sexta-feira, 19 de novembro de 2010

Populações Tradicionais e a Convenção da Diversidade Biológica

Cunha, Manuela Carneiro da. Populações Tradicionais e a Convenção da Diversidade Biológica. Conferência do mês do Instituto de Estudos Avançados da USP em 17 de junho de 1998. Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?pid=S0103-40141999000200008&script=sci_arttext

Resenhado por Aline Ferreira da Silva

Abordando um conjunto de questões que envolvem reflexões sobre público/privado, populações locais/estados nacionais, países do norte/países do sul, ciência tradicional/ciência ocidental, direitos tradicionais/direitos universais, o texto Populações Tradicionais e a Convenção da Diversidade Biológica traz à tona um debate que tem como foco analítico principal refletir sobre o “lugar” do “saber local” frente aos debates atuais em torno da diversidade biológica e do desenvolvimento científico. Resultado de uma conferência apresentada ao Instituto de Estudos Avançados da USP, o texto compõe um dos principais temas de trabalho da Antropóloga e professora da Universidade de Chicago, Manuela Carneiro da Cunha, a qual vem desenvolvendo estudos e pesquisas nas áreas de etnicidade, povos tradicionais e questão racial.
O texto de Cunha (1998) inicia-se com uma breve descrição acerca do que foi a Convenção da Diversidade Biológica (CDB) e de como foi a sua repercussão no Brasil. Caracterizada por reunir países de diversas partes do mundo para discutir sobre o uso sustentável da dos bens genéticos e biológicos, o evento é apresentado pela autora como sendo um instrumento do direito internacional que reúne organizações transnacionais, representantes do Estado, dos movimentos sociais e da sociedade civil organizada no debate sobre o direito à conservação biológica. No centro reflexivo deste debate, alguns questionamentos principais se fazem recorrentes: É o direito biológico e genético um direito universal? Os recursos genéticos, biológicos e tradicionais devem ser tidos como um patrimônio da humanidade? Como garantir à coletividade humana que tenham o direito a todos os patrimônios biológicos e genéticos sem que isso implique na perda de direitos de algumas comunidades locais? Qual o limite entre apreender os bens genéticos e biológicos como bens privados, públicos, tradicionais ou modernos?
O pressuposto reflexivo que dá impulso ao desenvolvimento destas questões aparece diretamente ligado ao fato de que, nas últimas três décadas, dada a expansão dos estudos científicos ocidentais, em especial os biotecnológicos, tem havido uma forte disputa em torno de como os produtos biológicos devem ser apreendidos, se como bens públicos, e portanto livres para acesso de toda a humanidade, ou privados, neste caso, passariam a ser patenteados e pertencentes a grupos específicos de estudiosos, países e/ou empreendedores. O ponto problemático desta questão é que, por conta dos elevados ganhos científicos e econômicos que o domínio dos bens biológicos e genéticos tem trazido para a sociedade moderna, muitos países de elevado poder político-econômico têm incentivado os movimentos em prol da privatização destes bens, consectuando, inclusive, em leis que os asseguram o domínio de explorar determinados produtos, produtos estes que na grande maioria das vezes, pertencem a outros territórios, a outros povos, com outras culturas e formas de utilização daqueles bens. Fazendo uma breve comparação entre os países do Norte e os países do Sul, Cunha relata que, em 1975, dos 12 centros de megadiversidade existentes no mundo, 11 estavam situados no hemisfério Sul, sendo que, em termos de domínio de patentes, apenas 1,7% das mesmas pertencia a estes, e as demais, cerca de 98,3% aos países do Norte. Em outras palavras, embora os países em desenvolvimento concentrassem a maior parte da diversidade biológica do mundo, eram os países desenvolvidos quem mais tinha poder sobre estes.
Ao longo dos anos 1990, a crítica à chamada revolução tecnicista/verde e ao modelo de desenvolvimento calcado no desenvolvimentismo economicista e individualista trouxe para o debate público internacional o questionamento sobre a consequência da implantação destes modelos para as comunidades locais. Com isso, se antes as mesmas eram apreendidas como comunidades cujo saber era tido como arcaico, incompatível com o progresso que se aspirava, agora, frente aos novos debates que insurgem, os conhecimentos e saberes destas passam a ser apreendidos como “tendo um valor” incomensurável para o desenvolvimento e progresso da sociedade moderno-contemporânea. E é justamente neste ponto que permeiam alguns problemas: Quais valores são estes que são atribuídos a estes saberes? Como eles são vistos e apreendidos pelas sociedades globais? Quais “utilidades” são dadas a estes saberes? De acordo com Cunha (1998), nos últimos anos o saber local assumiu o “epicentro” dos debates importantes em termos de Estados Nacionais e organizações internacionais. A tal saber, passam a ser atribuídos valores culturais, ambientais, identitários, sociais e econômicos muito grandes, já que, visto como uma forma diferente de se fazer ciência, a este correlaciona-se a possibilidade de construção de um modelo de se fazer ciência mais compatível com os ideais de “sustentabilidade” galgados pelas comunidades internacionais.
Assim, tido como “uma ciência viva, que experimenta, inova, pesquisa” (Cunha, 1998: 159), o saber local passa a ser associado como uma forma de conhecimento que tem domínio sobre as diversidades biológicas, as variedade genética; que tem domínio sobre as possibilidades de articulações, e mais que isso, que tem em seus territórios características naturais preservadas das mudanças e agressões impostas pelas tecnologias e manipulações científicas. Conforme Cunha (1998:159) “são essas condições essenciais de produção do saber local que as propostas de direitos intelectuais coletivos querem preservar”, principalmente no que se refere à (1) variedade de plantas, (2) o saber sobre elas, (3) e a divisão que as comunidades locais fazem diante delas, no processo de classificação das mesmas.
Abordadas estas questões, Cunha (1998) segue fazendo uma série de indagações acerca de como as organizações internacionais podem fazer para se apoderar destes conhecimentos, já que, além do valor científico que lhes é atribuído, existe por trás da tentativa de tornar este conhecimento público, fortes interesses comerciais e/ou posicionamento diante do mundo. A questão agora é saber, até que ponto (ou mesmo quando) os saberes locais vão poder gozar de suas particularidades e serem saberes locais e não globais? Como funcionará (ou funciona) a circulação destes conhecimentos e quais as implicações que incidirão sobre as comunidades? Dentre as várias possibilidades de conseqências que estes questionamentos podem gerar, o fato é que, para Cunha (1998), o desafio é saber mediar os interesses entre os diversos agentes envolvidos, procurando estreitar os laços dialógicos entre Estados Nacionais, organizações internacionais e comunidades locais.

3 comentários:

Frank Marcon disse...

Este texto e este tema são ótimos. Perpassando dilemas éticos e metodológicos clássicos no campo na antropologia. O interessante são as questões que envolvem o debate sobre tradicional x científico, local x global, privado x público, num contexto em que se precisa perceber principalmente as dimensões de poder que afetam tais questões no âmbito dos interesses políticos, econômicos e acadêmicos. Particularmente, concordo com a estretégia critíca de Cunha, principlamente no que diz respeito a relativização dos lugares de poder aí implicados. Gostei da resenha e penso que o texto pode servir de insight para vários mergulhos sócio-antropológicos nesta área dos saberes locais em geral versus os saberes globais.

Diogo Monteiro disse...

Texto muito interessante este resenhado pela Aline. Interessante notar as estratégias que as potências ocidentais utilizam para desmerecer ou diminuir os conhecimentos tradicionais, no sentido de se apoderarem deles. Rotulam-os pragmáticos, e relegam a um segundo plano o valor simbólico, cultural, que estes conhecimentos assumem para estas comunidades.

Diogo Monteiro

Tania disse...

Gente, só lembrei do caso das Quebradeiras de coco babaçu do Maracnhão e o "ataque" que de empresas como Natura, por exemplo.