Meu propósito é investigar como o processo de modernização de Aracaju afeta os barbeiros e cabeleireiros e como, por sua vez, eles enfrentam ou se sintonizam com ele. Porém também é interessante saber como a modernização da cidade parece colocar barbeiros e cabeleireiros em posições opostas. Se a cidade é definida, como diz Michel de Certeau, pela produção de um espaço próprio, pelo estabelecimento de um não tempo e por se tornar um sujeito universal e anônimo, o que acontece com esse outro, com esse “homem ordinário” que mora, que pratica e que vive nesse “lugar de transformações e apropriações, objeto de intervenções” ? (CERTEAU, 2011, p.160 e 161). Sendo assim, num contexto mutante como é a cidade, como os barbeiros e cabeleireiros demarcam sua identidade? Ou melhor, como eles atravessam essas fronteiras laborais, ora se identificando como cabeleireiro, ora como barbeiro, a depender da situação em que se encontram.
Dois exemplos podem ilustrar como os barbeiros, especialmente, passam por uma espécie de “desencantamento de seus mundos autocentrados” (CANCLINI, 2011, p.22). O barbeiro W, que citamos logo no início do trabalho, embora atuasse como barbeiro e na sua narrativa criticasse o proceder dos cabeleireiros, dizendo que muitos deles tem “um jeitinho especial”, afeminando-os, sempre referia a si mesmo como “Eu, cabeleireiro”. É como se, inconscientemente, W tentasse se revestir de um saber mais “moderno”, mais escolarizado, diante de um entrevistador que freqüentava a academia.
Já o cabeleireiro E, que assim se identificava quando da época da entrevista e possuía um Salão de Beleza onde trabalhava com sua filha, também cabeleireira, só atuava como barbeiro. Ele só atendia a clientela masculina e não usava o lavatório, instrumento muito citado nas entrevistas como importante na nova configuração dos salões, que só depois associei a idéia de limpeza. Assim, no dia em que o entrevistei entrou uma mulher com sua filha e ela perguntou se ele estava atendendo, ao que ele respondeu que não poderia atende-la porque não estava atualizado e só atendia a clientela masculina, que ela voltasse outro dia para ser atendida por sua filha, que era cabeleireira. Algum tempo depois, pensei que E manipulava sua identidade profissional, para cobrar mais caro por seu serviço. Atuava como barbeiro, mas se denominava cabeleireiro.
Estes dois casos parecem ter relação o que Stuart Hall afirmava sobre o indivíduo moderno, que tem sua identidade deslocada devido a certos descentramentos: a redescoberta do pensamento marxista, a descoberta do inconsciente de Sigmund Freud, os trabalhos em lingüística estrutural com Ferdinand Seaussure, as idéias de Michael Foucault sobre o poder disciplinar e o impacto do feminismo. (HALL, 2006).
Um tipo diferente de mudança estrutural está transformando as sociedades modernas no final do século XX. Isto está fragmentando as paisagens culturais de classe, gênero, sexualidade, etnia, raça e nacionalidade, que, no passado nos tinham fornecido sólidas localizações como indivíduos sociais. Estas transformações estão também mudando nossas identidades sociais, abalando a idéia que temos de nós próprios como sujeitos integrados. Esta perda de um “sentido de si” estável é chamada, algumas vezes, de deslocamento ou descentração do sujeito. Esse duplo deslocamento – descentração dos indivíduos tanto de seu lugar no mundo social e cultual quanto de si mesmos – constitui uma “crise de identidade” para o indivíduo (HALL, 2006, p.9).
Esses exemplos confirmam que estamos diante de situações em que os indivíduos necessitam manipular sua identidade profissional. Ressalta Fredrik Barth que, quando há mudança de identidade, surge uma ambigüidade, uma vez que, muitas vezes, a manutenção de uma fronteira e da dicotomia categorial parece ser destruída, pois as distinções reais são confundidas. Daí a importância de não nos apegarmos “ao aperfeiçoamento de uma tipologia, mas ao descobrimento dos processos que acarretam tais reagrupamentos” (BARTH, 1998, p.214/215).
Porém, discutindo dentro Grupo de Estudos Culturais, Identidades e Relações Interétnicas (GERTS/NEAB/UFS), e escutando as orientações do professor Frank Nilton Marcon, escolhi a área dos Mercados Centrais de Aracaju como local nossa pesquisa. Em primeiro lugar porque a região dos Mercados deixou de ser o espaço das minhas memórias de infância, um espaço de sujeira após a reforma empreendida pela Prefeitura de Aracaju, em 1996, na gestão de João Augusto Gama. Essa intervenção, que teve um propósito modernizador, fez esse espaço acumular outra função que é atender a demanda turística. Assim, enquanto uma passagem rápida pelo shopping num dia de sábado mostra que este é um dos lugares mais populares da cidade, o número de pessoas do povo na área dos Mercados, parece diminuir em relação aos turistas. O poder do estado transforma esse espaço organizando, higienizando, compartimentando e sanitarizando. Sua reforma deixa permanecer as características arquitetônicas do século passado, mas para atender aos interesses de uma Aracaju que quer ocupar um lugar no roteiro turístico do Brasil, de uma cidade que busca sucesso em um campo econômico cada vez mais promissor: “a cidade como vitrine de consumo da tradição pelo city marketing” (LEITE, 2004, p.18).
Mais especificamente, deterei a atenção ao mais velho dos mercados, o Antônio Franco. Isto porque é nesse mercado que se concentram a maior quantidade de barbeiros de Aracaju que conhecemos, além de ser o lugar onde a tensão desses trabalhadores com os cabeleireiros se apresenta de forma visível, pelos menos em termos de espaço. O Antonio Franco parece ser o local onde “as práticas de intervenção urbana continuam a ‘embelezar’ estrategicamente as cidades históricas por meio por meio de políticas de gentifrication do patrimônio cultural” (LEITE, 2004, p.18). Por ser o espaço onde o processo de modernização da cidade se deu diretamente, quero entender a situação de tensão entre barbeiros e cabeleireiros e como ela se relaciona com este processo. Deste modo, a presença destes trabalhadores numa situação parecida com a hibridação é o segundo motivo de escolha desse local para nossa análise antropológica.
Nas entrevistas que realizei com barbeiros e cabeleireiros durante aquela espécie de pré-campo que durante a minha graduação em História, havia um dado curioso. Em algumas narrativas, os trabalhadores mencionavam que havia uma “divisão de salões por categorias”. Os melhores salões, mais “modernos”, ficavam no centro de Aracaju. Os de segunda categoria ficavam no bairro Siqueira Campos. E os de pior qualidade se localizavam no Mercado, onde “o cara corta até sem camisa”, como afirma o barbeiro L.
Esse dado é interessante, porque embora muitos dos salões de barbeiros que existiam no centro da cidade foram fechados, como o Salão Sergipe, na Rua de São Cristovão, as barbearias do mercado permanecem atuantes e sendo a principal concentração desses profissionais em Aracaju. O fechamento do Salão Sergipe, considerado um dos mais importantes, possuidor de excelentes profissionais, local de onde saíram alguns presidentes da Associação de Barbeiros, Cabeleireiros e Similares de Sergipe, parece indicar que o velho, o tradicional, o “barbeiro antigo” não é mais admitido no centro de uma cidade que se quer moderna. Porém, este ofício ainda esta sendo marcante num lugar popular como o Mercado, apesar de estar perdendo espaço para os cabeleireiros, como mostra a narrativa do Barbeiro G:
[A reforma dos Mercados foi ruim] Pra muita gente. E teve o salão maior que tinha no Mercado... Ou, aliás, no Mercado virado pra rua do, pro GBarbosa. Aí, tinha um salão com oito profissionais, desmancharam, e o dono não recebeu a sala. Deram a sala a Tonho do Couro. E teve muitos que não recebeu a sala. Demoliram e não recebeu. Outros receberam. Mais de mil pessoas botaram na Justiça porque tiveram seus patrimônios demolidos e não receberam. Não receberam e não vão receber. Outros que nunca teve no Mercado receberam sala. Aqui esses barbeiros a maioria nenhum não trabalhou aqui, quase. Essa manicure, não tinha salão
Neste caso, a barbearia tradicional, que pode ser entendida como um lugar de sujeira, parece ser relocalizada como tradição, para legitimar uma idéia de Aracaju moderna (LEITE, 2004, p27). Por esse viés, quero perceber não só o que mudou com esta intervenção da Prefeitura de Aracaju, uma vez a política de gentrification seleciona aqueles que serão excluídos e aqueles que permanecerão no espaço, mas, principalmente, como se encontram esses trabalhadores hoje, qual é a configuração atual.
Acima de tudo, e tendo como suporte Michel de Certeau, o Mercado Antonio Franco parece ser o local onde se pode entender como se deram as “estratégias” do poder instituído. A análise pode mostrar como a cidade é um espaço próprio, aqui através das políticas de gentrification. Por outro lado, também podem ser verificados os “golpes”, as “maneiras de fazer” e/ou “as maneiras de dizer” empreendidas por aqueles que não possuem um terreno próprio: os barbeiros.
Chamo de estratégia o cálculo (ou a manipulação das relações de força que se torna possível a partir do momento em que um sujeito de querer e poder (uma empresa, um exército, uma cidade, uma instituição científica) pode ser isolado. (...) A tática não tem por lugar senão o do outro. E por isso deve jogar como o terreno que lhe é imposto tal como o organiza a lei de uma força estranha. (...) a tática é a arte do fraco. (CERTEAU, 2011, p. 93-95)
Para realizar a pesquisa, penso escutar novamente as entrevistas que foram realizadas não só na região dos mercados centrais de Aracaju, mas também as que foram colhidas em outros bairros da cidade com esses trabalhadores. Estas narrativas podem servir como óculos de mergulhador, protegendo e adaptando meu olhar embaixo da água salgada durante a viagem ao fundo do mar. Elas podem nos fornecer um envolvimento inicial com esse mundo dos barbeiros e cabeleireiros facilitando à chegada as questões de fundo. Através dessa releitura poderíamos ter as mínimas “condições de saber o que e como observar, e o que é teoricamente significativo” (EVANS-PRITCHARD, 2005, p.243).
Aliás, a própria oportunidade de ser entrevistado dava aos barbeiros a “ocasião” de dar lances, ou golpes no poder instituído. A situação da entrevista já era por si só uma “maneira de fazer”, de se contrapor ao espaço próprio, à situação hegemônica, para usar os termos de Michel de Certeau. Não por acaso, diante de um acadêmico que vinha lhes perguntar sobre sua vida laboral, os barbeiros reclamavam dos cabeleireiros, das mulheres, da desorganização da Prefeitura de Aracaju que deixava salões serem implantados sem nenhuma licença e se arvoravam na sua experiência profissional, para se colocarem em um status superior. Já os cabeleireiros, por sua vez mostravam como os barbeiros representavam uma atividade ultrapassada.
Assim, no ato da entrevista tanto barbeiros como cabeleireiros atuam, subvertem a situação de “homem ordinário”, “a memória mediatiza transformações espaciais. Segundo o modo do “momento oportuno” (kairós), ela produz uma ruptura instauradora. Sua estranheza torna possível uma transgressão da lei do lugar” (CERTEAU, 2011, p.149). Daí serem necessárias novas entrevistas, que contem mais sobre como barbeiros e cabeleireiros vêem, atuam e sentem o momento presente.
Porém, também será necessário um período de observação em campo, no Mercado Antônio Franco, onde eu poderia registrar novas “impressões que não são apenas recebidas pelo intelecto, mas tem impacto na personalidade total do etnógrafo, fazendo com que diferentes culturas se comuniquem na experiência singular de uma ‘única’ pessoa” (PEIRANO, 1995). A observação in loco seria importante na formação do pano de fundo das narrativas que colheria com barbeiros e cabeleireiros, para situar a relação entre esses tipos de trabalhadores, na relação deles com as outras profissões presentes no mercado, mas também para que eu possa ter um novo contato com eles e, quem sabe deixar esses trabalhadores mostrarem algumas dados importantes que passam despercebidos.
Diga-se de passagem, que, neste espaço público estão presentes trabalhadores que podem ser inseridos no setor de serviços: barbeiros, cabeleireiros, folheteiro de cordel, donos de bares, comerciantes de ferragens, vendedores de lembranças aos turistas. Com todos eles a relação com a clientela é muito mais comercial do que pessoal, com exceção dos barbeiros e cabeleireiros, que exige uma maior aproximação com o cliente. Inclusive o barbeiro M aponta para a intensificação dessa forma de relação: “hoje quase [só] se trabalha com cliente [conhecido]. Não é mais com avulso. Que naquela época existia mais avulso. Vamo supor, você corta cabelo comigo hoje, amanhã corta com [outro], adepois em outro salão assim. É, fidelidade”.
Por fim, penso construir o primeiro capítulo contendo as “estratégias” da Prefeitura de Aracaju para transformar os Mercados Centrais em um espaço com função de atender prioritariamente a demanda turística, através da política de gentrification que alterou a paisagem urbana, disciplinou e ainda disciplina os usos do espaço e relocaliza certas tradições (LEITE, 2004, p.20). Nesta parte quero entender como se deu a Reforma dos Mercados e quais são as reflexões atuais desse acontecimento, passados quase 15 anos, inclusive quais foram os critérios utilizados pelo poder municipal para decidir quem seria contemplado e quem seria excluído de continuar a trabalhar no Mercado. Será o momento de caracterizar o local da pesquisa em sua complexidade, o pano de fundo onde atuam os barbeiros e cabeleireiros.
(Texto de Eduardo Lopes Teles, estudante do Núcleo de Pós-Graduação e Pesquisa em Antropologia da Universidade Federal de Sergipe)
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