segunda-feira, 3 de julho de 2023

Afrofuturismo na Encruzilhada: usos e sentidos de tecnologias diaspóricas na construção de identidades

Por Laila Souza Carvalho



Figura 1 - Capa do single "Futuro Ancestral"; do multiartista Afrofuturista Marvin Lima

O exercício de exploração da imaginação está muito mais próximo do nosso cotidiano do que podemos detectar. Vivemos em meio a inúmeras possibilidades de escolhas e conversas internas com o nosso próprio “eu” acerca das decisões que serão tomadas durante o dia, ou até mesmo na forma como projetamos o futuro, seja ele daqui a minutos, horas, dias ou anos. Dessa forma, a construção daquilo que compreendemos por futuro está sendo constantemente edificado no presente, as vezes com referências de momentos passados, outras vezes não.

O Afrofuturismo se construiu e continua se construindo tomando por base esse constante exercício de exploração do campo imagético de pessoas pretas, através do qual foi sendo estabelecido uma relação cada vez mais próxima entre a ficção especulativa e aquela mesma pergunta que não quer calar: afinal de contas, onde estão os negros nos espaços, notadamente em espaços e posições de poder e tomada de decisão? O presente trabalho está voltado a entender essa pergunta e mais algumas, dentro de um contexto exploratório do conceito Afrofuturista, como por exemplo: o que é o Afrofuturismo? Quais as dificuldades impostas pela raça que atingem também o movimento Afrofuturista? O movimento Afrofuturista pode ser considerado como uma forma de identidade? Quais os principais contornos e características desse movimento?

Nesse compasso, a metodologia aplicada ao trabalho de pesquisa e revisão bibliográfica se acentua em conceitos traçados por estudiosos que se dedicam a entender diferentes formas de fazer pesquisa, com foco principal na autoetnografia, métodos interseccionais e relacionantes da própria experiência ao ambiente de pesquisa e conceitos estudados, fazendo um paralelo com a perspectiva da pesquisadora nessa experiência de fazer mestrado num país com um contexto sociopolítico no qual predominam o evidente descaso e desaparelhamento da educação pública e as constantes e massacrantes políticas públicas de ódio contra pessoas pretas. 

Para isso, lanço mão das tecnologias diaspóricas desenvolvidas pelos pesquisadores João Mouzart (2021) e Luiz Rufino (2017) como metodologia de estudo e de trabalho, analisando o Afrofuturismo a partir da "Pedagogia da Encruzilhada" (RUFINO, 2017), pois lanço o movimento Afrofuturista ao cruzo de suas próprias narrativas e agendas possíveis a partir de uma visão afrocentrada. "No mesmo compasso, ao lançar o conceito ao cruzo de suas possibilidades, me utilizo da Metodologia Parafuso" (MOUZART, 2021) para me lançar em um constante movimento reflexivo e analítico em torno do tema, seus alcances com relação à formação identitária de um grupo que está em constante modificação e enraizamento, aliado à própria perspectiva da pesquisadora Afrofuturista, que se vê contemplada pela maioria dos resultados de vivências possíveis a partir da movimentação do cruzo, notadamente nos aspectos concernentes à necessidade de usos de métodos anticoloniais nos modos de fazer pesquisa.

As configurações de construção do conceito do Afrofuturismo em suas várias implicações e formas, bem como o entendimento do tema como uma importante ferramenta tecnológica sedimentada a partir de experiências diaspóricas está sendo embasada em diversos pensadores Afrofuturistas que têm se debruçado acerca do objeto de análise nos mais diversos seguimentos, aos quais me alinho e utilizo como exemplos de sujeitos pensantes e praticantes do que denomino de movimento Afrofuturista no Brasil, tais como os escritores Lu Ain-Zaila (2019), Fábio Kabral (2016), Kenia Freitas (2018), Zaika dos Santos (2021), Morena Mariah e tantos outros nomes possíveis, visto a ampla gama de possibilidades que o Afrofuturo traduz.

Sendo assim, podemos fazer um exercício crítico e reflexivo a partir modus operandi Afrofuturista, ou seja, a partir de um embasamento teórico completamente construído por, com e para pessoas pretas, numa tentativa de traçar futuros que consideram as perspectivas da ancestralidade como ponto de partida para as infinitas possibilidades construídas dos diversos cruzos resultados da realidade diaspórica, tomando o tempo passado em seu aspecto imutável, visto que não se pode mudar o que já passou, mas podemos olhar os fatos acontecidos sob outros pontos de vista e experiências, principalmente a partir de uma perspectiva empretecida, dá-los novos contornos, interpretações e possibilidades, o que acarreta em resultados diversos tanto para o presente quanto para o futuro, pois é através das experiências já experimentadas que atuamos no presente para a construção de um futuro, ou pelo menos é assim que se entendem os usos e sentidos do movimento Afrofuturista.

REFERÊNCIAS

JUNIOR, Luiz Rufino Rodrigues. Exu e a Pedagogia das Encruzilhadas. Luiz Rufino Rodrigues Junior. Tese. (Doutorado em Educação no Programa de Pós-Graduação da Universidade do Estado do Rio de Janeiro), 2017.

OLIVEIRA JUNIOR, João Mouzart de. Entre a rua e o Ciberespaço: Ciberracismo nas redes sociais brasileiras. João Mouzart de Oliveira Junior. Tese (Doutorado em Estudos Étnicos e Africanos no Programa de Pós-graduação Multidisciplinar em Estudos Étnicos e Africanos na Universidade Federal da Bahia), 2021

sábado, 1 de julho de 2023

A Pandemia e as Emoções: os significados da experiência de ser jovem no cenário brasileiro de crises

por  Lúcia Verônica Muniz de Paulo


    A pandemia do vírus Sars-CoV-2 – conhecido como COVID-19 – trouxe desafios individuais e coletivos. Diante da crise sanitária, as pessoas perceberam-se impotentes e incapazes; passaram por alterações significativas nas formas de lidar com os seus afetos. Neste cenário, os grupos jovens foram apontados como os grupos mais afetados emocional e psiquicamente, sobretudo por certas particularidades em como vivenciaram este momento. As causas disto, embora tenham sido evidenciadas na pandemia, não são frutos exclusivos das mudanças trazidas por este contexto (WHO, 2022). 


Foto por Frank Marcon

    Para apreender em produndidade o cenário brasileiro da pandemia e as formas como as pessoas foram emocional e psiquicamente afetadas neste contexto, tomo como base, para a minha pesquisa de mestrado, os textos que trabalharei aqui. Frantz Fanon, mais especificamente os textos presentes no livro “Os condenados da Terra”. Este livro fora publicado pela primeira vez em 1961, e fala sobre o modo como a colonização vulnerabilizou – e ainda vulnerabiliza – a psique dos povos colonizados. E para abordar as emoções experimentadas pelos jovens diante da pandemia no Brasil, utlizo o texto de Lila Abu-Lughod e Catherine Lutz “Introduction: emotion, discourse, and the politics of everyday life”, que é um capítulo de introdução às discussões sobre a Antropologia das Emoções presentes no livro “Language and the politics of emotion”, publicado em 1990 e organizado por estas autoras.

Antes da crise sanitária espalhar-se pelo mundo, o sentimento no Brasil já era de desamparo e de desesperança. As crises sociais e políticas, decorrentes principalmente da instabilidade no Poder Exercutivo do país, traziam a sensação de que os brasileiros, sobretudo os que mais precisavam da atuação do Estado, tornavam-se cada vez mais “os condenados da terra” (FANON, 2022 [1961]). Este cenário, ao somar-se à chegada da pandemia, transformou-se em uma dupla crise, o que afetou diretamente a forma como este momento fora experimentado emocional e psiquicamente no país. Assim sendo, mesmo antes dessa conjugação de crises, os brasileiros já experimentavam a “hiper-afetividade” mencionada por Franz Fanon (2022), uma vez que as desigualdades sociais vivenciadas na pandemia decorreram – e ainda decorrem – de um processo de continuidade e aprofundamento da invisibilização e marginalização dos socialmente vulnerabilizados, que se iniciara antes mesmo da chegada do COVID-19 no Brasil. Por ser um país que segue marcado pelo colonialismo, o Brasil tem seu povo vulnerabilizado socialmente e mantido com sentimentos “à flor da pele, como uma chaga viva” (FANON, 2022, p. 48). Estes sentimentos, bem como a forma como as pessoas significam as emoções, para serem compreendidos, exigem a localização no tempo e no espaço de seus surgimentos.

Frantz Fanon (2022) ao falar sobre a colonização, diz que esta é uma grande provedora dos hospitais psiquiátricos, e que existe uma dificuldade de cura do colonizado dentro de um meio social com as marcas do colonialismo (p. 251). A forma como as pessoas são marcadas emocional e psiquicamente, portanto, está relacionada ao contexto social em que vivem, o que mostra que não há como prescindir dos resquícios coloniais ao falar sobre a pandemia em um país como o Brasil, que segue marcado pela colonização.

A investigação sobre as emoções, como disseram Abu-Lughod e Lutz (1990), exige a observância de dois pontos cruciais: sociabilidades e relações de poder (p. 13). Para identificar os modos como os jovens, a partir do cenário de crises que fora a pandemia no Brasil, produziram e significaram suas experiências emocionais, os aspectos sociais que envolvem a construção destas experiências exigem ser reconhecidos. As emoções suscitadas entre os jovens brasileiros durante a pandemia não têm suas origens tão somente nas individualidades, e sim na vida social; nas condições políticas e econômicas que intensificaram as suas vulnerabilidades e experiências de sofrimento.

Embora as emoções sejam manifestadas no corpo humano dos indivíduos, e ligadas à saúde mental, as suas origens também precisam ser situadas no corpo social, de forma que seja possível observá-las como socialmente construídas e significadas (ABU-LUGHOD; LUTZ, 1990, p. 13). Diferentemente da ideia de que a sociedade é feita por indivíduos isolados, em que cada um se encerra em sua subjetividade, parto da compreensão de que as subjetividades dos jovens foram afetadas por essa dupla crise, sobretudo entre os que já eram submetidos à vulnerabilidade social. As experiências emocionais deste grupo e investigadas na minha pesquisa são observadas como frutos das circunstâncias históricas e culturais; são frutos da forma como o poder apresenta-se nas relações sociais das juventudes.

As experiências não foram iguais, e as diferenças estiveram relacionadas a desigual distribuição de poder preexistente à pandemia. Por isto, a investigação tem se debruçado sobre as circunstâncias sociais que foram – e continuam sendo – o plano de fundo das experiências emocionais das juventudes, que cada vez mais interpretam seus sentimentos como enfermidades. A vulnerabilidade e a situação de crises, unidas, podem não ter sido provedoras para os hospitais psiquiátricos, como dissera Fanon (2022, p. 251), pois estes não mais existem como outrora. A relação destas circunstâncias, contudo, gerou uma exposição ao dano psíquico maior entre os que já enfrentavam socialmente as dores da chaga viva de viver com as emoções à flor da pele (FANON, 2022, p. 48).

 

REFERÊNCIAS:

ABU-LUGHOD, Lila; LUTZ, Catherine A. Introduction: emotion, discourse, and the politics of everyday life. In: ABU-LUGHOD, Lila; LUTZ, Catherine A. (orgs.). Language and the politics of emotion. Cambridge: Cambridge University Press, 1990. P. 1-23.

FANON, Frantz. Os condenados da terra. Rio de Janeiro: Zahar, 2022.

WHO. COVID-19 and mental health In: World mental health report: transforming mental health for all. Geneva: World Health Organization; 2022. p. 28-32. Disponível em: <https://www.who.int/publications/i/item/9789240049338>. Acesso em: 22 set. 2022.