Resenha de artigo de Marluci Menezes
Marluci Menezes possui doutoramento em Antropologia, especialidade em Antropologia Cultural e Social pela Universidade Nova de Lisboa (2002), Mestrado em Antropologia, especialidade em Antropologia Cultural e Social pela Universidade Nova de Lisboa (1996), e é atualmente chefe do Núcleo de Ecologia Social do Laboratório Nacional de Engenharia Civil, o LNEC.
Considerando o espaço Publico Urbano como um “suporte” para contextos de interações através das quais as identidades sociais, práticas e imagens socioespaciais são afirmadas, e/ou, contestadas, a presente etnografia sobre as práticas de uso (apropriação) da Praça Martim Moniz, objetiva analisar os aspectos socioculturais, responsáveis, segundo Menezes, pela “inscrição da praça no mapa social e urbano de Lisboa” (p. 304). O lugar público é assim, na visão da autora, um quadro simbólico representativo da cidade como uma unidade espacial, cultural e social. Menezes, seguindo a proposta de uma etnografia de “de perto e de dentro” (p.303) de Magnani, parte da idéia que as práticas sociais são também responsáveis pela configuração e reconfiguração dos espaços, que não são simples resultados de políticas intervencionistas de controle por parte do estado e do poder econômico.
Na primeira parte do artigo “Antecedentes da praça”, a autora traça um apanhado histórico do território da Mouraria, área histórica de Lisboa destinada aos mouros após reconquista da cidade no século XII, onde é situada a Praça Martim Moniz. Visto como gueto ‘insalubre” e “mal-afamado”, lugar de “prostitutas” e “malandros” (p. 306), a região da Mouraria tornou-se, entre os anos de 1930 e 1960, foco de políticas intervencionistas (urbanismo civilizador ) legitimadas por uma proposta de higienização e embelezamento destinada a transforma aquela zona da cidade marginalizada em um bairro moderno, modificando suas “dinâmicas sociais, culturais e urbanas” (p. 306) (gentrification?). Apesar desse grande Plano de Revitalização do bairro, o largo do Martim Moniz surge no cenário urbano de Lisboa apenas como praça e exemplo da boa convivência de diversos grupos étnicos (africanos, chineses, indianos e ciganos), marca de uma sociedade multicultural bem sucedido: “Portugal é um país multicultural” (p. 317).
É na segunda parte, “A etnografia da Praça do Martim Moniz”, onde começa o passeio etnográfico praticado pela autora durante três anos, como também o início da discussão que esta resenha se aterá, a ocupação (apropriação, uso) de Pedaços da praça por diferentes grupos étnicos. Africanos e indianos, num primeiro momento tinham como pedaço as esquinas circunvizinhas da praça, aglutinavam-se na extremidade norte da mesma (Por que? Tal localização facilitaria eventuais retiradas estratégicas, no caso de batida policial?), assim como os chineses. A recém inaugurada Martim Muniz passou rapidamente de pedaço de lazer dos moradores, para pedaço de imigrantes marginais, o lugar do outro, onde “não dá para se estar” (p.310). O “Cartão-Postal” (p. 310) que havia se tornado a Martim Muniz, via política de enobrecimento (revitalização), retomou rapidamente sua herança de “espaço onde havia perigo” (p.310).
Mais uma vez, em 1998, foi elaborado um plano de intervenção por parte do Estado. A Câmara municipal de Lisboa, numa tentativa de revitalizar economicamente a praça, estalou 44 quiosques destinados a venda de artigos religiosos, antiguidades e artesanato. Entretanto, o plano não deu certo. Ao invés de dar novos usos à praça, a distribuição desses quiosques obstruiu os trajetos ainda praticados pelos moradores, facilitando a prática de atividades ilegais: os quiosques e sanitários serviam de abrigo para toxidependentes e traficantes, assim como, para as gangues dos telemóveis, sobretudo imigrantes africanos, asiáticos e indianos que realizavam chamadas internacionais a preços duvidosos. Novamente o uso previsto é sobreposto ao contra-uso, ou seja, o negócio oficial ao qual foram destinados os quiosques entrava em bancarrota, e o ilegal, venda de drogas e chamadas telefônicas fraudulentas, prosperou rapidamente.
Vale à pena ressaltar que apesar dos vários contra-usos praticados na praça (venda e uso de drogas e chamadas ilegais), os comerciantes que ainda resistiam e moradores, em nota publicada em um periódico de 1999, apenas reclamavam da presença das gangues dos telemóveis, parecendo ignorar a prática da venda e uso de drogas, não citada na nota. Dessa maneira poderíamos dividir a localidade em dois grandes grupos, os imigrantes (africanos, indianos, asiáticos, brasileiros entre outros citados) e os nativos (portugueses moradores e vendedores da redondeza) em conflito na disputa pelo espaço. Divisão esta que se confirma ao analisarmos a localização e os proprietários dos três Snack-bars ainda existentes: no lado sul da praça ficava o snack-bars “Fava-rica”, sob direção de portugueses e tendo como clientela principal os turistas que vez ou outra, transitavam na praça a se refrescar em fontes existentes e tirar fotos; na outra ponta da praça, extremidade norte, os snack-bars “Quiosque Criola do Martim Moniz”, sob direção de africanos e clientela diversificada (indianos, africanos, ciganos) e outro controlado por Chineses, também com clientela diversificada. A autora ressalta ainda que, apesar da proximidade geográfica entre os dois quiosques e, dos grupos étnicos diversificados que compunha sua clientela, esses pedaços (snack-bars dos portugueses, africanos e chineses) configuravam “limites e fronteiras sociossimbólicas” (p. 314), ou seja, apesar da proximidade física, continuavam separados por fronteiras simbólicas.
Mais uma vez, por intervenção do Estado, além da retirada da maioria dos quiosques com intuito de dar maior circulação aos pedestres, e desabrigar os negócios ilegais (venda de droga e telefonia fraudulenta) foi estalado um circuito de vigilância eletrônica e contratados seguranças uniformizados, que transitavam diariamente na praça, outra tentativa de “domesticação do espaço” (p.312). No entanto, o clima de insegurança continuava, os pequenos furtos e as gangues dos telemóveis, apesar de em menor número, continuavam a compor o cotidiano da praça.
No sub-tópico, “Ritmos e comportamentos”, Menezes esboça o cotidiano da praça chegando a conclusão que a intensidade na frequencia e apropriação da Martim Moniz, coincide com o ritmo do comércio local, fim da manhã, ora do almoço e fim da tarde, a noite dois ( Fava-Rica e Quiosque Criola do Martim Moniz) os três quiosques ficavam abertos até por volta das 24h.
No tópico “As situações de protesto civil e de resistência”, demonstra como a praça vem se tornando emblemática no contexto de manifestações trabalhistas e de imigrantes, circunstância onde “pedaços”, “circuitos” e “trajetos” deixam de existir transformando o espaço, fragmentado em seu cotidiano, em um espaço de discussão a cerca dos problemas da desigualdade social e dos imigrantes ilegais. O que tem transformado a imagem da praça em espaço de luta e resistência por direitos civis. Daí o tópico “Entre uma geografia da resistência e uma etnografia da circunstância presente” voltado a demonstrar que “a par do controlo por parte do poder, existe uma geografia da resistência que se apropria da praça como um local de expressão civil e de oposição ao controlo estatal” (p. 319). Para tanto, propõe a recuperação das concepções de protesto-manifesto (apropriação do espaço por grupos marginais ou excluídos p. 319), protesto-latente (contestação do desenho e planejamento do espaço p. 320) e protesto-ritual (festas, carnavais, paradas e procissões p. 319) proposta por Low (2000b).
Concluo retomando a discussão proposta, mais não aprofundada por Menezes, a cerca das fronteiras sociosimbólicas. Ao delimitar os pedaços dos diversos grupos étnicos que compunha a paisagem social da Praça Martim Moniz, Marluci parece não considerar o fluxo existente de pessoas, idéias, valores, por essas fronteiras. Mas, o simples fato das gangues dos telemóveis, assim como, os snack-bars, terem uma clientela diversificada (africanos, indianos, portugueses, chineses entre outros) já não sugere um grau de interação, no mínimo econômica, entre esses grupos étnicos?
by Williams Souza Silva
6 comentários:
E ai pessoal, faltou a referência bibliográfica: Horizontes Antropológicos, Porto alegre, ano 15, n 32, p. 301-328, jul./dez. 2009.
abç em todos.
A indagação feita no último parágrafo da resenha (a respeito da interação entre os grupos) me fez lembrar da discussão sociação/ sociabilidade proposta por Simmel em Questões fundamentais da sociologia: indivíduo e sociedade. Para esse autor a sociedade se constrói na interação entre indivíduos, a partir das motivações pessoais (os conteúdos da vida social). A grosso modo, as formas pelas quais os indivíduos buscam satisfazer os seus desejos são chamadas por ele de sociação, enquanto que sociabilidade refere-se ao processo em que essas formas “ganham vida”, consiste em uma reciprocidade consciente entre os indivíduos. A sociabilidade abarca tanto interações de conflito como de afetividade. Segundo Simmel se a sociedade se constrói nessa relação de interdependência, no contato, as fronteiras que se formam no interior de uma sociedade (a partir da interação entre indivíduos) seriam provisórias. Um outro ponto é que mesmo a relações de conflito já pressupõe em si a existência de uma interação.
O texto da Malurci Menezes é muito rico por abordar aspectos centrais da antropologia urbana. A sua etnografia transita entre a descrição do cotidiano da cidade, configurado nas práticas de rotina desempenhadas pelos grupos de freqüentadores da Praça do Martim Moniz, e os aspectos da rotina urbana como ruptura, observando as práticas sociais a partir das interações conflituosas dos grupos que se apropriam daquele espaço público. As afirmações da autora, de um modo geral, alinham-se às perspectivas teóricas que enfatizam o caráter do espaço público urbano como lugar da coexistência conflitante das diferenças.
Diogo Monteiro
Gostei muito do texto e do tipo de discussão que a autora faz em sua etnografia das situações de uso e apropriação da praça do Martim Moniz em Lisboa, onde ela reflete sobre a importância da prática etnográfica na apreensão e compreensão das circunstâncias quotidianas usando categorias de análise como mancha, trajeto, circuito e pedaço. Entretanto, não concordo muito com a autora no sentido de ver o quotidiano como rotinização, pois observei que ela enfatiza apenas as regularidades e contingências, o que acho meio perturbador. Bem, foi isso que entendi. Corrijam-me se eu estiver equivocado.
Vejo mais o cotidiano dentro da perspectiva certoniana, o qual ver o cotidiano caracterizado pela fragmentação e como campo de batalha no campo do outro. Prefiro ver as fissuras do cotidiano e não o que há normativo, se é que há algo de normativo. Mas tudo depende dos objetivos e as teorias propostas para o estudo. Assim entendo.
O método e a escrita empregada na pesquisa achei de muito bom tom. Segundo Marluci, o espaço público urbano é um contexto de mediação através do qual as identidades sociais e culturais, estilos de vida, as práticas e as imagens socioespaciais podem ser criadas e contestadas, simbolizando quer a comunidade, quer a sociedade e a cultura mais abrangente, na qual ele se integra. O espaço público urbano transforma-se em suporte para a manifestação de prestações e práticas pessoais, sociais e culturais, atos de resistência e de dominação, conflitos, memórias, mudanças, imagens, identidades, encontros; como um espaço que é constituído por esses mesmos dramas. Mas já que ela fala de um espaço que é transformado em pedaço pelos praticantes, ou seja, os indivíduos que frequentemente compõem a paisagem da praça a usando de várias maneiras, principalmente por ser esta praça um espaço de concentração de jovens de etnias africanas, os próprios portugueses, brasileiros, indianos, asiáticos e o próprio contexto histórico deste espaço, não seria mais apropriado o conceituá-lo como “lugar”, o espaço praticado? Bem confuso isso que escrevi, né!? Mas gostaria que alguém me respondesse, pois estou mesmo confuso. Pode ser que li e interpretei de forma equivocada. Rsrsrs.
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