domingo, 13 de setembro de 2015

Resenha do texto "The integrative revolution" de Geertz



Referência bibliográfica
GEERTZ, Clifford. The integrative revolution: primordial sentiments and civil politics in the new states. In:_____. Old societies and new estates: the quest for modernity in Asia and Africa. New York/N.Y./USA: The Free Press of Glencoe, 1963, p. 105-157.

Diogo Francisco Cruz Monteiro (Faculdade Pio Décimo/GERTS)

Clifford Geertz (1926-2006) foi um antropólogo estadunidense, professor da Universidade de Princeton, em Nova Jersey. Foi o fundador da Antropologia Hermenêutica ou Interpretativa, que floresceu a partir dos anos 1950, representando um divisor de águas na teoria antropológica contemporânea.
A epistemologia de Geertz se desenvolveu como um contraponto ao modelo estrutural Levi-straussiano. Para o estruturalismo, o conhecimento deveria originar-se da elaboração de conceitos abstratos que explicariam, de modo homogêneo, os diversos contextos empíricos observados pelo analista. Já o viés interpretativo, propagado por Geertz, baseava-se na ideia de que a compreensão dos fenômenos sociais deveria partir dos casos concretos - da empiria - através dos quais a elaboração de teorias amplas seria possível.
Estudioso dos temas sobre religião, Geertz realizou pesquisas de campo na Indonésia e no Marrocos. Dentre as suas obras publicadas, destacamos: Islam Observed (1968), A Interpretação das Culturas (1973), Negara. The theatre-state in Bali (1980), O Saber Local (1983), Obras e vidas (1988), After the fact (1995) e Nova Luz Sobre a Antropologia (2000).
Em The integrative revolution: primordial sentiments and civil politics in the new states, Geertz pretende introduzir o conceito de “primordial attachments” (apego ao primordial), fenômeno por ele observado como obstáculo para a formação da unidade nacional na Ásia e África pós-coloniais.
Geertz propõe que os povos dos novos estados pós-coloniais são movidos por duas entidades dominantes opostas: a necessidade de serem aceitos como indivíduos com desejos particulares e a intenção de constituir um moderno estado unificado.
Dessa forma, o autor parece indagar: “até que ponto é possível alcançar a homogeneidade sócio-cultural no seio das sociedades pós-coloniais, caracterizadas por um caleidoscópio de culturas, costumes e tradições? Seria viável assegurar, nesses novos estados, a coexistência pacífica entre grupos sociais tão diversos?”.      
Nesse sentido, o autor aponta que as tentativas de construção da nacionalidade nos novos estados, por meio do viés “primordialista” – homogeneizador - ocasionam uma série de tensões, em decorrência da diversidade das culturas dos povos que os compõem.
Dessa forma, Geertz considera que os desafetos entre os povos nos novos estados se originam do “primordial attachments” – apego ao primordial – entendido como uma “dádiva”, entidade que tem o poder de conceder a existência social aos indivíduos. Essa “dádiva” da existência social pode estar relacionada às similaridades imediatas, relações de parentesco, pertencimento às comunidades e culturas particulares. (GEERTZ, 1963, p. 107).
Geertz destaca ainda que, no contexto dos nacionalismos nos estados pós-coloniais, há uma menor referência às sociedades plurais ou múltiplas. Isso, segundo o autor, gera problemas de separatismo, “paroquialismo” ou “comunalismo”, descontentamentos baseados nos traços sanguíneos, concepções de raça, língua, região, religião, costumes e tradições.
Ao refletir sobre a perspectiva primordialista como fonte de tensões sociais nos países asiáticos e africanos, envolvidos em “revoluções integradoras” no período pós-independência, Geertz demonstra que há, dependendo do contexto social focalizado, uma diversidade tanto nos padrões de postura primordial quanto nas respostas políticas a eles direcionadas.  
Nesse particular, o autor descreve os diferentes conflitos envolvendo segmentos sociais diversos em países como a Indonésia, Malásia, Birmânia, Índia, Líbano, Marrocos e Nigéria. Para cada situação observada, indicam-se as fontes primordialistas das tensões sociais: regionalismo (Indonésia), raça (Malásia), língua (Índia), religião (Líbano), costume (Marrocos) e parentesco (Nigéria). 
            Assim, Geertz informa, para o caso da Índia, sobre a fundação do Congresso Nacional Indiano, partido que adotava uma postura cosmopolita e etnicamente neutra, com o fim de angariar a aliança dos grupos políticos locais.  O autor destaca, ainda, as dificuldades enfrentadas pelo partido, no sentido de lidar com o descontentamento primordial dos diversos grupos sociais indianos.

... o Congresso é [...] um partido nacional e se tornou a mais importante força centralizadora, não se compondo nem como uma confederação primordial de subpartidos nem como agência de assimilacionismo do grupo majoritário. [...] o Congresso tornou-se etnicamente neutro [...] tal como uma força cosmopolitana em nível nacional ao mesmo tempo em que construiu uma multiplicidade de máquinas partidárias paroquiais, separadas, independentes. Desse modo, nas eleições de 1957 [...] o Congresso se envolveu numa guerra em várias frentes, lutando em diferentes batalhas eleitorais em vários estados, contra diferentes tipos de oponentes capitalizando sobre diferentes tipos de descontentamentos – contra os comunistas em Kerala, Bengal e Andhra, contra partidos religiosos comunais em Punjab, Uttar e Madhya Pradesh, contra uniões tribais em Assam e Bihar, contra frentes etno-linguísticas em Madras, Maharashtra e Gujerat... (GEERTZ, 1963, p. 122-123, tradução nossa).

Portanto, Geertz conclui suas reflexões admitindo que a ideia de nação, nos novos estados, baseia-se na difusão dos sentimentos primordiais, que segregam ou assimilam – através de um “etnocentrismo moderno” - a diversidade dos povos. Isso pode ser considerado o motivo das tensões em regiões historicamente caracterizadas pelas diferenças culturais.        
            Em The integrative Revolution, por meio da sua teoria sobre “o apego ao primordial”, Geertz transmite uma compreensão aprofundada acerca das complexidades políticas e identitárias que permeiam a construção das nacionalidades nos estados pós-coloniais. Portanto, a leitura desse artigo é necessária para um melhor entendimento das relações entre identidades, pertencimentos e nação no contexto contemporâneo.



3 comentários:

Frank Marcon disse...

Diogo, obrigado pela resenha e pelo estímulo ao debate. Este texto de Geertz é estimulante para pensarmos muitas questões contemporâneas, bem como para teorizarmos sobre a questão dos processos identitários e pensarmos a relação entre estado e sociedade. Aqui Geertz assume a cultura como um dado da experiência social, articulado a ideia de comunidade, onde se estreitam os laços de lealdade e incontáveis atributos de virtude de importância para a manutenção dos próprios laços, que ultrapassam afeição pessoal, as necessidades práticas, os interesses comuns ou as obrigações. São afinidades que "parecem" ser mais provenientes de um senso "natural" do que da interação social (GEERTZ, 1963, p. 3). Alguns destes tipos de comunidade desenvolvem "sensos naturalizados" de: laços consanguineos (parentes ou quase parentes, baseados na ideia de linhagens e famílias extensas,); outros de raça (ideia de parentescos assentadas numa teoria etnobiológica que ressaltam os fenótipos como marcadores da diferença); de língua (diferenças com base nas marcas do uso da linguagem, sotaques e idiomas); de região (a naturalização da região torna primordial/território); religião (marca de um tipo acessório primordial para um grupo); Costume (estilos de vida como marca diferencial). Para Geertz, os descontentamentos tipo primordiais se levantam quando se sentem sufocados, ou ameaçados de desmembramentos políticos, o que foi dinamizado com a universalização do estado-nação como modelo de organização política a partir do pós-colonialismo. A preocupação de Geertz é com as regras dos sentimentos primordiais na política. As identidades coletivas ratificam e expressam publicamente de diversas formas no mundo. Os padrões da identificação primordial e da clivagem com os novos estados não são fluidas, formadas e infinitamente variadas, mas são definitivamente demarcadas e variam em caminhos sistematicos. Para o autor, o estado civil nasceu ontem (depois da exaustão colonial, se comprado com as formas primordiais) perante as diferentes, densas, intrincadas formas de aliança social, muitas das quais cristalizadas por séculos. Estas tensões entre sentimentos primordiais e políticas civis são próprias desta sobreposição de formas de agregamento social de lealdades. Os diferentes estados nacionais surgidos no último século, a partir da descolonização, lidaram e lidam cada qual a sua maneira com diferentes modalidades de "formas primordialistas de sociedades" e constroem cada qual suas formas de sociedade civil, como resultado destas tensões e encontros, como os exemplos estudados por GEERTZ (1963), indonésio, malaio, burma, índiano, libanes, marroquino, nigeriano. Segundo ele, os princípios de "solidariedades primordiais" são promovidos por uma espécie de consciência primordialziada a uma consciência da ordem civil. Neste caminho, sua crítica é que a revolução integrativa, como ele entende este processo, não acaba com o etnocentrismo, mas meramente o moderniza. Muito ainda há para ser feito em termos de compreensão analítica, já que tais processos são constantemente negociados e transformados pela construção de formas de estado civil formadores de lealdades que passam por dinâmicas mais ou menos constantes de transformação. Mas o que os padrões presentes de civilidade e os entendimentos sobre o que é público nas formas de estado moderno tem a nos dizer sobre como tais sociedades constroem, mantem e justificam suas lealdades? Como pensar os diferentes processos de identificação em suas várias dinâmicas, levando em consideração as lealdades do tipo primordial, a formação do estado-nação e a construção do conceito de sociedade civil? Políticas públicas, comunidades tradicionais, estilos de vida, conflitos diversos e muito mais podem ser problematizados a partir daí. Este texto é massa! Aproveitem, debatam e se divirtam.

Felipe Araujo disse...

Oi Diogo, Frank e demais colegas pesquisadores. Algumas impressões gerais (mais precisamente três) sobre o texto,focalizando principalmente aspectos teórico-metodológicos, a partir das leituras aqui apresentadas: (i)numa perspectiva conceitual, a ótica lançada por Geertz vai de encontro a qualquer tentativa de definição de questões envolvendo coletividades (em ordem de raça, religião, parentesco, território, etc.) que parta de maneira externa aos próprios fenômenos pesquisados; numa perspectiva metodológica, a ideia de que o entendimento das categorias apropriadas pelos indivíduos em suas definições em esferas diversas não cabe em um modelo homogêneo e consensual marca as práticas de campo antropológicas, e participa inclusive da formação do sentimento do que significa pertencer ao campo da antropologia nos dias atuais. Em síntese, o olhar multifacetado proposto por Geertz traz por terra a crença de que a cultura é orgânica e autoexplicativa, pois mesmo que os participantes da cultura muitas vezes propaguem esta ideia, a observação atenta dos modelos construídos aponta marcas incontestes de dissenso. (ii) Daí nos depararmos com o grande desafio metodológico, que recrudesce em um processo teórico e institucional da própria disciplina antropológica, de pensar a dinâmica da cultura face ao movimento entre o pertencimento enquanto indivíduo e/ou grupo. O pesquisador com modelos pré-concebidos e incipientes da cultura se depara com uma espécie de vazio neste ponto, uma terra de ninguém, porque se por um lado a prática da ciência requer condutas, por outro o objeto por diversas vezes não condiz com discurso e prática, sentido e pertencimento.(iii)Passamos desta forma a olhar para o objeto como fruto de sua época, da teia de sentido que o mesmo tece e à qual não pode se dar ao luxo de negligenciar. Procura-se entender a tensão entre sentimentos de pertencimento e política civil, entre colonialismo e pós-colonialismo, entre discurso e ação, história e narrativa, estado novo e regime antigo,como se de alguma maneira a visão mais ampla do processo institucional e histórico que contém o indivíduo pudesse auxiliar no entendimento de sua visão complexa, vezes pessoal e outras coletiviza(neste ponto somos obrigados a deduzir que nem sempre por sua escolha).
Uma pequena provocação: não estaríamos desta forma delegando à história todo o peso conceitual que um dia os chamados estruturalistas demandaram como presenças da cultura ela mesma?

Espero ter contribuído de alguma forma,e não ter viajado muito na ideia, como disse no início são questões que extrapolam em certa medida o texto em si. Abraço e sucesso nas pesquisas a todos!

Eliseu Ramos disse...


Olá pessoal do gerts! A questão da integração do indivíduo com uma comunidade definida por território, lingua, pela raça, religão, etc. é frequentemente alvo de estudos nas ciências sociais. Os recentes conflitos que se espalharam na África, ocasionando o fenômeno batizado de Primavera árabe, trouxeram novamente â tona a discussão sobre o encaixotamento de grupos tribais distintos em regiões oficialmente demarcadas. A estrutura simbólica da nação, como já diria Hobsbawm, é construída para remeter a uma ideia de linearidade e coerência, entretanto seu papel pode consistir também na tentativa de abafamento de diferenças culturais dentro do próprio território. Nesse sentido, penso que é fundamental reconhecer que as peculiaridades do processo histórico das nações pos-coloniais são decisivos em suas formações e em seus respectivos conflitos e disputas pelo poder político. Mas, a problemática não se esgota nessa premissa, acredito que uma das principais contribuições de Geertz nesse texto é expandir as possibilidades analíticas, atentando para as contingencialidades correspondentes a cada território habitado por esses grupos, mas sem esquecer dos fatores exógenos que também influenciam decisivamente no desenvolvimento de uma dinâmica cultural que aproxime ou distancie o indivíduo/grupo perante outro.

É isso, abraços, até a próxima, vamos adiante!