quinta-feira, 16 de setembro de 2010

Sobre a autoridade etnográfica

CLIFFORD, James. Sobre a autoridade etnográfica. In: A experiência etnográfica: antropologia e literatura no século XX. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 1998. 320p.

Resenha de Eduardo Lopes Teles

James Clifford é professor do Programa de História da Consciência na Universidade da Califórnia, em Santa Cruz (EUA). Em sua obra, sempre versando sobre antropologia e modernidade, encontramos Person and myth: Maurice Leenhardt and the melanesian World (1982), The predicament of culture: twentieth-century ethnography, literature and art (1988), Routes: travel and translation in the late twentieth century (1997). Como o próprio autor destaca, em entrevista concedida a José Reginaldo dos Santos Gonçalves, sua obra sofre grande influência de Raymond Williams, principalmente do livro Cultura e Sociedade, em que ele historiciza a idéia de Cultura nas “versões mais literárias e humanistas”. A partir desse caminho aberto por Williams, Clifford vai ver novo horizonte ser trilhado e propor historicizar a cultura no sentido antropológico ou etnográfico (CLIFFORD, 1998, p.253-4).
No primeiro artigo, Sobre a autoridade etnográfica, Clifford demonstra como se foi construindo historicamente a noção de autoridade etnográfica, ou seja, o modo como o autor se coloca presente no texto, como ele legitima um discurso sobre a realidade. Trata-se do famoso “Eu estive lá”, que dá provas de que o que pesquisador viu existe, do que o que ele diz é verdadeiro. Nesse sentido, Malinovski, principalmente com o seu Os Argonautas do Pacífico Ocidental repleto de fotografias é o divisor de águas. Antes dele, “o etnógrafo e o antropólogo, aquele que descrevia os costumes e aquele que era construtor de teorias gerais sobre a humanidade, eram personagens distintos. (Uma percepção clara da tensão entre etnografia e antropologia é importante para que se perceba corretamente a união recente, e talvez temporária, dos dois projetos)” (CLIFFORD, 1998, p.26). Após Malinowski, ou mais precisamente de 1900 a 1960, assistimos cada vez mais a profissionalização e academicização do trabalho de campo, que se torna hegemônico. Por outro lado, a etnografia passou a encenar estratégias específicas de autoridade, onde o autor tentava traduzir para o leitor a sua experiência em texto. Pergunta-se Clifford: “Se a etnografia produz interpretações culturais através de intensas experiências de pesquisa, como uma experiência incontrolável se transforma num relato escrito e legítimo?” (CLIFFORD, 1998, p.21). A resposta talvez possa ser encontrada na criação, onde Malinowski foi grande contribuinte, de “um novo teórico pesquisador de campo que desenvolveu um novo e poderoso gênero científico e literário, a etnografia, uma descrição baseada na observação participante” (CLIFFORD, 1998, p.27).
Para que esses modos de autoridade etnográfica se firmassem, eram necessárias, no entanto, algumas inovações institucionais e metodológicas. Clifford cita, em primeiro lugar, a legitimação do pesquisador de campo profissional, de padrões normativos de pesquisa, de sofisticação científica e da simpatia relativista. Outra questão importante era o domínio da língua nativa, ou apenas a utilização de termos lingüísticos nativos pelo pesquisador na etnografia, onde o domínio da língua não era crucial. Em terceiro lugar, como se uma cultura pudesse ser apreendida apenas pelo que vê o observador treinado, dava-se ênfase ao poder de observação. “Como uma tendência geral, o observador-participante emergiu como uma norma de pesquisa. Por certo o trabalho de campo bem-sucedido mobilizava a mais completa variedade de interações, mas uma distinta primazia era dada ao visual: a interpretação dependia da descrição” (CLIFFORD, 1998, p.29). Também se buscava aliar a descrição à teoria, como forma de “chegar ao cerne” de uma cultura mais rapidamente. Assim, a pretensão era que a etnografia estivesse mais para abstrações teóricas do que para inventários exaustivos de costumes e crenças. Em quinto lugar, como a idéia de que a cultura era um todo complexo, achava-se que o entendimento poderia ser obtido através do estudo exaustivo de uma das partes desse todo. Por isso, se privilegiavam as análises sobre instituições específicas da cultura por parte do pesquisador. Por fim, havia uma preferência pelos aspectos sincrônicos na análise, devido ao curto tempo de duração da pesquisa, onde muitos estudos acabavam perdendo de vista a dinamicidade da cultura.
Em seguida, James Clifford focaliza em seu texto os modos de autoridade: o experiencial, o interpretativo, o dialógico e o polifônico. O modelo clássico de modo de autoridade seria o experiencial, que é exemplificado com Malinwski, onde se tenta comprovar o “Eu estive lá”. Também se tenta mostrar que uma experiência de campo foi produtiva envolvendo “o leitor na complexa subjetividade da observação participante”, ou então, unindo “o leitor e o nativo numa participação textual” (CLIFFORD, 1998, p.32). Sendo assim, há um processo que cria a idéia de que o etnógrafo possui uma “sensibilidade para o estrangeiro” e da etnografia como portadora de uma verdade, mas que, ao mesmo tempo podia ser encarada como mistificação. No fundo mesmo, a experiência do etnógrafo não pode ser traduzida. “Os sentidos se juntam para legitimar o sentimento ou a intuição real, ainda que inexprimível, do etnógrafo a respeito do “seu povo” (CLIFFORD, 1998, p.38).
Sobre o modo de autoridade interpretativo, a crítica principal recai no entendimento de que se possa ver a cultura como um conjunto de textos, “‘a textualização’ é entendida como pré-requisito para a interpretação”. Aqui, o discurso se transforma num texto (CLIFFORD, 1998, p.39). Porém, para o autor, não há como você trazer um discurso para ser interpretado tal qual um texto é lido. “A interpretação não é uma interlocução. Ela não depende de estar na presença de alguém que fala” (CLIFFORD, 1998, p.40). Por conseguinte, Clifford destaca que, “em última análise, o etnógrafo sempre vai embora, levando com ele textos para posterior interpretação”, pois “o texto, diferentemente do discurso, pode viajar. Se muito da escrita etnográfica é feita no campo, a real elaboração de uma etnografia é feita em outro lugar” (CLIFFORD, 1998, p.40-41). Os textos são então desligados de seu contexto de produção e realocados ficcionalmente num contexto englobante, onde os autores do evento (um ritual, uma festa, por exemplo) separam-se de sua produção para dar lugar ao etnógrafo, entendido agora como uma espécie de intérprete literário.
Atualmente esses dois modos de autoridade, o experiencial e o interpretativo, estão cedendo lugar ao dialógico e ao polifônico. O modo de autoridade dialógico entende a etnografia como resultado de “uma negociação construtiva envolvendo pelo menos dois, e muitas vezes mais sujeitos conscientes e politicamente significativos” (CLIFFORD, 1998, p.43). Já o modo de autoridade polifônico, que rompe com as etnografias que pretendem conter uma única voz, geralmente a do etnógrafo, propõe a “produção colaborativa do conhecimento etnográfico, citar informantes extensa e regularmente” (CLIFFORD, 1998, p.54). Desse modo, o autor nota que uma “realidade cultural” acaba sendo inventada através de um processo textual, já que o etnógrafo precisa torná-la inteligível para o leitor, que acha estranha essa “realidade cultural”. Contudo, Clifford vê que a antropologia moderna tenta por os informantes nativos como construtores ativos dessa realidade, quebrando o poder absoluto do etnógrafo baseada na sua observação pessoal. As múltiplas vozes presentes na etnografia, que se queria esconder, agora se quer descobrir.
Por fim, em Sobre a autoridade etnográfica, James Clifford se distancia do entendimento canônico problematizando a questão do que seja a etnografia. Nesse sentido, releva os “processos criativos (e, num sentido amplo, poéticos) pelos quais os objetos culturais são inventados e tratados como significativos” (CLIFFORD, 1998, p.39) e, ao mesmo tempo, mostra que a coerência que se busca na etnografia, tal qual um texto literário “depende menos das intenções pretendidas do autor do que da atividade criativa de um leitor” (CLIFFORD, 1998, p.57).

Por Eduardo para o GERTS

4 comentários:

Tania disse...

Acho importante sempre fazer uma pausa para reflexão do fazer etnográfico. Esse texto do James Clifford é interssante porque faz uma historinha sobre os outros métodos etnográficos, além de nos fazer pensar sobre a experiência de campo e como validar a observação participante. O que eu observei recentemente, em apresentações de Gt's que assiti,foi que as pessoas que apresentavam seus trabalhos etnográficos faziam apenas uma mera descrição do campo, mas não mais que isso...achei muito esquisito isso, algo sem reflexão? Só a descrição pela descrição...fiquei pensando o que estaria acontecendo...é preciso exercitar mais o fazer etnográfico. Pensar como utilizar o diário de campo para fazer as reflexões. Pelo menos é nisso que penso quando me proponho a utilizar esse método, não fazer apenas a descrição.

Felipe Araujo disse...

Outro ponto interessante nessa discussão pós-moderna (no sentido de ser meta-objetiva, de tentar libertar-se da determinância discursiva da ideologia modernista) sobre o fazer etnográfico é a relação entre etnografia e literatura. A comunidade antropológica opera cedendo o privilégio da discussão unicamente ao texto cientificamente localizado, na tentativa de evitar uma confusão envolvendo sua cara e legítima prática metodológica. Etnografia e literatura só se confundem mesmo encontrando-se no conceito de heteroglossia que James Clifford reutiliza para definir as diferentes (hetero) vozes (glossia)presentes em um texto. Resumindo, colocar a prática metodológica da antropologia ao lado de uma produção literária não implica possuírem as mesmas propriedades. A autoridade em ambas age segundo diferentes finalidades. Para o conhecimento científico, apenas uma tem caráter pragmático.

Mateus Neto disse...

hythieshEu acredito que a partir do James Clifford entre outros da Escola de Chicago, alguns antropólogos foram impulsionados a novas criações pela infusão de ideias da crítica literária desconstrucionistas. O Clifford ao contrário dos seguidores de Malinowski tomaria como seus nativos e informantes, os próprios antropólogos que fizeram pesquisa de campo, cujos trabalhos tem sido a produção de seus textos, a escrita etnográfica. Olha que coisa incrível, agora, todos nós (antropólogos, rsrs) têm sido observados e inscritos. Já que a Antropologia é a disciplina que estuda o “outro”, para o Clifford, o “Outro” é a representação antropológica do outro. Meio louco isso, não? Portanto, neste momento, novos métodos ou epistemologias surgem na disciplina antropológica. A etnografia foi invadida pela a heteroglossia e concebida num espaço textual autônomo, polifônico e multivocal (dialógico), onde não apenas estaria transcritos as impressões dos antropólogos, mas também dos seus informantes e nativos dando início ao paradigma textual ampliando a noção de campo na Antropologia que estava passando no pós-guerra por crises internas. “(...) Foi quando se pensou que a pesquisa de campo desapareceria pela recusa dos nativos, agora cidadão de nações independentes, em aceitar a presença dos antropólogos” (James Clifford, 1989, p. 67). O processo de pós-colonização que culminou em meados de 1950, trouxe para a disciplina alguns pressupostos: o desaparecimento do seu suposto objeto, os nativos e o fim das explicações totalizadoras. Isso é bem esclarecedor (eu acho) para aqueles que ainda pensam que os antropólogos estudam as aldeias, tribos... etc. Mas como o Geertz já dizia, os antropólogos estudam nas aldeias e não especificamente as aldeias. Espero ter contribuído de alguma forma... Pessoal, me ajude se falei alguma besteira...rsrsrs

Williams disse...

Perante tudo que já foi comentado sobre a construção de uma autoridade etnográfica, ora baseada numa idéia de “eu estive lá”, pautada na experiência do pesquisador junto ao grupo pesquisado – dai o surgimento de uma antropologia visual, baseada em fotografias ditas legitimadoras e comprovativas da presença do pesquisador em campo – e agora numa nova leitura substituída pela idéia da autoridade dialógica, pautada na interação/negociação entre pesquisador/pesquisado, e a polifônica, no sentido de dar voz aos sujeitos e construir um texto a “varias mãos”, me vem a pergunta: se todas essas tentativas de legitimação, por meio da construção de uma autoridade etnográfica (experiencial/interpretativo, dialógico/polifônico) são construídas na interação – seja ela do nível que for, com seu sujeitos, sujeitos esses cada vez mais próximos, muitas vezes com quais o pesquisador interage fora do contexto “campo de pesquisa” – como dá voz a esse nativos sem correr o risco de ser interpretado como militante, ou porta voz dos mesmos, sendo você também um nativo? Como controlar essas interpretações dos leitores se são eles os autores finais de nossas “histórias etnográficas”? Como Clifford chama a atenção a coerência que se busca na etnografia, tal qual um texto literário “depende menos das intenções pretendidas do autor do que da atividade criativa de um leitor”. fico a pensar: se antes Malinwski foi fortemente criticado pelos antropólogos quando publicado o seu diário revelando sua “antipatia” para com seu objeto de pesquisa, agora a critica acontece ao contrário, quando os pesquisadores revelam-se próximos a seu objeto? Como fugir disso?