Daniela Nogueira Amaral
Danielle Parfentieff de Noronha
Tânia Carolina Viana de Oliveira
O capítulo do livro “Subculture. The
Meaning of Style” de Dick Hebdige, publicado originalmente em castelhano em
1979 e traduzido para o inglês em 2002, problematiza ao tempo que também dá uma
outra roupagem a conceitos como cultura, ideologia, estilo.
Logo na
introdução, a partir do texto de Jean Genet “Diário Del Ladrón”, vemo-nos
instados a pensar como determinados objetos, aparentemente inócuos, podem
converter-se e mesmo ascender a categorias simbólicas que expõem e se
contrapõem à ordem instituída, deflagrando a presença incontornável da diferença. Trata-se, no caso sublinhado
do autor francês, de um tubo de vaselina que, condensando um paradoxo,
representa uma ignomínia sexual aos olhos da polícia e uma graça individual
secreta encerrada como marca estigmatizada de subversão e revolta. Nesse caso
específico, o personagem de Genet, podemos supor seu alterego, impõe ao
contexto no qual se insere a infração do não pertencimento ao padrão, onde o
delito é elevado à forma de arte. Nesse sentido, através do exemplo da marginalidade
homossexual incorporada a um utensílio que a expõe, Dick Hebdige levanta
questões que sublinham e consideraram como a estetização de um estilo,
simbolicamente condensado numa forma material, pode desafiar a maneira
hegemônica de legislar sobre comportamentos, instaurando a deserção explícita.
Nesse aspecto, os limites e embates que aquilo que chamamos de subcultura põe a
nu é explicitado na babel de signos que certos grupos inventariam, pondo em
xeque e demovendo um ethos, incorporando
a dissenção através da blague ou da insubordinação mais explícita. Dessa
maneira,Teddy boys, Mods, Rokers, Skinheads, Punks advertem o mundo normal de suas presenças desviantes e os objetos por
eles consagrados enquanto marcas identitárias - objetos concebidos como
anátemas, evangelhos de uma desordem - figuram como fontes de valor contra-hegemônicas,
conotando um lócus onde o conflito
adquire maior dramaticidade porque é fotografado objetivamente.
É
necessário dizer que para entendermos melhor importantes características das
subculturas, precisamos escandir mais detalhadamente nuances do próprio
conceito de cultura, nuances que constantemente nos escapam. Aliás, a
polissemia do termo antepara alguns embaraços semânticos significativos que
ainda não foram dirimidos por completo, ainda que desvelem posições diferenciadas
daqueles que enfatizam no significante um sentido mais específico ou mais generalista.
Senão vejamos. Uma das acepções freqüentes dadas ao vocábulo é aquela que
define Cultura, de modo mais conservador, como norma de excelência estética,
como obra clássica – ópera, ballet, teatro, arte, literatura. Por outro lado,
segundo Raymond Wiiliams, desde o século XVIII, outra definição se acopla ao
significado mais corrente do vocábulo – Cultura como um modo específico de vida
que transcende aspectos de conhecimento privilegiado, espelho de uma formação
distintiva, passando a definir também um conjunto de valores implícitos e
explícitos na concretude das vidas cotidianas. Nas palavras do poeta T.S Eliot,
todos os interesses de um povo, da culinária ao futebol, inserem e abrangem o
conceito de Cultura. Assim, entendemos que a elasticidade do signo linguístico
pressupõe uma forma teórica nova para categorizá-lo dentro de uma perspectiva
que distende e coloca em tela seu conteúdo histórico, tributário de processos
sociais considerados em conjunto e não apenas como projeções hierárquicas que consignam
a alta e a baixa cultura dentro de uma
escala de valores.
Nesse sentido, a proposta metodológica d’Os
Estudos Culturais, quando estes se debruçam sobre a cultura ou sobre as
culturas, também absorvendo o sentido antropológico do termo, pretende desvelar
os elementos que estão por trás de determinadas práticas, elementos que estão
além das aparências, absorvendo não apenas o significado mais restrito do termo
– a cultura como norma de excelência – quanto seu significado catalisador - a
cultura como um modo de vida. No entanto, para dois autores que ajudaram a inaugurar a teorização e a metodologia d’Os
Estudos Culturais, (Hogart e Williams) essa submersão nos aspectos culturais comunga
um modus operandi comum – a
interpretação do cotidiano iluminada pela interpretação literária ou, dizendo
de outro modo, o treinamento da sensibilidade proporcionado pela Literatura
permite uma leitura do real que capta suas sutilezas, sutilezas que, amiúde,
podem passar despercebidas a um olhar menos crítico ou menos treinado. Aqui, a proposta semiótica de Roland Barthes -
vislumbrar o mundo como texto - aporta sem dificuldades. O escritor, professor
e crítico francês, utilizando um modelo derivado da Linguística do suíço
Ferdinand Saussure pretende demonstrar o caráter arbitrário da cultura, aquilo
que para os mais incautos, e são muitos, naturaliza-se substantivamente,
perdendo não somente sua filiação contextual, como ascendendo enquanto
mitologia que explica e determina aquilo que parece espontâneo, mas, se focado
com maior acuidade, se revela orquestrado. Barthes não estava interessado, a
exemplo de Hogart, em distinguir, na cultura o bem e o mal ou o genuíno e o
alienante e alienado, ainda que de certo modo também o fizesse. Afinal, quando
procurava identificar a “medula ideológica” que naturaliza idéias e percursos
de maneira universalista, não perde de vista as instâncias de poder com seus
inúmeros tentáculos que envolvem numa mesma rede dominantes e dominados.
De forma ainda mais radical, a semiótica de
Barthes pretendia costurar definições opostas de cultura – convicções morais e
temas populares. Partindo da premissa de que “ o mito é um tipo de discurso”, o
linguista francês tenta identificar – na moda, no cinema, na comida – a retórica
que nos bastidores estrutura formas, ritos, ditos, códigos específicos
disseminados de modo a formatar todas as relações sociais ideologicamente
alimentadas. Todavia, lembrando-nos o
verso pessoano que assevera que “o mito é
o nada que é tudo”, é preciso entender que miradas eletivas de
investigação – sociológica, semiótica, econômica - podem abarcar conceitos diferenciados de
Ideologia e é de Ideologia que estamos tratando quando adentramos no território
dos símbolos e dos signos que estruturam miticamente as relações sociais.
Para Stuart
Hall, por exemplo, a aparência inquestionável das coisas, travestida de
transparência e naturalidade, torna invisíveis as premissas que entronizam
essas coisas hierarquicamente. Entretanto, a carga ideológica que antepara
comportamentos e idéias não pode ser sublinhada como uma visão de mundo
partidarista e sectária, pois que, “saturando o discurso cotidiano em forma de
sentido comum” a Ideologia resvala não para “falsa consciência marxista”, mas
para a inconsciência, como assinalou Althusser, que insere os homens num
processo de representação que lhes escapa, ainda que demarque as fronteiras e
os limites de suas vidas.
Assim, para
entender, com maior perspicácia, a dimensão ideológica que subjaz a atos,
palavras, vontades e omissões, devemos ter em mente, como afirma Hall, que
múltiplos códigos normativos e conotativos funcionam como “mapas de
significado” que tornam a vida social inteligível. Todavia, é na desigualdade,
situada sincronicamente, entre dominantes e dominados que esses mapas de
significado se sustentam, conformando o mundo de modo assimétrico e por isso
conflitante. Aqui, podemos subscrever o conceito de Hegemonia de Gramsci como
aquele que traduz tanto a autoridade subsumida nas relações sociais quanto a
temporalidade volátil da mesma - a hegemonia como um “equilíbrio móvel que
contém forças favoráveis ou desfavoráveis a esta ou aquela tendência”, forças
que disputam um espaço erigido entre consentimentos que devem ser conquistados
e por isso se constituem impermanentes.
Nessa perspectiva, a simbiose entre ideologia
e ordem social, entre produção e reprodução é permeada por objeções e
contradições sempre renovadas, contradições que extrapolam os conflitos de
classe, pois que envolvem uma leitura diferenciada dos signos que revestem as
relações sociais, uma leitura muitas vezes heterogênea até dentro dos limites um mesmo território de
significação social e econômica . Nesse processo, é que as subculturas e o
estilo de vida que objetiva e subjetivamente lhes caracterizam pode
desmitificar certos conteúdos ideológicos respaldados de maneira naturalizada e
aparentemente consensual, abrindo veredas subversivas no discurso hegemônico.
Para Hebdige, o Movimento Punk e o Movimento Reggae podem ser considerados
emblemáticos nesse aspecto. Emergindo com mais força a partir de meados da
década de 70 - a despeito das diferenças de comportamento e mesmo de inspiração
para suas crenças; no caso do Movimento Reggae e seu casamento com o
Rastafarianismo, e de suas descrenças; o niilismo apocalíptico punk-, esses
movimentos culturais de juventude bebem de uma mesma fonte de iconoclastia que
conjuga num estilo - roupas e adereços – uma ameaça à ordem instituída e aos
instrumentos que a estruturam, entronizando seus valores num lócus de
hierarquia superior –Estado, Igreja, Polícia, Escola.
Os Punks com
suas jaquetas de couro, braceletes e coturnos, cabelos moicanos e piercings compõem uma bricollage que através de ritmos acelerados,
herdados do rock, desafiam o otimismo de um mundo melhor, cerzindo na alegoria
do exótico, conceitos de contracultura movidos a anfetaminas e sentimentos
explícitos de uma alienação encenada, uma sexualidade perversa e um eu
fragmentado. Nas teias desse desajuste teatralizado nas ruas, bares e
discotecas, a subversão converte-se num solipsismo que expõe o ceticismo
juvenil materializado visualmente.
Num outro pólo,
a música reggae e seus acordes mais lentos e introspectivos - flertes com o
Jazz-, sua filiação a uma África idílica que recusa a submissão e se afirma
como o levante bíblico dos justos que incorporam e interpretam a palavra divina.
Nesse embate paradoxal de dessacralização e sacralização redentoras, o som de jovens negros, o colorido de suas roupas e o poder da marijuanna deflagram no exílio imposto
por condições matérias adversas, um exílio mais profundo e afirmativo de uma
raça que passa dizer o que quer através, também, da arte.
Entre ambos, o
punk e o reggae, a empatia dos descontentes e uma pluralidade lingüística que
conjuga o visual e o auditivo como re-percussões de uma demanda por
reconhecimento, ainda que seja um reconhecimento propagado com uma voz dissonante.
[i] Resenha
- REDIGBE, Dick: Introdução: Subcultura e Estilo In: The Meaning of Style.
Methuen& Co. Ltd 1979
Um comentário:
Muito bom resumo do livro. Estou lendo o livro pra fomentar minha pesquisa sobre subversão estética através da moda. Sou graduada em Filosofia pela Universidade Federal de São Paulo.
Vocês teriam mais material sobre o tema pra me passar?
o meu contato é : nastenka.menezes@gmail.com
Abraços
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