A Antropologia da Ayahuasca
Felipe Silva Araujo, estudante do NPPA-UFS
Felipe Silva Araujo, estudante do NPPA-UFS
O objetivo principal desse texto é transmitir algumas informações sobre o atual estado da pesquisa que dará forma para a dissertação que estou desenvolvendo, intitulada “A Antropologia da Ayahuasca” (Mestrado em Antropologia Social, Universidade Federal de Sergipe, previsão 2011). O problema central que se coloca diz respeito à relação entre ciência (prática antropológica) e fé (antropólogo ayahuasqueiro). Como se dá o processo através do qual a produção acadêmica sobre ayahuasca ganha forma? Quais os limites que separam a fronteira entre o exercício acadêmico e a cosmovisão ayahuasqueira?
“Ayahuasca” é um dentre os diversos nomes usados para designar um chá bebido milenarmente por indígenas na América Latina e que no Brasil, através do século XX, ganhou forma de três religiões nacionais: Santo Daime, Barquinha e União do Vegetal (UDV). É preparado pelo cozimento de duas espécies vegetais, sendo as mais tradicionais a Banisteriopsis caapi (cipó, jagube, mariri, ayahuasca) e a Psychotria viridis (chacrona, rainha). Como estamos diante de um uso de pelo menos dois mil anos, como aponta Naranjo (1979, 1986), e que se deu através de inúmeras formações sociais e foi ritualizado para os mais diversos fins, a primeira observação que se pode retirar do quadro diz respeito à complexidade da configuração social do fenômeno de uso e expansão da ayahuasca.
Em contrapartida, muito se tem pesquisado sobre o chá através do mundo e o Brasil tem um papel importante na configuração das políticas regulamentadoras. O aumento mais significativo do interesse pelo assunto se deu na década de 1980, quando a legitimidade do uso ritual da ayahuasca foi contestada por diversos setores sociais. Quem fez a mediação do diálogo entre uma sociedade assombrada pelo fantasma do uso de drogas inventado no final do século XIX e os grupos religiosos foram pesquisadores dentre os quais muitos simpatizaram com a causa e o uso da bebida. Seus trabalhos, no entanto, nunca foram questionados como sendo dotados de um menor valor científico. O foco de nossos interesses está colocado nesse espaço de ambiguidade compartilhado pelo antropólogo nativo.
Em todas as batalhas judiciais que enfrentou até hoje, sendo sempre associado ao uso de entorpecentes devido à presença no preparo de uma substância psicoativa conhecida como DMT, os estudos reconheceram a legitimidade do uso “estritamente religioso” do chá. No Brasil, Espanha, Holanda e Estados Unidos, o livre exercício da religiosidade está oficialmente reconhecido e ficou declarada a necessidade de preservação da prática como representante de uma tradição religiosa.
Como Beatriz Labate (2004) aponta, existe um campo de pesquisas compartilhado entre diversos países empenhado no esclarecimento das mais variadas faces dos contextos sociais ayahuasqueiros. Depois de mais três décadas de pesquisas, a discussão começa a demonstrar sinais de especialização, a dissertação que desenvolvo surge então num determinado contexto histórico tanto para os usos ayahuasqueiros como para a antropologia. Para contemplar a relação reconhecidamente imparcial entre uma disciplina acadêmica e um outro universo de conhecimento, o dos bebedores de ayahuasca, realizamos um esforço no sentido de caracterizar o processo de construção dos métodos antropológicos e o processo de construção social de legitimidade do uso da ayahuasca através do séc. XX. Nesse intento, deparamos com semelhanças que, se não justificam, ao menos esclarecem a atuação coerente de pesquisas realizadas pelos próprios ayahuasqueiros.
Minha proposta é desenvolver a dissertação em três capítulos:
1) A Ayahuasca como objeto de estudo da Antropologia
2) O antropólogo ayahuasqueiro como objeto de estudo da Antropologia
3) Um estudo de caso
No primeiro capítulo concentro um esforço teórico para compreender as transformações sobre as concepções da prática etnográfica através do séc. XX bem como realizo uma observação dos processos legais que o uso ritual da ayahuasca enfrenta pelo mundo através de sua associação ao uso de “drogas”. O “uso de drogas” como infração penal representou uma bandeira levantada por importantes países, como os Estados Unidos, e a guerra empreendida contra alguns psicoativos específicos esteve mais associada a interesses econômicos e sociais do que propriamente ao interesse científico.
Bilhões de dólares continuam sendo utilizados como ferramenta de repressão e aparentemente a questão das “drogas” em nossa sociedade nunca esteve tão incontida. Felipe Calderón, em quatro anos de mandato como presidente do México, contabiliza mais de 35 mil mortes na guerra às drogas. Cidades inteiras viraram campos de guerra contra o narcotráfico e inúmeros civis são prejudicados pela política ofensiva de controle que não está livre de erros. O contexto social de pânico relativo ao uso de drogas em todo o mundo, alimentado pelo sensacionalismo midiático, dificulta a aceitação social de práticas tradicionais como o uso ritual da ayahuasca devido à associação direta entre a prática religiosa e a presença da DMT na bebida. Os contextos sociais ayahuasqueiros são profundamente influenciados pela posição de legalidade que oficialmente detêm, sendo que, no outro extremo, a imagem do “drogado” amplamente reificada pela mídia é assumida como um exemplo daquilo que não representa a própria prática. Os processos de identificação se dão através da negação do outro (o “drogado”) e muitas vezes de acusações contra grupos ayahuasqueiros que estariam em tese violando as regras de tradição que possibilitaram o reconhecimento do uso.
No segundo capítulo, pretendo realizar entrevistas com o maior número possível de antropólogos ayahuasqueiros na tentativa de compreender o exercício da posição acadêmico-religiosa. Diversas vezes alguns aspectos diretamente ligados à prática da pesquisa podem ser minimizados no texto final como resultado de uma conjuntura acadêmico-social que demanda cientificismo e objetivismo como legitimadores per si do trabalho científico, o que coloca o antropólogo “nativo” num espaço de ambiguidade a partir do qual a enunciação precisa ser objetivamente reforçada sob pena de a emoção penalizar os resultados científicos finais.
O terceiro capítulo surge como fruto de um envolvimento com grupos do Santo Daime e da UDV em Aracaju; representa uma tentativa de colocar em prática o exercício do dialogismo etnográfico dentro das possibilidades de alargamento e apropriação temática apontados pelos dois capítulos anteriores.
Referências
LABATE, Beatriz Caiuby. A reinvenção do uso da ayahuasca nos centros urbanos Mercado de Letras, Fapesp, 2004.
NARANJO, P. "Hallucinogenic plant use and related indigenous belief systems in the Ecuadorian Amazon". Journal of Ethnopharmacology 1:121- 45. 1979.
__________ ."EI ayahuasca in Ia arqueología ecuatoriana". America Indígena 46:117-28, 1986 apud MCKENNA, Dennis J. “Ayahuasca: uma história etnofarmacológica”. In: Ayahuasca: alucinógenos, consciência e o espírito da natureza. Rio de Janeiro: Gryphus, 2002
“Ayahuasca” é um dentre os diversos nomes usados para designar um chá bebido milenarmente por indígenas na América Latina e que no Brasil, através do século XX, ganhou forma de três religiões nacionais: Santo Daime, Barquinha e União do Vegetal (UDV). É preparado pelo cozimento de duas espécies vegetais, sendo as mais tradicionais a Banisteriopsis caapi (cipó, jagube, mariri, ayahuasca) e a Psychotria viridis (chacrona, rainha). Como estamos diante de um uso de pelo menos dois mil anos, como aponta Naranjo (1979, 1986), e que se deu através de inúmeras formações sociais e foi ritualizado para os mais diversos fins, a primeira observação que se pode retirar do quadro diz respeito à complexidade da configuração social do fenômeno de uso e expansão da ayahuasca.
Em contrapartida, muito se tem pesquisado sobre o chá através do mundo e o Brasil tem um papel importante na configuração das políticas regulamentadoras. O aumento mais significativo do interesse pelo assunto se deu na década de 1980, quando a legitimidade do uso ritual da ayahuasca foi contestada por diversos setores sociais. Quem fez a mediação do diálogo entre uma sociedade assombrada pelo fantasma do uso de drogas inventado no final do século XIX e os grupos religiosos foram pesquisadores dentre os quais muitos simpatizaram com a causa e o uso da bebida. Seus trabalhos, no entanto, nunca foram questionados como sendo dotados de um menor valor científico. O foco de nossos interesses está colocado nesse espaço de ambiguidade compartilhado pelo antropólogo nativo.
Em todas as batalhas judiciais que enfrentou até hoje, sendo sempre associado ao uso de entorpecentes devido à presença no preparo de uma substância psicoativa conhecida como DMT, os estudos reconheceram a legitimidade do uso “estritamente religioso” do chá. No Brasil, Espanha, Holanda e Estados Unidos, o livre exercício da religiosidade está oficialmente reconhecido e ficou declarada a necessidade de preservação da prática como representante de uma tradição religiosa.
Como Beatriz Labate (2004) aponta, existe um campo de pesquisas compartilhado entre diversos países empenhado no esclarecimento das mais variadas faces dos contextos sociais ayahuasqueiros. Depois de mais três décadas de pesquisas, a discussão começa a demonstrar sinais de especialização, a dissertação que desenvolvo surge então num determinado contexto histórico tanto para os usos ayahuasqueiros como para a antropologia. Para contemplar a relação reconhecidamente imparcial entre uma disciplina acadêmica e um outro universo de conhecimento, o dos bebedores de ayahuasca, realizamos um esforço no sentido de caracterizar o processo de construção dos métodos antropológicos e o processo de construção social de legitimidade do uso da ayahuasca através do séc. XX. Nesse intento, deparamos com semelhanças que, se não justificam, ao menos esclarecem a atuação coerente de pesquisas realizadas pelos próprios ayahuasqueiros.
Minha proposta é desenvolver a dissertação em três capítulos:
1) A Ayahuasca como objeto de estudo da Antropologia
2) O antropólogo ayahuasqueiro como objeto de estudo da Antropologia
3) Um estudo de caso
No primeiro capítulo concentro um esforço teórico para compreender as transformações sobre as concepções da prática etnográfica através do séc. XX bem como realizo uma observação dos processos legais que o uso ritual da ayahuasca enfrenta pelo mundo através de sua associação ao uso de “drogas”. O “uso de drogas” como infração penal representou uma bandeira levantada por importantes países, como os Estados Unidos, e a guerra empreendida contra alguns psicoativos específicos esteve mais associada a interesses econômicos e sociais do que propriamente ao interesse científico.
Bilhões de dólares continuam sendo utilizados como ferramenta de repressão e aparentemente a questão das “drogas” em nossa sociedade nunca esteve tão incontida. Felipe Calderón, em quatro anos de mandato como presidente do México, contabiliza mais de 35 mil mortes na guerra às drogas. Cidades inteiras viraram campos de guerra contra o narcotráfico e inúmeros civis são prejudicados pela política ofensiva de controle que não está livre de erros. O contexto social de pânico relativo ao uso de drogas em todo o mundo, alimentado pelo sensacionalismo midiático, dificulta a aceitação social de práticas tradicionais como o uso ritual da ayahuasca devido à associação direta entre a prática religiosa e a presença da DMT na bebida. Os contextos sociais ayahuasqueiros são profundamente influenciados pela posição de legalidade que oficialmente detêm, sendo que, no outro extremo, a imagem do “drogado” amplamente reificada pela mídia é assumida como um exemplo daquilo que não representa a própria prática. Os processos de identificação se dão através da negação do outro (o “drogado”) e muitas vezes de acusações contra grupos ayahuasqueiros que estariam em tese violando as regras de tradição que possibilitaram o reconhecimento do uso.
No segundo capítulo, pretendo realizar entrevistas com o maior número possível de antropólogos ayahuasqueiros na tentativa de compreender o exercício da posição acadêmico-religiosa. Diversas vezes alguns aspectos diretamente ligados à prática da pesquisa podem ser minimizados no texto final como resultado de uma conjuntura acadêmico-social que demanda cientificismo e objetivismo como legitimadores per si do trabalho científico, o que coloca o antropólogo “nativo” num espaço de ambiguidade a partir do qual a enunciação precisa ser objetivamente reforçada sob pena de a emoção penalizar os resultados científicos finais.
O terceiro capítulo surge como fruto de um envolvimento com grupos do Santo Daime e da UDV em Aracaju; representa uma tentativa de colocar em prática o exercício do dialogismo etnográfico dentro das possibilidades de alargamento e apropriação temática apontados pelos dois capítulos anteriores.
Referências
LABATE, Beatriz Caiuby. A reinvenção do uso da ayahuasca nos centros urbanos Mercado de Letras, Fapesp, 2004.
NARANJO, P. "Hallucinogenic plant use and related indigenous belief systems in the Ecuadorian Amazon". Journal of Ethnopharmacology 1:121- 45. 1979.
__________ ."EI ayahuasca in Ia arqueología ecuatoriana". America Indígena 46:117-28, 1986 apud MCKENNA, Dennis J. “Ayahuasca: uma história etnofarmacológica”. In: Ayahuasca: alucinógenos, consciência e o espírito da natureza. Rio de Janeiro: Gryphus, 2002
8 comentários:
Felipe, tenho um questionamento, na verdade uma provocação para ver-lhe sistematizando as idéias. Objetivamente qual o seu problema de pesquisa? Seu objetivo geral? E como você está vendo as possibilidades metodológicas?
Oi Frank! Eu acredito que existe uma diferença entre o "uso de drogas" e o "uso de uma substância psicoativa tradicionalmente contextualizada", e que essa diferenciação ainda não está devidamente pesquisada. Algumas leis reguladoras de psicoativos em diversos países têm reconhecido nessa "diferença estritamente religiosa", através de pesquisas multidisciplinares, a principal causa para legitimar a tradição dos usos. São "usos controlados" que beneficiam diversos aspectos da vida social (ao invés de causar destruição e morte, como imagina o senso comum ao associar algumas dessas práticas religiosas ao uso de "drogas"). Mas, como você já observou nas orientações, meus estudos em ciências sociais são muito recentes, não sinto que tenho o domínio de diversas categorias dos estudos pós-coloniais, talvez por isso meu objetivo teime em objetivar-se. Meu problema geral de pesquisa diz respeito a "como os estudos pós-coloniais podem fornecer ferramentas para uma compreensão antropológica de uma categorização de 'uso estritamente religioso' que é vaga tanto nas leis como nos estudos sobre ayahuasca". Como acredito que o antropólogo ayahuasqueiro tem um acesso privilegiado na compreensão dessa "diferença", pela posição ambígua que ocupa, pretendo explorar especificamente esse campo de produção antropológica "nativa" . As possibilidades metodológicas aparentemente foram ampliadas a partir de um acesso recente que obtive e pretendo discutir melhor com você pessoalmente na orientação. Adiantando um pouco o assunto, penso em elaborar entrevistas com os antropólogos ayahuasqueiros para tentar vislumbrar aspectos da relação sui generis entre o contexto "religioso" e o acadêmico. O "uso estritamente religioso" é um ideal romântico que na prática não comporta o fenômeno de uso ritual da ayahuasca em sua totalidade, mas que pode apontar, muito embora o caráter ideológico, caminhos para o entendimento do uso "legítimo" e "sadio" de psicoativos que podem ser transpostos para políticas públicas mais eficientes com relação aos usos de diversas substâncias.
Esclareci ou compliquei?
Olá Felipe!
Pelo que entendi sua discussão perpassa pelo debate da "neutralidade científica", fazer social X fazer antropológico. Algo do tipo: como ser e fazer antropologia sendo ao mesmo tempo objeto da análise? Isso vai exigir de você um estudo epistemológico muito grande, principalmente pra que você possa fazer as diferenciações entre aquele que você vai pesquisar, até que ponto ele fala como antropólogo e até que ponto fala como sujeito daquela ação.
Com relação ao seu recorte, acho que você vai ter que especificar um pouco mais. Não dá, numa dissertação de mestrado, pra abranger o maior número possívelde entrevistados, principalmente em nível nacional. Sem contar que talvez não se trata de pegar grande número de entrevistados, mas de fazer um bom recorte e analisar bem os dados.
Oi Aline!
Fazer esse recorte tem sido um grande desafio, e a sua opinião, bem como a orientação de Frank e a experiência com os estudos e os membros do Gerts são fundamentais.
Olá caro Felipe!
Meu comentário repete, de certa forma, o último comentário da Aline. Pois bem, pelo que entendi, você pretende observar a relação entre a ciência (fazer antropológico) e a religião, a participação de antropólogos no ritual de consumação da bebida.Como realizar uma pesquisa isenta de pessoalidade, se o pesquisador é parte ou faz parte do fato pesquisado? Será que seria necessário um exercício de distanciamento em relação ao objeto de sua análise, sob a pena dos resultados serem comprometidos? Abraço! Até mais!
Sim, Diogo. Esse é meu principal objetivo, contemplar uma parcela dessa produção antropológica "nativa" sobre ayahuasca. Não se trata apenas de questionar o distanciamento, porque três décadas de estudos e de tomadas de posição estatal baseadas nesses estudos atestam que o distanciamento e o profissionalismo existe. Eu pretendo associar esse estranhamento factual a uma discussão de teoria antropológica para mensurar quanto da produção é fruto da visão nativa e quanto é resultado de transformações no interior da antropologia porque acredito que a relação entre a disciplina e o nativo opera transformações metodológicas que enriquecem o conhecimento sobre o grupo estudado. Em outras palavras, questionar o valor científico de um trabalho antropológico "nativo" apenas reflete antigos preconceitos positivistas com relação ás ciências humanas e sociais. Não quero focar o distanciamento como legitimador da pesquisa, mas sim a aplicabilidade funcional ímpar da antropologia nesses contextos em acelerada transformação.
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