As 22h cheguei ao show de Yuri da Cunha, no Coliseu da Praça de Touros do Campo Pequeno. Yuri é um artista angolano, cantor de ritmos populares de Angola, como o semba e o kizomba, mas também aventura-se pela música romântica, por ritmos afro-caribenhos e cabo-verdeanos, bem como pelo rap e pelo o kuduro. Eu havia comprado o ingresso a uma semana, pelo preço de 20,00 euros, estava interessado em dois aspectos do seu show, no grande número de músicos convidados, entre eles um dos grupos mais famosos do kuduro, os Lambas, e o título do espetáculo, denominado Sou Lusófono, em que além de outras atrações angolanas, como Perola e Bonga (ídolo da kizomba), estavam o português Rui Veloso, o cabo-verdeano Jorge Neto e o rapper luso-caboverdeano Boss AC. Sobre os Lambas, eu estava interessado em vê-los atuando no palco, em perceber a recepção do público e tentar compreender como um grupo de kuduro era enquadrado num show com este perfil, que não me parecia um espetáculo comum para tal. Sobre a denominação do show, Sou Lusófono, estava interessado em perceber como aparecia a tal da lusofonia na retórica do espetáculo, com que seria alegoricamente posta tal “idéia lusófona”.
Já na entrada do coliseu, um grande público circulava, entrando e saindo da arena, pessoas de todas as idades, alguns casais, prevalecendo muitos jovens, mulheres e homens, algumas crianças. Eu ainda não havia encontrado em Lisboa, um ambiente onde a grande maioria reunida era de afrodescendentes e de africanos. “Formou-se uma ilha africana em Lisboa”, ali no Campo Pequeno, centro comercial badalado, junto à praça de touros, onde ocorrem semanalmente as touradas de verão, com um público completamente diferente. Dentro da arena, hoje o espaço estava dividido entre público o sentado e o público em pé. Entrei, circulando pelo público em pé, observando os casais e os grupos de mulheres e homens mais jovens neste espaço. O show demorou cerca de meia hora para começar. Antes disto, música eletrônica. Percebi que o pessoal dos bastidores, entre seguranças e produção do show, havia uma presença mais portuguesa e branca. Na abertura, já se vê a grande produção, entra um grupo de dançarinas brancas vestidas com roupas militares, boina roxa, e no papel de comando um homem negro. Logo em seguida entra Yuri com a mesma referência militar inicia o show. Seria uma referência irônica à lusofonia. Uma satirização da guerra colonial. Talvez. Isto é algo a ser aprofundado mais tarde, revendo as imagens. No palco, um grande número de músicos, à esquerda os instrumentos de corda e bateria, à direita os instrumentos de sopro e percussão. Vários equipamentos de reprodução de imagem acima do palco e uma cobertura completa do show, repleto de câmeras por todos os lados, possibilitando um acompanhamento de todos os ângulos. Ainda se tratando de imagem, apareciam ao fundo do palco, em imagem digital, com freqüência a bandeira de Angola e a alternância das bandeiras de Portugal, Cabo Verde, São Tomé, Guiné Bissau, Moçambique e Brasil. Durante o show alternaram-se os ritmos, as performances, as indumentárias e os músicos convidados. Sempre que Yuri se dirigia ao público chamava pela manifestação da presença dos angolanos, portugueses, caboverdeanos, guineenses, moçambicanos e brasileiros, ao que o público respondia, dando a sensação de que era mesmo possível se identificar a presença de pessoas de todas estas procedências espalhadas pela platéia. A maioria a manifestar-se era angolana, seguida de portugueses, são-tomenses, caboverdeanos e brasileiros. Se via entre a platéia algumas bandeiras, como de Angola e Caboverde, ou em forma de cachecóis e, camisetas e outros panos. Yuri aproveitava para chamar a platéia ao apelo de tal simbologia. Outra forma manifesta dos símbolos da lusofonia foi à ênfase dada pelo artista ao que chamava de seu público de língua portuguesa, “que lhe ama”, repetindo a mesma forma de dizer uma frase com os vários sotaques em língua portuguesa de diferentes países. Além da sensualidade feminina e masculina no palco, com uma mistura de trajes e movimentos corporais coloridos, rápidos e melódicos, o show foi muito divertido, de qualidade, alegre, descontraído, com apelo ao espetacular (luzes, laser, gelo seco, canhões de fogo e papel picado, equipamentos digitais e comandos precisos), com um público cativante. O romantismo português, a melodia compassada da kizomba, o semba, o rap foram se sucedendo até a entrada dos Lambas, com o kuduro. A frente os músicos e dançarinos Bruno King e Tio K, abriram a participação, sendo muito ovacionados, e atrás Yuri anunciou o “Chefe do Estado Maior do Kuduro”, “Na Grelha”, que entrou com o seus movimentos e o tom agressivo, apontado para a platéia, provocando outros kuduristas. O público vibrou bastante, ao meu lado muitos acompanhavam as letras das músicas ou dançavam. Por fim, Yuri volta ao show só e depois acaba com todos os artistas no palco. Descontraidamente, enquanto Yuri canta suas últimas músicas e fala com a platéia, com novas menções a “sua lusofonia”. Enquanto isto, observo ao fundo do palco, sentados, Bonga e Na Grelha conversando num tom bastante amistoso e afável, duas gerações distintas, Bonga, anos 70/80, e Na Grelha, século 21; a kizomba e o kuduro, dois representantes de ritmos considerados nacionais, angolanos, mas com linguagens muito distintas (ao kuduro, muitas vezes, são atribuídas às influências da própria kizomba, além do zuck e do rap). Ao fim do show, agradecimentos de Yuri a deus e a “família” (em muitos momentos do show ele mencionou a “família angolana”, fazendo um apelo ao que considera seu público: a “família”). Apesar da ênfase na lusofonia, incluindo Brasil e Portugal, o show foi muito mais voltado para um público africano e carregado da expectativa de ser africano em português. O show acaba, as pessoas se dispersam, vou pra casa observando os movimentos das pessoas se organizando em caronas para irem a outros sítios continuar a noite festiva ou então em sua ida para casa em algum ponto num dos bairros da Grande Lisboa.
É possível ver um típico discurso da lusofonia, anunciando o show do Yuri no endereço www.hojelusofonia.com/yuri-da-cunha-numa-digressao-%C2%ABlusofona%C2%BB/
Notícia sobre Os Lambas: jornaldeangola.sapo.ao/17/0/lambas_cantam_em_portugal
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