domingo, 31 de outubro de 2021

Posfácio para "um dia de cada abril ou a função sócio-política do afeto"


* Texto escrito como Posfácio para o livro de poemas: Ramalho, Ítalo. um dia para cada abril ou a função sócio-política do afeto. Ed. Criação, Aracaju, 2021. pp 81-91


Estes tempos de pandemia têm sido socialmente críticos, desde os primeiros impactos que tivemos em abril, quando chegamos às mil mortes no País, até as mais de 100 mil mortes [este texto foi escrito em agosto de 2020], após passados cinco meses de má governação e má condução das políticas de saúde e de restrições sociais de aglomeração. Lá atrás começamos a conviver com uma nova realidade cíclica que já dura meses e que nos afetou indistintamente de forma cultural, social e psicossomática. 

Além dos efeitos perversos da doença provocada pelo vírus, as imposições de isolamento social e de confinamento alteraram radicalmente nossas vidas. Por um lado, transformaram nossas rotinas e formas de higienização e cuidado, de convívio social e afeto, de estudos, trabalho e lazer; por outro lado, também alteraram nossas formas de sentir felicidade e tristeza, indignação e complacência, prazer e tédio, amor e raiva... 

Neste sentido, estes tempos de pandemia também têm sido intensamente reflexivos, provocando sensações pensantes, nos desviando do curso planejado de presente e futuro e criando um lapso temporal e espacial que tornou possível viver de outro modo e de outra perspectiva os dias e os meses, os lugares e os ambientes.

No livro que temos em mãos ou em tela, o ciclo dos dias densos, no transcurso de um mês, foi transformado poeticamente em marco das experiências vividas e sentidas pelo autor, intensamente doloridas e caóticas, solitárias e angustiantes, infladas pela diminuição rítmica do tempo e do espaço. Do abril que foi ou não escolhido por acaso, mas que por coincidência serve como metáfora de abertura, de início de uma dada condição e catarse. Estas sensações que também foram experimentadas por muitos outros de nós e impuseram densas formas de reflexividade à experiência, tendo maior efeito nos primeiros meses de isolamento e confinamento social, quando as transformações no dia-a-dia ainda foram mais intensas, repentinas e impactantes. 

Ítalo Ramalho toma sua própria experiência vivida destes dias como arquétipo poético das práticas, das ilusões e das emoções. Viver, pensar, sentir e escrever sobre tais sensações é uma forma de se expressar diante do imponderável, tentar compreender seus efeitos e tentar entender-se a si e aos outros neste processo. Delimitar e fatiar o tempo sentido e o tempo vivido com a marca cronológica dos dias de um mês não é apenas uma forma de contar, no isolamento ou no confinamento social, mas também uma forma de registrar o experienciado, o pensado e o sentido através da linguagem e, neste caso específico, da poesia. Transformar o estranho, o caótico e o desconhecido em vida e em expressão e vazão estetizada também é um ato político de resistência e de resiliência que a linguagem poética permite, revelando potencialidades outras, diante das formas volúveis que as linguagens cotidianas do tempo rápido, industrial, metropolitano, online e digital não alcançam. 

Sobre os dias que passam, os registros na forma de poema revelam também a expertise do autor advinda das conexões entre campos de saberes distintos, o literário e o antropológico, o de amante das artes e da formação em direito, do qual emerge uma autoetnografia poética profunda, que observa o mundo a partir da realidade experimentada, onírica e subjetivada, marcada pela relação e pela existência do outro - e/ou dos outros - densamente refletida e reflexiva. Se é no(s) outro(s) que existimos, os efeitos do impacto do isolamento social se tornam estruturais nas percepções de nós mesmos, e a poesia se torna o verbo de um modo de se dizer sobre um/eu e sobre todos/nós e de modo holístico sobre o anthropo - o quê Ítalo Ramalho bem traduz nesta obra. 

O abril, aqui, mesmo que despedaçado, como diz a memória do autor sobre o livro/filme, no poema 15 de abril, é tratado como ciclo e como estrutura de sentido desta contagem poética dos dias, um dia para cada dia, um dia para cada abril, explorando muitas faces da carga semântica da palavra e dos significados sociais que ela sugere. Abril intenso, dilacerado, fragmentado, confuso, um dia como todos os dias, um mês como todos outros, só que não como antes, mas como agora, inusitado. Nesta poética do despedaçamento do presente, há um desejo de tradução deste tempo trágico em atos da rotina da vida vivida que se segue: dormir, acordar, transar, cozinhar, comer, limpar, ler, trabalhar, assistir, comprar... Ou simplesmente pulsar... 

            20 de abril 
        
            no entanto: 
            o pulso pulsa 
            pul.....sa 
                        
                        pul..........sa 
                        pulsalâmina 
                        sob o esqueleto estéril 
                    do verbo 

A poesia se abre no abril e se torna pulso, verbo lâmina, remexendo as próprias emoções do autor e do leitor a partir da intensidade explícita da simplicidade e da importância do cotidiano, brincando com jogos de palavras e com os ritmos da linguagem e na forma, mas atenta a análise psicológica e social e à mensagem política implícita das metonímias, às vezes explícita do verbo. É um jogo com os corpos, com a consciência, com a vida e com a morte, mesmo com o lento marcapasso do tempo e diante do espaço restrito da casa, do confinamento e do casamento.

No abril da pandemia, do isolamento e do genocídio como fim, Ítalo Ramalho também recorre à memória das sucessivas políticas de morte traduzidas para outros tempos, através da crítica histórica sobre a colonização do Brasil, por exemplo, trazendo o abril como marco da memória coletiva da existência de outros corpos de dor, e do silenciamento de outras formas de vida e de conhecimento. Da dureza da linguagem ácida e áspera do poeta/poema concreto, o autor encontra ao seu modo e ao seu tempo a sua forma de analogia à denúncia sobre a dominação colonial e judaico-cristã dos povos indígenas, porém sob o alento da resiliência e da reinvenção antropofágica que sobrevive na linguagem... 

            22 de abril 
           
            antes do som 
            lusitano 
            o verbo yanomami 
            sustentou o céu de davi                            
                            inferno de cristo 
                            silêncio antunes 
                            arnaldo de fazer 
                            verboração 
                            carnificanção 

O abril deste livro não é apenas um mês, mas todos os meses repetidos sob o qual vivemos este longo inverno que marca e marcará nossas experiências e continuará aprofundando as realidades sociais já tão desiguais no Brasil. Algo que o autor já profetiza ao criticar a contabilidade frívola dos corpos e a dimensão do poder que ele denomina de necroliberalismo, através deste neologismo que traduz a sedução hegemônica de um modelo de economia liberal e da apolítica cega, decadente e gananciosa que nos afeta e se espalha pelo mundo. Aliás, doença, morte e política se completam de forma recorrente na poesia de Ítalo Ramalho, não como hipérbole estética, mas por se tornarem rotina ou parte da língua franca no imaginário cotidiano do isolamento social e no vernáculo da política, tangenciados pelas facetas pública e privada da vida, na qual mesmo confinados ninguém mais se esconde. 

Mesmo que a cronografia deste abril em algum momento se feche, com língua grossa (ou fina), como diz o autor, outros trinta poemas surgiram - surgirão - do pavimento superior do incansável subconsciente do poeta, da palavra dos meses do agora ou daquela um dia pensada, ritmada e conjugada como função sócio-política do afeto, aparecendo como parte do ritual do ofício pensante e incessante de burilar, de escrever, de declamar e de brincar silenciosamente com os sons, com as subjetividades e os significados das palavras até lhes dar vida pública. São ideias outrora inacabadas, não costuradas, são as formas do fabricar a poesia, agora amalgamadas e expressas em versos a compor o todo da obra, como efeito mágico da bricolagem. Nesta segunda ronda de poemas do livro – os outros trinta -, o autor suspende o abril para transformar o ciclo do mês em estrutura, e os versos seguem aparecendo com a marca dos sonetos; descomprometidos com a narrativa das rotinas do dia a dia, perpetuando de modo enigmático e gráfico o ícone da teia e da rede (#) como marcador de outras práticas; como um outro modo de pensar, dizer, sustentar, fabricar e coser a vida, que se repete como etéreo. Esta tessitura pensada das palavras e dos versos perfura outros planos de consciência, como ato de sustentação da própria existência, soltos, embora enumerados, sequenciados e tagados.            

                #20 

                para o poema nascer 
                é preciso costurá-lo 
                da ponta à cachaça
 
                pensar pelo pé é 
                fazer do caminho 
                bifurcado − 
                linha e pedra – 
                questão de equilibrachão 

No registro poético do autor reconhecemos o desejo pela poesia como possibilidade de equilíbrio, de razão, mesmo diante do uso lúdico, sonoro e semântico das palavras em tempos de normalidades suspensas. A experiência sentida e vivida, marcada pelos efeitos do tempo e dos acontecimentos, é traduzida em linguagem gráfica e sonora, na qual se encontram indivíduo e sociedade, afeto e política, emoção e racionalização, forma e conteúdo. É a poesia tornando o imaginável dizível, o incompreendido compreensível, as palavras em sensações e formas animadas... 

                 #22 

                em minhas mãos 
                o riso do livro 
                move 
                os dentes das suas 
                páginas 
                
                banquete farto: 
                proteína 
                verbal 

É certo que os últimos meses impactaram intensamente o curso de nossas vidas e que para muitos de nós as leituras foram boas companheiras. Mas, para muito além disto, surgiram novos modos de sociabilidades, novas estratégias de sobrevivência e de fazer político, novas formas de regulação social, novos comportamentos afetivos, novos modos de percepção e novas formas de intensificação do individualismo. 

Neste livro temos alguns registros sincrônicos destes processos também vividos pelo poeta a partir da experiência pessoal e da passionalidade racional da sua criação. Versos produzidos durante as sensações vividas, capturando impressões sobre instantes, tendo a forma como latência e como potência de dizer para além do plenamente compreensível para o agora. A poesia - como linguagem ou o livro como obra aberta -, neste caso, aparece metamorfoseada como actante, tanto deste momento para outros tempos, quanto do leitor que sou para outros. 

No futuro teremos estudos sobre a produção reflexiva gerada durante a vigência das excepcionalidades provadas pela pandemia. Sobre o quão intensa e distinta ela fora, sobre como as pessoas reviram as suas vidas e os seus desejos, repensaram os seus projetos e se viram como sujeitos diante da sensação de impotência. Sensação inicialmente já existente diante da guerra ideológica-política, provocada de forma insistente por modelos de governação antidemocráticos, como do caso brasileiro, que têm gerado efeitos ainda mais perversos durante a pandemia, aprofundando discursos de exclusão e de eliminação social, tomando como base moralismos perversos, seletivos e mal intencionados que transformam as orientações sérias e científicas no campo da saúde pública em chacota e instrumento de um modus operandi perverso de exercício de poder pelo poder. Aliás, o caos é terreno fértil para o crescimento de tais formas de fazer política, embora também abra espaço para a transformação revolucionária, para o encerramento dos ciclos, para o início de outros e para emergência de agências insurgentes.

De forma muito pouco reflexiva, vem se tornando senso-comum que as atuais regras de biossegurança, as normas de sociabilidade, de trabalho remoto, de estudos e de lazer destes tempos de excepcionalidade se tornarão o novo normal. A expressão mais me parece conter o desejo de uma nova normalidade de controle social, com maiores restrições à movimentação das pessoas, maior exploração do trabalho, maior endurecimento da vida social e a ideia de que a humanidade viverá a ameaça constante do apocalipse, independente do arrefecimento da pandemia; do que a vontade de entender o processo e de transformar esta realidade temporária. Não temos certeza se a pandemia provocada pelo vírus Sars-COV2 será um marco de transformações profundas e duradouras nas sociabilidades, nos costumes, na geopolítica e na economia global ou nas formas de experimentar a humanidade - e nem precisamos tê-la -, o certo é que enquanto ela se perpetuar continuaremos vivendo a experiência do individualismo de forma ainda mais intensa e jamais vista, e isto se reflete no quê e no como sentimos, sofremos, pensamos e produzimos. É sobre isto que importa dizer e fazer agora. Sobre os registros da experiência humana que nos tornem capazes de interpretar e de compreender para podermos existir, resistir e transformar. Mas, enquanto vermos nas ruas, nas redes sociais e nos noticiários que as pessoas estão saindo do isolamento social voltando a consumir loucamente, os discursos minimizando o impacto sobre as vidas, os negacionismos ideológicos segregacionistas se sobrepondo ao conhecimento científico e crítico e a economia colocada ainda mais acima das pessoas, os versos de Ítalo Ramalho continuarão soando como grito de dor e como alerta humanitário e trágico do agora. 

                6 de abril 

                caixas de papel 
                deveriam conter 
                sapatos 
                guardam pés mortos 
                enforcados 
                pelo cadarço 
                dos corpos infectados 
                (eco à dor) 

Como leitor de hoje, não há como se deparar com este livro sem perceber o mundo pela conjunção das lentes do trágico e do satírico, do político e do afetivo; da desigualdade e da resiliência; não há como não se sentir incomodado, angustiado, ou às vezes esboçar um sorriso irônico, sarcástico, casual, ou noutras sentir-se como sujeito empoderado, embora na dor e no odor da morte dos outros - e da nossa humanidade. Estas são mensagens contidas neste livro, sobre o presente e sobre como ele nos faz sentir, pensar e resistir a partir do cotidiano, da estética e da política. 

Frank Marcon Professor do Departamento de Ciências Sociais da Universidade Federal de Sergipe.

Acesso ao livro na íntegra: https://editoracriacao.com.br/wp-content/uploads/2021/03/livro-final-site-1.pdf


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