sexta-feira, 6 de agosto de 2010

Totem e consumo: um estudo antropológico de anúncios publicitários

Resenha do texto de Everardo Rocha.

No presente artigo, Everardo Rocha irá discutir algumas idéias sobre as relações entre cultura e consumo. O autor pretende contribuir para a reflexão sistemática sobre um fenômeno que, segundo ele, foi relegado a segundo plano nas ciências sociais, em razão sobretudo do fascínio pela produção. Para ele, conhecer o consumo como fato social é algo bastante complexo, pois conhecer o significado do fenômeno do consumo passa pelo exame profundo de sua relação com a cultura.
Para entender o consumo é preciso conhecer como a cultura constrói esta experiência na vida cotidiana, como atuam os códigos culturais que dão coerência as práticas e como, através do consumo, classificamos objetos e pessoas, elaboramos semelhanças e diferenças. E assim ver que os motivos que governam nossas escolhas entre lojas e shoppings, marcas e grifes, estilos e gostos – longe de desejos, instintos ou necessidades – são relações sociais que falam de identidades e grupos, produtos e serviços.
Para explicitar de melhor forma, o autor relata uma experiência de consumo acontecida na chamada cultura do outro e compará-la com situações comuns de nossa vida cotidiana. Em viagem a cidade de Cochabamba, no altiplano boliviano, o grupo em que ele estava foram visitar uma feira nos arredores da cidade, algo como uma típico mercado nativo. Eles percorreram a feira como se estivessem num shopping: o desejo do consumo a flor da pele. E viam a possibilidade de reter tudo aquilo, querendo se realizar através da posse de qualquer coisa. O autor descreve suas impressões sobre a feira e descreve o que ele chamou de uma estranha loja. Seria um imenso lençol branco estendido no chão com diversos produtos que ele não sabia explicar o que eram exatamente, pois eram potes rigorosamente iguais que continham líquidos de várias cores. Passado todo o dia o grupo não comprou nada, nem comida. E concluiu que o que faltou para que o consumo fosse realizado foi o significado. Faltava um código, um sistema simbólico que completasse os objetos lhes atribuindo usos e razões. Faltava, enfim, a classificação capaz de oferecer sentido aos produtos. Faltava o sistema da mídia que recortasse os produtos sobre a forma de desejo, oferecendo significados sob a forma de utilidade. Por isso, segundo ele, não conseguiram na situação por ele descrita, achar nada de útil, não havia nenhuma necessidade racionalizando na direção da compra, nenhum desejo impelindo a emoção dos usos.
Rocha propõe, para aprofundar a experiência, uma análise comparativa com os nossos supermercados. Pensá-los às avessas. Sugere pensar num supermercado mágico, imaginário, cuja característica seria exibir seus produtos desprovidos de toda espécie de rótulo, etiqueta, tarja, nome, marca ou qualquer outra forma de identificação. Colocando esses produtos em recipientes iguais, obedecendo a uma única regra: adequar os continentes a natureza dos conteúdos. Assim, produtos em pó ou sólidos acondicionados em sacos plásticos, líquidos em pequenos frascos, gasosos em tubos de forma cilíndrica. Para completar, esses únicos modelos de embalagem seriam, rigorosamente, transparente.
Após pensar esse universo do supermercado imaginário, faz um questionamento: será que poderíamos comprar com absoluta certeza produtos desejados, necessários ou úteis? Ou correríamos o risco de confundir shampoo de ervas com detergente de limão, ambos verdes cheirosos e viscosos?
No entanto, ele coloca que nossa comunicação de massa, nosso sistema de marketing, publicidade e propaganda; as etiquetas, marcas, anúncios, slogans, embalagens, nomes, rótulos, jingles e tantos outros elementos distintivos, realizam este trabalho amplo e intenso de dar significado, classificando a produção e socializando para o consumo. É este processo de decodificação que dá sentido ou, se quisermos, lugar simbólico ao universo da produção. Dessa maneira, o consumo se humaniza, se torna cultural, ao passar, definitivamente, através dos sistemas de classificação. A relação de compra e venda é, antes e acima de tudo, relação de cultura.
No mesmo artigo, ele fala também de um outro trabalho mais extenso(Rocha, 1985) em que ele mostra que a publicidade é como um grande sistema de classificação e compara com o que Lévi-Strauss(1970, 1975) chamou de sistema de classificação totêmica. O totemismo elabora um sistema recíproco de classificações que articula séries paralelas de diferenças e semelhanças entre natureza e cultura. Os anúncios publicitários, elaboram, também eles, mas só que de diferenças entre produção e consumo.
Nesse sentido, os sistemas simbólicos formados pelos meios de comunicação de massa organiza o comportamento do consumidor – e o ato mesmo do consumo aí subjacente – que se realiza, antes de qualquer coisa, porque todos acessamos coletivamente os significados. Ao tornar público o significado atribuído ao mundo da produção, disponibilizando um enquadramento cultural e simbólico que o sustenta, este sistema realiza a circulação de valores e a socialização para o consumo. A cultura de massa libera o significado da produção dentro do universo do consumo e, nesse sentido, reafirma que a cultura é pública porque o significado o é, como nos ensina Geertz (1978).
O consumo é uma prática que só se torna possível sustentada por um sistema classificatório, onde objetos, produtos, serviços são parte de um jogo de organização coletiva da visão do mundo na qual coisas e pessoas em rebatimento recíproco instauram a significação. É necessário que exista antes um processo de socialização, distribuindo categorias de pensamento, para viabilizar o ato do consumo. Na cultura contemporânea, são os meios de comunicação de massa e o marketing – tendo a publicidade como face exemplar – a instancia que patrocina (no duplo sentido) este processo que permite a experiência do consumo.

BIOGRAFIA DO AUTOR DO TEXTO:
Everardo Rocha é Professor-associado do Departamento de Comunicação Social da PUC-Rio há mais de 30 anos. Doutor em Antropologia pelo Museu Nacional da UFRJ, é mestre em Comunicação pela Escola de Comunicação da UFRJ, mestre em Antropologia pelo Museu Nacional da UFRJ, bacharel em Comunicação Social pela PUC-Rio. Professor Colaborador do Instituto Coppead de Administrador e pesquisador do CNPq. Everardo é autor, entre outros, dos livros: A sociedade do sonho: comunicação, cultura e consumo; Magia e capitalismo: um estudo antropológico da publicidade; O que é etnocentrismo; Jogo de espelhos: ensaios da cultura brasileira; O que é mito; Comunicação, consumo e espaço urbano: novas sensibilidades nas culturas jovens (org.); Cultura e imaginário: interpretação de filmes e pesquisa de idéias (org.); Palmares: mito e romance da utopia brasileira (com Carlos Diegues).
Nasceu no Rio de Janeiro, 1 de outubro de 1951.

(RESENHADO POR TÂNIA DE OLIVEIRA)

10 comentários:

Diogo Monteiro disse...

Muito interessante o texto do Everardo Rocha. Exposição clara, com escrita didática, que permite sua leitura por um público mais abrangente, para além do acadêmico. Relação consumo e cultura, meios de comunicação de massa criando os simbolos para a produção e socializando para o consumo. Reflexo da nossa sociedade capitalista!
Até breve!!

Frank Marcon disse...

O texto de Rocha está carregado de ousadia, já algum tempo o autor discute a questão do consumo através da análise da produção/representação simbólica. Os objetos de consumo são desejados pelo que representam e representam a partir de como as idéias se constroem sobre eles. O consumo se dá pelo desejo de satisfação pessoal ou coletiva e as motivações de satisfação podem ser múltiplas e diversas no campo social. No entanto, algo de importante para este tipo de reflexão é a forma com que Rocha atribui a relação entre o objeto e o que fizemos dele ao representá-lo. Consumimos idéias e conceitos, assim como atualizamos estes conceitos sobre os objetos que consumimos. Quando vemos a propaganda de uma roupa, desejamos o que ela pode nos significar (beleza ou sensualidade ou casualidade ou contestação, etc)e as mensagens publicitárias são construídas para fazerem este tipo de apelo, a um grupo de consumo. No entanto, as representações podem ir ganhando vida própri, já que significamos tudo a partir do que as coisas já representam e voltamos a resignificá-las. Isto quer dizer que o significado é sempre um processo de negociação entre os que se comunicam. Esta é a aproximação que Rocha faz com o totemismo (Lévi-Strauss). Se um cavalo é linkado a idéia de objeto que é a marca de um carro (por exemplo um ferrari) para significar velocidade,virilidade e força, por exemplo, mais tarde o próprio carro ou a marca "ferrari" pode agregar outros singificados para além destes, como poder econômico, ousadia, etc. As coisas vão ganhando vida própria no mundo dos símbolos. Eu diria que isto é interessante para pensarmos que os significados estão circunscritos as suas próprias redes de comunicação. Este tipo de observação é interessante para analisarmos diferentes situações de produção e consumo, não só pelo viés mercadológico, mas pelo viés do que os grupos valorizam enquanto objetos e símbolos de apropriação e comunicação. Eu gostaria de vê-los opinando a respeito, pois vejo muitos de seus trabalhos implicados por tais questões.... (ps. dei o exemplo de uma marca, sem desejar fazer nem tipo de propaganda, já que esta não está no nosso horizonte de possibilidades de consumo, rsrsrsrr). Abraços.

Jefferson Dantas disse...

Bastante interessante, por marcar um grande período, onde os estudos estavam voltados à análise da produção e, acima de tudo, na interpretação do consumo através de um prisma simbólico e não apenas material. Além disso, nos faz pensar acerca da dinâmica do consumo, de como como os produtos ganham novos significados a cada dia. Tive contato muito rapidamente, com um estudo sobre celulares em diversos pontos do mundo e vi como o consumo (compra e uso) desse artefato varia muito, seja pelo uso como agenda, relógio e até mesmo despertador. E, sua finalidade mais óbvia num segundo plano. Incrível como conceitos locais influenciam no consumo de um aparelho tão universal.

alessandra disse...

Pensar o consumo(de coisas, musicas, espaços) relacionado entre a carga identitária de cada grupo, individuo e os estímulos que temos acesso cotidianamente. A partir dessa relação percebemos que nossas necessidades não são totalmente induzidas, não são inventadas do nada, mas fruto de um conjunto de fatores.O significado atribuído a cada coisa, o porque escutamos tal musica ou porque frequentamos tal tipo de espaço fala muito de quem somos.

Frank Marcon disse...

E COMO SERÁ/SERIA POSSÍVEL PENSARMOS NOSSOS RECORTES DE PESQUISA ATUAIS (SE É QUE ISTO É POSSÍVEL) A PARTIR DE TAIS REFLEXÕES?

alessandra disse...

Vixe Maria! Bem,vou tentar trazer a reflexão do autor para o meu recorte:
Antes, num determinado contexto histórico o “ser quilombola” possuía um certa carga de significados, fruto de como o negro era visto socialmente, economicamente e outros mentes. É importante dizer que para os “de fora” o “ser quilombola” possuía uma carga de significados diferentes dos significados que esses grupos atribuíam a essa identificação. Com o passar do tempo tanto os grupos que se identificam como quilombolas quanto os exteriores a esses grupos ressignificaram não só o termo mas os aspectos relacionados a cultura afro-descendente. Como exemplo podemos considerar a capoeira que antes provocava uma reação diferente da reação que se provoca na sociedade atual. Tanto os capoeiristas quanto a sociedade atual atribui significados diferentes do período escravocrata. Antes dançavam escondidos com uma determinada intenção, hoje utilizam essas expressões, entre muitas que lembrem a cultura afro-descendente, como forma de serem visíveis de legitimaram a nova identidade quilombola (ou será a velha identidade transformada). Ou seja, a cultura, o cotidiano, as práticas simbólicas sendo criadas, recriadas de acordo com os estímulos, as intenções, os interesses. Se a ordem das coisas, da política, fossem diferentes, obviamente a reação da sociedade e desses grupos frente a tudo isso, seria diferente.. Eita, deu um nó!

Mateus Neto disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Mateus Neto disse...

Este texto é fantástico... entrado na roda de discussão: É interessante como nós (a sociedade) atribuímos valor de troca-signos em tudo, e fazemos desses signos significados que ganham vida própria e grandes proporções comunicativas quando bem trabalhados pela mídia e adentram nosso cotidiano deixando sua “marca” gerando lucros de grande proporções. Um exemplo tipo agora são os objetos que fazem parte dos cenários de novelas que viraram “marcas” (com o nome da novela) e são vendidos via online e tem um grande público... eu acho isso bem interessante....

Martha disse...

"Na cultura contemporânea, são os meios de comunicação de massa e o marketing – tendo a publicidade como face exemplar – a instância que patrocina (no duplo sentido) este processo que permite a experiência do consumo."

Posso estar aqui viajando, mas esse texto, e mais especificamente me detendo ao exposto acima, bem como uma tentativa de atender ao que foi proposto por Frank, me remeteu às feiras livres, pensando nelas como espaços identitários, a exemplo da Feira de São Joaquim em Salvador, Mercado São José em Recife,nosso Mercado Thales Ferraz, dentre outros,e fazer uma reflexão sobre elas dentro dessa abordagem. Me refiro a elas mais recortadamente em relação ao espaço de venda de produtos como ervas medicinais, folhas para banho, fios de contas, artefatos de barro e de palha, dentre outros artigos que remetem a "fé" e à "medicina popular", mesmo com todo avanço da farmacologia, exemplificando muito bem as trocas de sentidos e significados que são dados a esses bens comercializados nessas feiras livres,além de seus códigos próprios. Nesse sentido podemos pensar também como a propaganda que é feita nessas feiras para atrair a clientela,o conhecido "boca a boca", aponta para a dimensão de troca que é dada à palavra e a dimensão de pessoalidade que adquire o próprio dinheiro com a interação que ocorre nessa experiência específica de consumo. Viajando na mítica e tentando fazer um link, trago ainda a figura de Exu
(Orixá), considerado como o grande comunicador e detentor da palavra, bem como aquele que tem domínio nos mercados, para exemplificar e apontar na direção de uma outra lógica simbólica dada a essa relação do consumo e da comunicação, decodificada apenas dentro da perspectiva da representação.
Ufff! Confuso?! Não sei se me fiz entender... agora viajei mesmo, mas enfim...Frank, help!!! Rsss!

Frank Marcon disse...

Martha, achei uma excelente sacada para que alguém possam explorar isto mas detidamente. Pensar estes cenários dos mercados públicos (ligados a caracterização destes produtos, suas formas de comercialização, suas estratégias e divulgação e as formas de produção e consumo ligadas a elas), para analisar as reciprocidades, as sociabildiades e os processos de identificação e diferença, bem como a configuração de "estilos de vida" próprios envolvidos nextes contexto. Ainda mais se tal análise apontasse para uma perspectiva comparativa entre os mercados que você citou. Acho que seria um trabalho e tanto.... A questão religiosa posta aí, inclusive poderia levar a discussão para outros mercados, os africanos. Tentando comparativamente entender estas dinâmicas próprias da relação entre comunicação, produção/consumo, simbologias e sociabilidades religiosas. Bahhh, agora acho que fui eu quem viajei. rsrsrsr.