do público escolar (professores e alunos), acima citados, para a investigação é atribuída ao fato de adotarem e consumirem os livros didáticos mais solicitados entre as escolas aracajuanas durante o PNLD 2011. Esta escolha deveu-se ainda ao distanciamento territorial da comunidade escolar de Aracaju em relação às comunidades indígenas. Portanto, os professores e alunos de Aracaju constituem público privilegiado para a captação de impressões específicas e originais sobre os índios, que são construídas, primordialmente, a partir de leituras e interpretações das imagens e textos dos livros didáticos de história, seus principais meios de contato com estes povos e seus modos de vida.

Aqui é importante destacar que, estes últimos procedimentos da pesquisa (observações de campo) tiveram sua efetivação comprometida, em parte, devido à greve ocorrida durante quase todo o mês de maio do corrente ano, quando os docentes da rede pública estadual de ensino reivindicavam ao governo do Estado, via Sindicado dos Trabalhadores da Educação do Estado de Sergipe (SINTESE-SE) o cumprimento da Lei que estabelece o pagamento integral do piso salarial nacional aos professores.

As observações encontraram novos obstáculos nos cronogramas que orientam as aulas dos professores de história daquelas instituições. Eles, geralmente, elaboram o roteiro anual de aplicação dos conteúdos programáticos baseando-se na cronologia histórica proposta pelos livros didáticos de história. Por isso, naquelas escolas cujos livros didáticos trabalham os conteúdos de história e cultura indígenas nos seus capítulos derradeiros, as observações etnográficas tiveram de ser canceladas. Porém, apesar destes percalços, foram observados, num espaço de 4 meses, entre abril, junho, julho e agosto, momentos didáticos de história em que se abordavam conteúdos sobre indígenas, na Escola Estadual Lourival Fontes e no Colégio Estadual Leandro Maciel. Além disso, realizamos ainda 13 entrevistas com professores e alunos das escolas selecionadas para a pesquisa.

Apesar de todo esforço empregado para o cumprimento destas laboriosas tarefas de campo, e das dificuldades enfrentadas como aquelas relativas à aproximação dos informantes (professores e alunos) e ocasionadas pela greve docente acima relatada, a submissão da nossa proposta de pesquisa à banca de qualificação do NPPA, ao levar em consideração as críticas e sugestões dos seus componentes, apontou para a possibilidade de mudanças de orientações metodológicas, que de certa forma subtraem da análise os dados etnográficos coletados.

Neste sentido, a pesquisa tenderá, neste período de finalização de seus procedimentos metodológicos e de escrita do texto definitivo da dissertação, a focalizar as representações sobre os índios presentes nos manuais didáticos do PNLD 2011, analisando-se as alegorias e retóricas constantes em seus discursos acerca dos indígenas. Porém, os dados coletados durante as observações de campo, desde que analisados e transformados em relatos de experiência de pesquisa, podem contribuir, sobremaneira, para desvelar quais são os reflexos das prescrições da Lei 11.645⁄08 nas práticas pedagógicas cotidianas de professores e alunos, principalmente, quando se trata das formas de tratamento das temáticas indígenas em sala de aula por meio do uso que fazem das imagens e textos dos livros didáticos de história.

terça-feira, 6 de setembro de 2011

Notas sobre uma experiência etnográfica: Juventudes, estilos de vida e os usos dos lugares no Bairro Siqueira Campos

Este texto é sobre a possibilidade de pensar os métodos e as técnicas da pesquisa etnográfica, como também uma reflexão sobre o “campo” para a Antropologia. Tomo aqui como referência os métodos e as técnicas de pesquisa aplicadas em minha proposta de pesquisa para a Dissertação de Mestrado em Antropologia. Desde o segundo semestre de 2009, sou estudante do NPPA/UFS. Quando surgiram as primeiras ideias para a realização de um trabalho etnográfico, eu tinha muitas intuições e, também, muitas dúvidas. Devido à minha formação em História, estava muito ligado a questões historiográficas. Mas, como todo estudante-pesquisador ao “iniciar-se” numa dada área do conhecimento, precisava passar por este “rito de passagem”. Assim, fiz várias incursões às bibliotecas e fui mantendo contato com uma ampla bibliografia sobre juventudes, culturas juvenis, estilos de vida, processos de identificação e os usos dos lugares de lazer e sociabilidades. Dessa forma, fui aos poucos estranhando o universo cotidiano e sociocultural ao qual estava aparentemente inserido. Além de perceber, também, os aspectos da análise antropológica.

Desde 1991, sou morador do Bairro Siqueira Campos, em Aracaju, estado de Sergipe, Brasil. Este bairro é um dos maiores de Aracaju, além de ser um grande polo comercial e de consumo cultural. Atualmente, na Praça Dom José Thomaz, a única do Siqueira Campos, há uma grande concentração e circulação de jovens que se movimentam pelas ruas, bares-lanchonetes, lanchonetes e equipamentos urbanos a procura de lazer e entretenimento e, tem esta praça, como espaço central no bairro, como um espaço âncora de identificações e sociabilidades, o lugar praticado, onde as juventudes e seus estilos de vida demarcam, de modo relativamente estável, lugares como “territórios de subjetivação” e redes de solidariedade.

Geralmente, é na Praça Dom José Thomaz onde encontro os amigos, jogo basquete e compartilho dos serviços públicos de transportes. No entanto, até ingressar no Mestrado em Antropologia Social, nunca tinha problematizado tais orientações. A partir de uma bibliografia especializada sobre os estudos culturais, juventudes e os estilos de vida, ao qual fui mantendo contato aos poucos, percebi que nunca estive inserido nessas redes de socialização e comecei a estranhar o que até então me era aparentemente familiar. De fato, seria praticamente impossível estabelecer laços com todos os indivíduos e lugares com os quais cruzamos no dia a dia de uma cidade, ou mesmo, nos bairros onde moramos.

Passei, então, a caminhar e a analisar os processos de identificação e diferenciação realizados pelos jovens nos usos dos lugares de lazer e sociabilidades no Bairro Siqueira Campos, a partir de construtos de estilos de vida associados à música, o que implicou a investigação sobre as práticas e o consumo de determinados bens ligados às culturas juvenis. Passei a perceber inclusive, a circulação de indivíduos de várias procedências da cidade, como alguns grupos de jovens que são reconhecidos na região como “pagodeiros”, como a “galera do rock”, a “galera do hip hop” e a “galera do reggae”. Em todos os casos os grupos são identificados por bens ligados aos estilos musicais e as culturas juvenis.

Para tal análise, me cerquei de diferentes processos metodológicos, mas como um exercício intelectual de atravessamento e distanciamento, já que o universo pesquisado compõe meu mapa político e sociocultural cotidiano. A partir do contato com as reflexões do antropólogo Gilberto Velho (1979), insisti na ideia do autor de reconhecer as diferenças e estranhar o que está próximo. Enveredei por problematizar as vivências e as relações afetivas com o campo de estudo, o “estar lá”. Velho publicou diversos textos nos quais descreveu como viviam os moradores das camadas médias em um prédio de apartamentos do tipo conjugado, no bairro histórico de Copacabana, no qual residiu nos anos setenta do século vinte: o cotidiano, seus estilos de vida, o consumo e o porquê as pessoas moravam e valorizavam este bairro. Ao fazer a “observação participante” e problematizar o que aparentemente lhe era familiar, o autor, portanto, abriu margens e contribuiu significativamente para o desenvolvimento do método da “distância social” e “distância psicológica”: a trajetória antropológica de transformar o “exótico em familiar” e o “familiar em exótico”.

Ao seguir este prisma, passei a caminhar, a observar e a me relacionar de forma mais crítica com as pessoas, com os lugares de lazer, entretenimento e as sociabilidades da população jovem no Siqueira Campos. Essa perspectiva do caminhar, como diz Certeau, leva ao pesquisador a perceber como “[...] O cotidiano se inventa com mil maneiras de caça não autorizada” (1994, p. 38). Nesse sentido, os lugares são concebidos e metaforizados no caminhar dos seus agentes, e carregados por uma polissemia de sentidos. São os gestos, os hábitos de comer e beber, as gestualidades corporais, as práticas, os conflitos, os signos, as “artes de fazer” (CERTEAU, 1994) e as narrativas do cotidiano, cuja tessitura constitui o “uso da tática dos usuários” (Idem) para qualificar o espaço como um lugar de conhecimento, mas, sobretudo, de reconhecimento dos grupos. Neste caso, os da população jovem e os seus estilos de vida.

Nesta pesquisa, fiz mais que caminhar pelos lugares e conversar com as pessoas. A tentativa foi de uma “descrição densa”, o mapeamento da paisagem incorpórea do objeto pesquisado (GEERTZ, 1978). Como diz Geertz, à prática da etnografia não é somente estabelecer relações com o objeto de análise, mas manter um diário de campo, selecionar informantes, ir a lugares e voltar deles com informações; é observar os sistemas de símbolos em seus próprios termos e descortinar toda a trama social. Dessa forma, adotei alguns balizamentos e estratégias metodológicas, que permitiram uma melhor compreensão do objeto de estudo: levantamento bibliográfico, fontes documentais, entrevistas, observação participante e as caminhadas sistemáticas pela paisagem urbana dos lugares investigados.

Sendo assim, dividi a proposta de Dissertação em três capítulos: No primeiro, Espaços de lazer e sociabilidades da juventude no Bairro Siqueira Campos: lugares e estilos de vida; a ideia foi de traçar um panorama sobre a relação entre a cidade, o Bairro Siqueira Campos e a população jovem. A discussão gira em torno de descrever o território, as representações sobre o lugar, os espaços de lazer, as vivências e as sociabilidades no cotidiano do bairro ao longo do século vinte, fazendo conexões com a presença das juventudes. A análise contempla as narrativas produzidas pela imprensa e os intelectuais sergipanos, além das entrevistas com antigos moradores. Ainda nesse capítulo, dedico-me a descrever as transformações no cotidiano do Siqueira Campos, os lugares de lazer, as juventudes, as vivências e os estilos de vida, a partir da estratégia das caminhadas sistemáticas pela materialidade da paisagem e de entrevistas com os jovens praticantes desses espaços.

O segundo capítulo, O cotidiano, os usos e os discursos das juventudes sobre os lugares; paira sobre dois grandes eixos: no primeiro, faço incursões etnográficas sobre os usos dos espaços de lazer e sociabilidades, e as juventudes praticantes destes espaços. No segundo eixo, analiso os discursos, os usos, as práticas e os bens culturais que caracteriza essa população jovem e seus estilos de vida. Nesse sentido, estabeleço a discussão sobre a categoria “circuito” (MAGNANI, 2002) como conceito analítico, salientando a sua importância na análise do significado e da experiência proporcionada pelos jovens mediados pelas ações simbólicas. Evidencio os gostos culturais, os “grupos sociais de afinidades” e os estilos de vida presentes no Bairro Siqueira Campos.

No terceiro capítulo, Processos identitários juvenis no Bairro Siqueira Campos, busco a partir das reflexões de Gilberto Velho (1979, 2007, 2008) e da observação participante, manter um contato e uma vivência durante um período de tempo mais longo com o objeto de estudo, pois certos aspectos de uma cultura e de uma sociedade só emergem a superfície com um esforço maior, mais detalhado e aprofundado de observação e empatia. Analiso os estilos de vida, as tensões entre os “grupos sociais de afinidades”, as práticas, o consumo e as experiências particulares realizadas nos usos dos espaços de lazer e sociabilidades no âmbito do Bairro Siqueira Campos. Dessa maneira desenvolvo o argumento central desta Dissertação, a saber: os processos identitários juvenis como construtos de estilos de vida distintos, realizados nos usos dos lugares de lazer e sociabilidades no Bairro Siqueira Campos, ao incorporar situações singulares imediatamente reconhecíveis no cotidiano deste bairro. Evidencio ainda, quatro grupos juvenis distintos que são reconhecidos no Siqueira Campos como “pagodeiros”, a “galera do rock”, a “galera do hip hop” e a “galera do reggae”. Busco compreender como cada um dos grupos percebe os “outros” e como veem a “si mesmos”, além de analisar como eles se caracterizam e se relacionam com os espaços de lazer e sociabilidades no bairro, imprimindo um sentido aos lugares.

Referências

CERTEAU, Michel. A invenção do cotidiano: artes de fazer. 11 ed. Tradução de Ephraim Ferreira Alves. Petrópolis, RJ: Vozes, 1994. v 1.

GEERTZ, Clifford. A interpretação das culturas. Rio de Janeiro: Zahar, 1978.

MAGNANI, José Guilherme Cantor. “Os circuitos dos jovens urbanos”. In: Tempo Social, revista de sociologia da USP, v. 17, n. 2, 2005, pp. 173-205. Disponível em: http://www.scielo.br/pdf/ts/v17n2/a08v17n2.pdf.

PAIS, José Machado. Culturas Juvenis. Edição: Imprensa Nacional Casa da Moeda, 2003.

VELHO, Gilberto (Org.). Rio de Janeiro: cultura, política e conflito. Rio de Janeiro, RJ: Zahar, 2008.

________________. A utopia urbana: um estudo de antropologia social. 6. ed. Rio de Janeiro: J. Zahar, 2002.

________________. Antropologia urbana: cultura e sociedade no Brasil e em Portugal. 3. ed. Rio de Janeiro, RJ: Jorge Zahar, 2006.

________________. Desvio e divergência: uma crítica da patologia social. 3. ed. Rio de Janeiro, RJ: Zahar, 1979.

________________. Individualismo e cultura: notas para uma antropologia da sociedade contemporânea. 8. ed. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2008.

segunda-feira, 5 de setembro de 2011

Análise da perspectiva antropológica antiproibicionista com relação ao uso ritual da ayahuasca em textos de fundadores do Neip

O objetivo do presente texto é compartilhar com os colegas do Gerts o estado atual da pesquisa que desenvolvo junto ao Programa de Pós-Graduação em Antropologia da Universidade Federal de Sergipe (NPPA/UFS).

No dia 26/08/2011, uma banca de qualificação aprovou minha proposta anterior (“A Antropologia da Ayahuasca”), mas apontou uma série de questões que precisavam ser revistas e que redundaram na atual proposta. As principais e necessárias mudanças dizem respeito a aspectos metodológicos. Vejamos um trecho do resumo da proposta que a banca aceitou sob a condição de eu realizar um aprofundamento de meu interesse que saliente os limites daquilo que problematizo:

Nesse estudo procuramos observar de que forma a Antropologia, como uma dentre as ciências que acompanham a expansão mundial dos novos usos do chá, se posiciona diante da problemática. Como foi construída a autoridade antropológica no Brasil que fundou um campo internacional comum de interesses? Procuramos apontar de que forma a autoria e os textos antropológicos se transformam em ferramentas que auxiliam na legitimação contemporânea dos novos usos da ayahuasca. (Trecho do Resumo de “A Antropologia da Ayahuasca”).

Eu havia realizado até então um levantamento de indivíduos que têm titulação na área de Antropologia e que publicaram estudos sobre o uso ritual da ayahuasca porque pensava que uma análise de seus discursos poderia me fornecer aquilo que eu buscava: uma lógica de enunciação fundamentadora da legitimação social da prática. Como não fui criterioso no meu planejamento, construí um quadro com 74 indivíduos, de diversos países, cujos perfis diziam respeito aos dois critérios apresentados (título de antropólogo e trabalhos sobre uso ritual da ayahuasca), que no final se mostrou inútil. Eu aprendi, sentindo na pele, que o primeiro passo para uma boa pesquisa se encontra na elaboração de um bom planejamento. A única coisa que pude deduzir desse quadro com 74 antropólogos é que eu precisava de critérios mais firmes para conseguir entender qualquer coisa a respeito do campo de estudos antropológicos sobre a ayahuasca.

Encontrei a possibilidade de exercitar esses critérios olhando para um ponto específico no quadro que eu já sabia antes que existia e que, caso tivesse enveredado inicialmente por esse caminho, poderia ter evitado muita energia despendida em torno de um problema de pesquisa mal elaborado: o fato é que alguns pesquisadores têm posturas “ativistas” com relação ao uso contemporâneo de psicoativos (inclusive a ayahuasca), defendendo o fim da proibição do uso de diversas substâncias consideradas ilícitas (como a ayahuasca também já foi).

A solução que encontrei para os problemas metodológicos de uma proposta generalista foi focalizar esse aspecto envolvido nos estudos antropológicos sobre ayahuasca: a perspectiva antiproibicionista assumida por diversos pesquisadores. Nesse cenário “antiproibicionista”, uma instituição brasileira tem papel central: o Núcleo de Estudos Interdisciplinares sobre Psicoativos (Neip). Dos sete fundadores do núcleo, quatro são antropólogos: Edward Macrae, Beatriz Labate, Mauricio Fiore e Sandra Lucia Goulart. Apenas Fiore não estuda o uso ritual da ayahuasca.

Basicamente, minha proposta continua a mesma: compreender o campo de interesses sobre o tema a partir da análise de textos essenciais nesse cenário (textos de três fundadores do Neip que são antropólogos e que estudam o uso ritual da ayahausca). A diferença é que aplico agora critérios mais definidos. Sobre a fundamentação teórica, a título de exemplos, priorizo: i) autores da autocrítica antropológica a partir dos anos 1980 (Clifford Geertz, James Clifford, George Marcus), ii) autores que exploram os limites da autoria diante do discurso (Mikhail Bakhtin, Michel Foucault, Roland Barthes) e iii) autores que me auxiliem a pensar o Neip como instituição (Max Weber, Eric Hobsbawn).