Ana Paula Oliveira Barros
(PPGCOM/UFF)
Danielle Parfentieff de Noronha
(DCOS/UFS)
Erna Barros (PPGS/UFS)
Letícia Oliveira Feijão Galvão
(PPGS/UFS)
Lídia de Oliveira Matos (SEC/BA)
Maria Teresa Ruas Coelho (PPGS/UFS)
Durante cinco terças-feiras, de 11
de agosto a 8 de setembro de 2020, o GT Estudos de Gênero, vinculado ao Grupo
de Estudos Culturais, Identidades e Relações Interétnicas (GERTs), da Universidade
Federal de Sergipe (UFS),
realizou o evento “Rodas de Conversa: Gênero e trabalho no contexto do
isolamento - Problemáticas e Alternativas”, que contou com os temas Trabalho
Docente, Maternidade, Raça e Comunidades Tradicionais, Trabalhadoras Domésticas
e Mulheres Trans e diversas convidadas.
Em junho de 2020 ainda estávamos,
como a grande maioria da população, tentando entender o contexto pandêmico, que
inclui, entre outras coisas, o isolamento, o medo, a morte, as dúvidas e o
governo Bolsonaro e sua política de morte. Em 20 de junho desse ano, quando o Brasil chegava a 50
mil mortos, o presidente fazia “apelo por reabertura” e falava “em 'exagero' no
enfrentamento da pandemia”
(um pouco menos de um ano depois, em abril de 2021, o apelo pela reabertura e o
exagero no enfrentamento da “gripezinha” levaram o Brasil a ser o líder de
mortes diárias pela Covid-19).
Atualmente estamos
quase atingindo 370 mil mortes pelo coronavírus.
Nossas reuniões, naquele momento,
transcenderam os objetivos de um grupo de trabalho e passaram a ser encontros
também de intensa troca de afetos, quando discutíamos nossas vivências na
pandemia, principalmente a partir das
experiências que nos perpassavam como mulheres. Um dos principais temas que
estava presente em nossas falas era a forma como o trabalho havia se
transformado. Como pesquisadoras, estávamos vivenciando ao mesmo tempo em que
tentávamos entender as especificidades dessa intersecção entre gênero e
trabalho (que vinha acompanhada de outras intersecções como classe, raça,
geração, etc.).
Além das nossas experiências
particulares, começamos a pensar em outras realidades e como as distintas
relações de poder pautadas nas diferenças entre os gêneros estavam ganhando
novas dinâmicas durante a pandemia. Com isso, nasceu o desejo de ampliar a experiência
de nossas reuniões para outras mulheres e de discutir essas distintas
realidades através de um evento online que pudesse ser mais do que um encontro acadêmico, mas um momento de trocas
e diálogos diversos. Neste texto, escrito em várias mãos, nos propomos a fazer
uma etnografia das rodas de conversa, na qual buscaremos inserir nossos relatos sobre os encontros tanto como pesquisadoras e
organizadoras quanto como mulheres participantes.
Da
produção à realização das rodas de conversa
De modo coletivo, iniciamos a
organização do evento e discutimos sobre a estrutura, os temas principais - que
dialogavam com as nossas vivências, preocupações e pesquisas -, as mulheres que
seriam convidadas, e as funções que cada uma iria assumir para o seu desenvolvimento.
Decidimos que seriam cinco temas, mas que as rodas aconteceriam apenas uma vez
por semana, por entender que outra periodicidade poderia ser cansativa devido ao grande número de lives que estavam acontecendo
naquele momento. Pelo mesmo motivo, limitamos o tempo de duração do evento em
duas horas.
Optamos por iniciar as rodas em agosto para termos tempo de
divulgação e organização. A divulgação ocorreu principalmente pelo WhatsApp,
mas também por e-mail e outras redes sociais como o Instagram [3]. As
inscrições foram realizadas pelo Google Forms e o link do evento era enviado no
dia às pessoas
inscritas devido ao
medo que estávamos dos novos ataques virtuais[4] a eventos,
mais uma das “novidades” que a pandemia trouxe para as nossas realidades. Além disso,
fizemos algumas parcerias: com o Observatório da Democracia da UFS e com o
Grupo de Estudos Decoloniais da Universidade Tiradentes (Unit).
Uma questão muito importante para
nós era que o evento fosse aberto para que todas as pessoas participantes
pudessem falar e, por esse motivo, optamos por uma roda de conversas, apesar de
ainda não termos certeza como poderia funcionar esse formato de modo virtual. O evento foi
realizado no Zoom e, com
o intuito de transformar cada roda em um podcast[5], optamos
em gravar apenas as falas das convidadas - entendidas como as pessoas
responsáveis por iniciar a conversa - para que todas as presentes pudessem se
sentir à vontade para falar a abrir as suas câmeras.
A arte de divulgação das Rodas de
Conversa foi realizada por nossa integrante Erna Barros. Ela foi construída a
partir de um conceito que tinha a proposta de apresentar em imagens aquilo que
pretendíamos vivenciar de forma coletiva: discutir gênero e construir elos em
meio ao distanciamento social que era rotina em nosso dia a dia. Buscamos chamar atenção para
esses elos através de uma imagem vinda das ruas: um graffiti fotografado na
cidade de Aracaju (SE).
A imagem fora fotografada por Erna meses
antes, quando as restrições sanitárias, o “fique em casa” e as demais
implicações advindas da pandemia ainda eram impensáveis. O graffiti foi
transformado em uma imagem vetorizada que fez parte do cartaz de divulgação das rodas de conversa e continha a imagem desconstruída da
pintora mexicana Frida Kahlo, símbolo de força e superação, e um arco-íris
unindo partes de sua cabeça (ou mesmo brotando ou se expandindo a partir dela).
Arte de divulgação das Rodas de
Conversas Gênero e Trabalho
As diversas cores foram elementos
importantes da nossa proposta imagética pois buscavam ativar no público o
interesse pelo tema, a partir do reconhecimento de uma personagem já conhecida
por sua história de resistência. Diante do estado de inquietação em que nós e
toda a sociedade se encontravam
durante os primeiros meses de pandemia, a arte de divulgação propunha um apelo
à esfera do que é lúdico e abstrato, pois buscávamos também um espaço no qual o gênero pudesse ser o fio condutor
de trocas e de acolhimento.
Era a leveza em meio ao caos, unindo
em uma roda de conversa feita por e para mulheres, histórias, memórias,
experiências e desabafos a partir de várias perspectivas. “Ampliar o laço de união entre as
mulheres” foi uma das formas de apresentar o evento na redação ao cartaz, buscando resgatar o sentimento de
sororidade, levando em consideração as dinâmicas realidades vivenciadas pelas
mulheres, tão
necessário naqueles momentos iniciais do isolamento.
A imagem de Frida, trazida das ruas
ao ambiente virtual, apresentava-se como um rompimento, tal qual era o
sentimento da quarentena naquele momento. Tínhamos, todas nós mulheres, sofrido
um rompimento abrupto do fluxo de nossas relações, no trabalho, no ambiente
familiar, no ambiente doméstico de forma bastante intensa. E precisávamos falar
sobre isso. Nessa fala coletiva, reconstruíamo-nos e resistíamos a partir da
união de diferentes mulheres, que, ao abrir espaço para diferentes realidades,
mesmo separadas, continuavam juntas.
Diálogos em 'rodas' virtuais
A roda de conversa de abertura teve
como tema “Trabalho docente”, debate crucial para o momento de pandemia já que
todos os lugares que podiam
aglomerar pessoas foram fechados. No Brasil, as escolas, universidades e outros
espaços educacionais foram fechados durante o mês de março de 2020, assim, se tornou pauta
constante dos noticiários e espaços de debate os impactos do fechamento das
escolas, os prejuízos ao processo educacional em curso e as possibilidades de
ensino em um contexto de emergência sanitária.
Essa roda, que ocorreu no dia 11 de agosto de 2020, foi mediada pela professora de
sociologia Lídia Matos, docente no ensino médio em uma escola pública no
interior bahiano, e foram
convidadas professoras dos vários níveis de
ensino com o objetivo de discutir como o contexto da
pandemia estava afetando a prática docente, a subjetividade, e quais eram os principais conflitos e
dilemas enfrentados pelas mulheres professoras. Para iniciar a conversa contamos com as professoras: Fernanda Xavier Maia, docente da rede pública no estado de Minas Gerais, Mayara Silva
Nascimento, docente no Centro universitário UNIAGES/BA e a Mara Raissa Santos
Silva e Freitas, professora na educação básica na rede privada no estado de Sergipe.
A mediadora Lídia Matos iniciou a sua
fala trazendo dados que mostravam a desigualdade de gênero no contexto da
educação brasileira, como a
diminuição da presença de mulheres ocupando o cargo de professoras à medida que
se eleva o modalidade de ensino[6] e os impactos da Covid-19 na educação mundial e
brasileira[7]. As questões que mais se destacaram nas falas das convidadas
foram: a oferta de um ensino remoto mediado por tecnologia, que tem como um dos maiores empecilhos a
falta de acesso a dispositivos e à internet por parte das e dos estudantes e professoras e professores; a falta de formação em educação e
tecnologia; e a visível inoperância do Ministério da Educação e da esfera
Federal brasileira, (des)governada pelo presidente Jair Bolsonaro, em
apresentar um plano de fato eficiente que possibilitasse um processo
educacional possível e que se estendesse por todo território nacional.
As convidadas apontaram também as suas
dificuldades e dilemas enfrentados na sua prática docente, destacando as suas
realidades específicas.
Foram enfatizadas as diferentes
atitudes tomadas nas
redes particular e pública de ensino e
como variam os planos de retomada das atividades educacionais, já que esses ficaram a cargo das esferas
estaduais e municipais. Outro ponto levantado foram as estratégias usadas para
se adaptar ao ensino remoto mediado por tecnologia, ficou explícito que não
estávamos treinadas e preparadas para essa modalidade de ensino e tivemos que
buscar por conta própria as soluções possíveis; questões emocionais e físicas
também foram apontadas: o
cansaço, desgaste, tristeza, medo e a insegurança foram mencionadas como
fatores que impactam diretamente na prática docente.
Após a fala das convidadas, foi
aberto o debate e
houve a participação de
outras pessoas que
trouxeram novas
questões, como o desafio que era para as mães, pais e responsáveis
acompanharem esse ensino remoto com as crianças e jovens, além dos pontos que
já haviam sido mencionado pelas convidadas e foram endossados pela fala de
outras professoras que estavam participando da roda. Finalizamos o nosso encontro com palavras de estímulo e
incentivo, reforçando a crença que a educação é uma importante chave de mudança
da nossa sociedade e é necessário continuar lutando para que ela seja universal e de qualidade.
Na sequência, 18 de agosto,
aconteceu a roda sobre maternidade mediada por Danielle de Noronha, mãe de
Camilo, que contou com a presença das cineastas Luciana Oliveira, mãe de Malaika, e Manoela Veloso, mãe de
Olga, e da professora Mélanie Létocart, mãe de Ian,
Luan, e Anna Eva.
O tema foi incentivado pelas novas dinâmicas que foram
incluídas na rotina das integrante do GT que eram mães ou conviviam com crianças.
Num primeiro momento – e talvez ainda estejamos nos adaptando a isso – foi difícil
medir a quantidade de trabalho e o tempo em frente às telas, que já não era pouco
e se ampliou ainda mais. Essa nova realidade de família em casa, existente para
as pessoas que têm esse privilégio de poder desenvolver todas as atividades de
modo remoto, inclui as dinâmicas específicas das crianças: mais interação familiar,
mas também mais telas, aulas online e, a mais preocupante delas, a falta de
convívio presencial com outras crianças.
A mediadora
trouxe alguns dados para iniciar o debate: a sobrecarga do trabalho doméstico,
a diminuição do rendimento no trabalho, que no caso das mulheres pesquisadoras
teve um reflexo direto no número de artigos enviados para publicação, a
complexidade das vivências de mães solo, além do aumento de casos de violência contra
as mulheres. A partir daí, cada uma das convidadas a iniciar a roda trouxe as
particularidades de suas experiências. Mélanie, que começou a pesquisar sobre
feminismos, maternidade e literatura, trouxe em sua fala suas vivências como
mãe, mas também como filha – e como as experiências como filha refletem na prática
da maternagem. Além disso, nessa relação entre maternidade e trabalho, percebeu
logo no início as dificuldades que são impostas pelas estruturas e como isso
pode se complexificar na pandemia – vivida com filhos e filha de diferentes
idades. No caso do ambiente acadêmico, tanto das professoras como das alunas,
ela reflete como é um espaço constituído de lógicas masculinizadas, que não são
pensadas para acolher as mães.
Luciana
Oliveira, que ficou grávida durante o mestrado, também compartilha dessa
dificuldade que o ambiente acadêmico impõe às mulheres mães. Além de
pesquisadora, sua trajetória inclui a vivência como produtora audiovisual, outra
área bastante machista e sexista que também coloca dificuldades às mulheres, e
em espacial àquelas que são mães – e nos aponta que são muitos os espaços nos quais
as mulheres encontram empecilhos e que ainda há muita desigualdade de gênero
nos ambientes universitários e de trabalho. Como exemplo, em 2007, as mulheres ocupavam 40,8%
das vagas do mercado formal e em 2016 representavam 44%, demonstrando um leve
aumento no período, conforme reportagem divulgada pelo Portal Brasil. Além
disso, uma pesquisa realizada pela Catho, em 2018, mostra que as mulheres
ganham menos que os homens em todos os cargos, sendo que em algumas áreas, como
idiomas, a diferença pode chegar a mais de 110%.
Luciana falou também sobre suas vivências como mulher, mãe e preta, além de questões sobre o puerpério e as possibilidades de cura. Junto
com Manuela, a última convidada a falar, Luciana estava produzindo um
documentário sobre a maternidade,
e encontrou no audiovisual parte desse processo de cura. Em sua fala, Manoela complementou
contando sobre o poder terapêutico que o desenvolvimento do filme proporcionou,
no qual puderam ouvir outras mulheres e outras experiências – apontando para a importância
do diálogo entre as mulheres como forma de fortalecimento e resistência.
Manoela se
tornou mãe em 2016 e conta “que redescobriu na pele as opressões sobre a
mulher, e assume por ela e por Olga sua parte nesse processo de redesenhar o
passado e o futuro através do presente”. Iniciou sua fala dizendo que logo que
sua filha nasceu percebeu que as responsabilidades não eram divididas da mesma
forma entre ela e o pai, o que descontruiu a ideia que tinha sobre como seria a
criação da filha. Por fim, após ouvirmos as falas das três, outras mulheres
compartilharam suas experiências. Ainda vale ressaltar que as crianças fizeram
participações especiais nas falas de todas as convidadas.
No dia 25 de
agosto, aconteceu a terceira roda sobre raça e comunidades tradicionais. Com
mediação de Ana Nobre, a conversa iniciou com as falas da quilombola Claudeane
Bisco, do quilombo Brejão dos Negros em Sergipe,
de Karine Santos, da comunidade indígena Kairi-Xocó, e da pesquisadora Yérsia
de Assis, que faz parte do
Samba de Aboio/Aguada/Sergipe e é
Ekédjí no Ilê Axé Omin Mafé. A roda ainda iria contar com as presenças de Elienaide
Flores, educadora popular, catadora de mangaba, militante e marisqueira, que teve
problemas particulares e não pôde comparecer, e de Geonísia Dias, marisqueira e
integrante do Movimento de Marisqueiras de Sergipe, que teve problemas na
conexão – mais uma realidade desses ambientes virtuais que tivemos que aprender
a conviver.
Incentivada
pela roda anterior, sobre maternidade, Ana convidou sua mãe para participar do
evento e pediu licença a ela e as mulheres presentes para mediar o evento. Iniciou
a roda apresentando as convidadas e ressaltando a tentativa de simularmos uma
roda de conversas presencial. A primeira a falar foi Karine, que compartilhou
um pouco sobre as vivências de sua comunidade, em especial nesse contexto da
pandemia, mas também pontuando questões que se repetem em outras comunidades
indígenas. Como mãe, comentou sobre as mudanças nas rotinas das crianças, que normalmente
são muito pautadas nas trocas coletivas.
Na seguida,
Claudeane falou sobre a experiência de sua comunidade. Contou que no início ainda
não sabiam muito como lidar com a Covid-19, inclusive pela falta de informações
que havia naquele momento, mas que com o aumento dos casos decidiram não deixar
pessoas de fora entrar na comunidade, com o intuito de buscar proteger, em
especial, as idosas, os idosos e as crianças, e mesmo assim houve alguns casos
da doença, felizmente sem muita gravidade. Para ela, um dos principais impactos
na comunidade foi a necessidade de pausar as atividades que estavam realizando,
como oficinas e reuniões. Entretanto, pontuou que com o passar do tempo, elas e
eles foram criando novas estratégias para manutenção da comunidade e encontram
na internet a possibilidade de dar seguimento aos seus trabalhos.
Por fim,
Yérsia iniciou sua fala refletindo sobre as mudanças nas rotinas de sua família,
uma realidade que deve ter se repetido nas rotinas de muitas outras famílias. Suas
avós, que são mães de muitos filhos e filhas e estavam acostumadas aos grandes
encontros, de repente se encontraram num contexto de isolamento. O que, num
primeiro momento, pode ter sido mais fácil compreender, com o passar do tempo foi
se tornando mais insuportável. A necessidade do distanciamento as fez pensar
que estavam sendo abandonadas e os cuidados se ampliaram ainda mais pela morte
de um avô pela doença, o que ainda inclui a situação de poderem viver o luto
coletivamente. Sua fala remeteu às frustrações das idosas e dos idosos nesse
processo, que muitas vezes são entendidas e entendidos como pessoas sem agenda
e programações, mas que na verdade possuem muitos planos, que também foram
impossibilitados pelo contexto pandêmico. Além disso, por se tratar de pessoas
que vivem no interior, essas questões ainda têm a ver com a agenda própria de
suas comunidades, isto é, não é apenas uma tristeza individual, mas também
coletiva, já que a própria comunidade está chateada por suas realidades e rotinas
terem sido alteradas.
A quarta roda de conversas, centrada
nas discussões sobre o trabalho doméstico no contexto pandêmico, ocorreu no dia
01 de setembro. Mediada por Maria Teresa Ruas Coelho, doutoranda de sociologia na UFS, a roda contou
com a participação de Fernanda Amorim Accorsi, professora do departamento de
Educação na UFS; de
Quitéria Santos, vice-presidenta do Sindicato das Trabalhadoras e Trabalhadores
Domésticos do estado de Sergipe; e,
finalmente, de Maria Vera de Almeida Nunes, mãe de 5 filhos e filhas e
trabalhadora doméstica há mais de 20 anos.
A importância da temática foi
evidenciada por três eventos que suscitaram o choque e a revolta no debate
público brasileiro: o primeiro registro de morte por Covid-19 no Rio de Janeiro
foi de uma trabalhadora doméstica, que contraiu o vírus de sua patroa que havia
viajado para a Itália ainda no início da crise sanitária; a morte do menino
Miguel que caiu do nono andar de um prédio em Recife onde sua mãe, Mirtes
Renata de Souza Santana, trabalhava como doméstica e havia deixado o filho aos
cuidados da patroa enquanto exercia suas funções; e, finalmente, da mulher que
foi submetida por quase 40 anos a trabalho como doméstica análogo à escravidão
em Elísio Medrado, no Recôncavo Baiano[9]
Como nas demais rodas de conversa,
as desigualdades interseccionais entre gênero, raça e classe foram centrais
durante todo o debate. Uma pesquisa realizada pelo Instituto de Pesquisa
Econômica Aplicada (IPEA), realizada durante a crise sanitária do Covid-19 e
citada como introdução à conversa do dia, apontava fato já consolidado: o
trabalho doméstico é realizado predominantemente por mulheres negras, com baixa
escolaridade e baixa renda. Contando quase 6 milhões de mulheres, o trabalho
doméstico representa mais de 14% da população de mulheres ocupadas no Brasil,
dentre as quais somente 28% possuem carteira assinada.
A primeira a falar foi Vera, que
compartilhou a sua vivência enquanto trabalhadora doméstica dentro e fora do
contexto pandêmico. Relatou o início da trajetória como doméstica como a
alternativa disponível para a garantia de seu sustento e dos filhos após a
separação do marido; a experiência de trabalhar com carteira assinada somente
em duas ocasiões; e a preferência em trabalhar como diarista. Durante a
pandemia, Vera estabeleceu com a empregadora, para quem trabalha há 15 anos,
que permaneceria trabalhando na condição de que a buscassem e retornassem à sua
casa de carro, de modo que ela pudesse evitar circular no transporte público.
Mas contou que preferiu deixar o trabalho na casa de um médico, por medo do
contato com a doença.
A próxima a falar foi a Fernanda,
que trouxe uma visão mais acadêmica de mulheres trabalhadoras e da
corporalidade feminina. A professora pontuou a importância de se conferir
centralidade à divisão racial que estrutura desigualdades também entre as
mulheres e citou Suely Carneiro na afirmação de que a pobreza possui gênero e
raça. Ressaltou, ainda, a necessidade de desvelar esse contexto privado e
dissociado de sua expressão real que é a casa, o doméstico, o lar. Esse espaço,
geralmente construído como de afeto, de harmonia e descanso, compreende
essencialmente tensões, desigualdades, o exercício do trabalho do cuidado e
mesmo violências simbólicas e materiais. Na distribuição desigual desses
encargos e violências, as trabalhadoras domésticas ocupam a posição de maior
vulnerabilidade.
Por fim, Quitéria relatou a sua experiência
enquanto trabalhadora doméstica e também como militante política. Contou como
também começou a trabalhar como doméstica ao se separar do marido, enquanto
alternativa disponível para a sua subsistência e de seus filhos. Narrando sua
trajetória enquanto trabalhadora e militante, Quitéria relatou alguns dos
problemas enfrentados pelas trabalhadoras domésticas na pandemia d Covid-19 que
chegaram ao sindicato e às organizações que as representam. Um deles refere-se
à grande quantidade de trabalhadoras domésticas que foram dispensadas por seus
patrões e tiveram seus direitos negados. Na sua fala surge a importância de
movimentos e organizações políticas - sobretudo neste momento crítico - como
espaços onde essas mulheres encontram uma rede de apoio e buscam orientação
para a compreensão e defesa dos seus direitos.
A quinta e última roda aconteceu no
dia 08 de setembro e tratou sobre a questão das mulheres trans no contexto de
isolamento. A roda foi mediada por Ana Paula O. Barros, doutoranda em Comunicação,
e contou com a presença de Linda Brasil, mestra em Educação e militante
feminista, LGBTQIA+ e transfeminista, e Adriana Lohanna, ativista LGBTQIA+,
mestra em Educação, professora e pesquisadora. As discussões trazidas trataram,
principalmente, sobre o impacto da pandemia dA Covid-19 no aumento das desigualdades em termos de classe,
raça e gênero.
Primeiramente, foram trazidos dados
da Associação Nacional de Travestis e Transexuais, que constataram que, desde
que o isolamento social começou a ser adotado, houve uma alta no número de
mortes de mulheres trans. Outro ponto abordado é que o processo de exclusão
social, que sempre impactou diretamente a vida das mulheres trans, foi
intensificado mais ainda no período de isolamento e pandemia. Foi destacado que
esse reflexo da exclusão foi sentido fortemente no mercado de trabalho. Segundo
a ANTRA, com raras oportunidades de emprego, cerca de 90% das pessoas trans no
Brasil acabam recorrendo à prostituição e, mesmo com a pandemia, as
trabalhadoras sexuais continuaram nas ruas, pois essa costuma ser sua principal fonte de
sustento. Aliado a isso ainda surgiram e se intensificaram os impactos
psicológicos provocados pelo distanciamento social. Entre eles, a solidão, o
abandono, a LGBTfobia no ceio familiar e a ansiedade diante de um cenário de
incertezas.
Por fim, foi pontuado que no
contexto de pandemia é importante trazer essa reflexão sobre a gravidade do
isolamento social no dia a dia das travestis e transexuais que se encontram em
situação completamente vulnerável, e que sofrem com o desamparo da sociedade,
de modo geral.
Considerações
finais
Finalizamos
o evento e realizamos uma reunião para discutir quais foram os resultados e concluímos
que a experiência foi bastante positiva. Tivemos mais de 150 inscrições, de todo o país, e uma média de 25 participantes por roda. Todas ainda estamos aprendendo como
lidar com esses ambientes online, mas, apesar disso, buscamos criar encontros
que fossem acolhedores, ao mesmo tempo que pudéssemos refletir sobre as diferentes
realidades de mulheres no contexto da pandemia da Covid-19.
Como já era
esperado, alguns problemas técnicos foram encontrados, como pessoas que não
conseguiram se conectar, pessoas inscritas que não receberam o e-mail com o
link da sala para alguma roda, áudios baixos ou com ruídos, mas todos foram superados
e não foram capazes de comprometer os encontros. Apesar de cada roda ter um
tema específico, todos os temas – e outros mais – dialogavam e estiveram
presentes de diferentes formas durante todo o evento. Pudemos constatar a partir
das falas como a pandemia, apesar de apresentar questões comuns a todas, se
manifesta de diferentes formas a depender do modo como se intersecionam os marcadores
sociais da diferença como gênero, raça, classe, sexualidade, etc. Foram encontros intensos, de muita escuta, diálogos
e aprendizados. Em um outro momento, podemos ainda discutir outras questões que a experiência nos trouxe, como a intimidade que se expõe nas interações online, os limites dos encontros mediados por telas, a participação, entre outros temas que se apresentaram para além das discussões que estávamos propondo.
Após a realização das rodas de conversa, a programação
das atividades do GT se pautou em reuniões mensais nas quais discutimos textos de
diversas teóricas feministas, utilizando como referência o livro “Pensamento
feminista: conceitos fundamentais”, organizado pela pesquisadora Heloisa Buarque de Hollanda. Os textos estudados dialogavam com áreas como
antropologia, sociologia, ciencia política e história, e discutiam uma série de
conceitos-chave necessários para a compreensão do desenvolvimento das teorias feministas - a exemplo dos textos “Gênero: uma categoria útil para
análise histórica”, de Joan Scott, “A
tecnologia de gênero”, de Teresa de Lauretis, e “A
instabilidade das categorias analíticas na teoria feminista”, de Sandra Harding. O livro
mencionado também comporta uma série de textos voltados a correntes teóricas
como o pós-colonialismo, a decolonialidade e a teoria queer, que serão discutidos em reuniões futuras.
Tanto as discussões realizadas
durante o evento sobre gênero e trabalho quanto os debates teóricos feitos a
partir da literatura utilizada nas reuniões do GT nos fizeram refletir sobre as
diversas posições que ocupamos enquanto mulheres – mães e filhas, professoras e alunas, profissionais e/ou
chefes do lar. Em um contexto como a pandemia de Covid-19, faz-se necessário estarmos atentas às dinâmicas sociais
que nos rodeiam, que por vezes são mediadas por relações de poder. Os
questionamentos levantados nas rodas de conversa e na leitura dos textos das
teóricas feministas passaram, portanto, a ser pontos de apoio de grande
importância neste momento.
As rodas de conversas estão disponíveis no canal de podcast do GERTs: https://anchor.fm/gerts-ufs
Referências
bibliográficas
HOLLANDA, Heloísa Buarque de. (org). Pensamento feminista: conceitos
fundamentais. Rio de Janeiro: Bazar do Tempo, 2019. 440 p.
[4] Os ataques virtuais
são caracterizados pelo acesso à reunião por
pessoas e grupos que tinham por objetivo atrapalhar ou impedir a realização de
eventos onlines com ações como: colocar músicas e sons, impedindo que a fala das
pessoas participantes e
palestrantes fossem ouvidas, disparar ofensas contra as
presentes, compartilhar imagens pornográficas,
violentas e outras, além do encerramento inesperado de salas virtuais.
[5] Os podcasts são
arquivos de áudio que são disponibilizados em plataformas de transmissão de
conteúdos online, acessíveis a qualquer pessoa que tenha cadastro em uma dessas.