Foto: Jeanine Ramirez |
Por
Lucas Vieira Santos Silva
O livro
escrito por Loïc Wacquant (2008), As duas faces do gueto, é composto por
nove artigos interligados e que constroem uma ponte empírica e analítica entre
dois outros livros do autor: Os condenados da cidade e As prisões da
miséria. Wacquant (2008), examina o surgimento e o desenvolvimento de um
novo tipo de marginalidade urbana em sociedades avançadas do Ocidente
capitalista e a mudança de postura do Estado em relação a pobreza após o fim do
Estado de bem-estar social. O autor percebe que para se implementar o Estado
neoliberal, é necessário deixar de lado “as práticas sociais” típicas do Welfare
State, priorizando a administração penal desses “rejeitados humanos” da
sociedade de mercado, marginalizando ainda mais o subproletariado urbano e
produzindo um Estado Penal. Além disso, o Loïc Wacquant discute a construção
dos guetos norte-americanos em oposição as outras formas de aglomeramentos
raciais ou econômicos e a passagem desse gueto, com o surgimento do
Estado Penal, a um hipergueto.
O primeiro
capítulo, intitulado: Para acabar com o mito das “cités-guetos”, o autor
discute se existe alguma relação entre os guetos negros norte-americanos e as cités
francesas (cidades periféricas da França proposta por telejornais,
políticos e intelectuais franceses). Para o sociólogo, o gueto negro
norte-americano é o único que veio à luz do outro lado do Atlântico, pois
representa uma dominação etnorracial imposta por um poder exterior, o que não
aconteceu com os outros povos nos EUA, que acabaram formando grupos étnicos
essencialmente voluntários e heterogêneos. Parafraseando Michel Wieviork, ele
discute quatro componentes racistas que se ajustam ao gueto: preconceito,
violência, segregação e discriminação – e os relacionam a uma noção de exclusão
total (material, simbólica, de classe e de raça). Dessa maneira, o autor enuncia
as bases para compreender esse conceito, que seria pensa-lo sempre a partir da
conexão entre classe e raça. Assim sendo, Wacquant (2008) defende a ideia de
que as Cités são áreas que diferem totalmente dos guetos negros
norte-americanos, pois “não são conjuntos institucionais topograficamente
separados pelo efeito de uma restrição ética ou racial imposta pela
intermediação do Estado” (p.19). A comparação é na realidade uma tentativa de
inviabilizar o fenômeno Francês.
No segundo
capítulo, Descivilização e demonização: a reforma social e simbólica do
gueto norte-americano, o autor analisa historicamente a construção desse
gueto negro no plano material e discursivo, utilizando-se de dois autores da
sociologia relacional: Bourdieu e Elias. O primeiro plano, material e
relacional, está no processo de descivilização dos guetos negros, em função do
esquecimento do Estado e da consequente desintegração do espaço. O segundo plano,
simbólico e discursivo, está no processo de demonização do subproletariado
negro urbano dos EUA e na retomada de alguns preconceitos que justificam a política
de abandono Estatal. É importante enfatizar, que a partir de um diálogo com a
sociologia relacional de Norbert Elias, Wacquant (2008) entende o conceito de Processo
Civilizador como:
longa
transformação no comportamento e nas relações interpessoais, dos gostos, dos
modos de comportamento e do conhecimento que acompanha a formação de um Estado
unificado, capaz de monopolizar a violência física na totalidade de seu
território e, assim, progressivamente pacificar a sociedade (p. 34).
Neste panorama,
os guetos negros foram na contramão desse processo a partir da década de 60,
tendo três tendências que materializam essa descivilização: despacificação da
sociedade; desertificação organizacional; desdiferenciação social e
informalização da economia. Por outro lado, é a partir da construção da
categoria Underclass, que começa o debate acerca da demonização dos
guetos, justificando o abandono social e as práticas punitivistas, pois
desestoriciza, essencializa e despolitiza o debate.
No
terceiro capítulo, Elias no gueto, Loïc Wacquant (2008) discute a
importância das obras de Elias para o estudo do gueto e percebe que a
sociologia das figurações nos ajuda em quatro questões: ver o gueto como uma
força dinâmica; descartar a fragmentação analítica; abranger e unir níveis de
análise (macro e micro); entender violência e medo como epicentro da
modernidade. Essas questões, mais os processos narrados anteriormente trazem o
surgimento do hipergueto (1980;1990), que seria a exacerbação da
histórica exclusão racial vista por um prisma de classe, isto é, um depositário
de rejeitados sociais. Sendo que, para estancar os problemas sociais que esse hipergueto
traz a sociedade civil, o governo passa a produzir um Estado penal.
No quarto
capítulo, Uma cidade negra dentro da branca: o gueto norte-americano
revisitado, o sociólogo reconstrói a trajetória conceitual da palavra gueto
e percebe que semanticamente temos três estágios: 1- Judeus na Europa Oriental,
onde o termo gueto era muito próximo de Slums; Depois da era
progressista quando o termo gueto se expandiu para qualquer confinamento
socioespacial próximo a grupo étnico; Pós-segunda guerra, quando passou a
denotar essa segregação forçada dos negros em distritos compactos e degradados
dos centros das cidades. Essa combinação feita da separação e duplicação
institucionais de enfrentamento estrutural e de enclausuramento vivencial é o
que distingue os guetos negros das outras formas de organização.
No quinto
capítulo, As duas faces do gueto: construindo um conceito sociológico,
ele discorre acerca de três povos que passaram pelo processo de guetoização:
os afro-americanos, os judeus e os Burakumin, criticando a primeira escola de
Chicago e o paradigma ecológico por estudar os guetos enquanto uma área
natural. Assim sendo, ele percebe os guetos a partir de duas faces: uma de
dominação e a outra como instrumento de integração e de proteção dos moradores.
Por fim, mostra que existe uma diferença conceitual entre pobreza, segregação,
aglomeração étnica e gueto, pois o último tem por base a interrelação entre
classe e raça.
No sexto
capítulo, A penalização da miséria e o avanço do neoliberalismo, o autor
percebe uma relação entre o avanço das políticas neoliberais, o fim do Estado
de bem-estar social e o surgimento e desenvolvimento do Estado penal. Para
Wacquant (2008), o Estado penal é o braço direito do neoliberalismo, pois é ele
quem vai regular os marginalizados e os rejeitados sociais e “controlar as
desordens geradas pela difusão da insegurança social”, utilizando “a polícia,
as cortes e o sistema prisional, que estão se tornando cada vez mais ativos e
intrusivos nas zonas inferiores do espaço social” (p. 93-94). Tal resolução do
problema “tomou o lugar funcional dos guetos negros como um instrumento de
controle e contenção de populações consideradas castas inferiores, com as quais
não se deve misturar[...]” (p. 95).
No sétimo
capítulo, Os rejeitados da sociedade de mercado, partindo da noção de
que o superencarceramento serve como controle social dos rejeitados sociais, o
autor escreve uma pequena reflexão acerca de alguns grupos de pessoas que são
presas além dos criminosos, entre elas os toxicômanos, os psicopatas e os
sem-teto. Todos esses indivíduos, devido à falta de políticas sociais do
Estado, acabam sendo enclausurados nas prisões.
No oitavo
e último capítulo, Quatro estratégias para cortar os custos do
encarceramento em massa nos Estados Unidos, o autor descreve a descomunal
ascensão do Estado penal ao longo das três décadas posteriores a partir de
cinco dimensões: 1) Expansão vertical via hiperinflação carcerária; 2) Expansão
horizontal via dilatação da suspensão condicional da pena; 3)Advento do big
government penal a par da redução dos gastos com educação, saúde pública e
bem-estar social; 4) Ressurgimento e desenvolvimento frenético de uma indústria
carcerária privada; 5) uma política de ação afirmativa carcerária que visa as
comunidades dos guetos e moradores de zonas urbanas de baixa renda,
particularmente por meio da “guerra às drogas”. Assim sendo, as quatro
estratégias para controlar e cortas esses custos são:
A
primeira estratégia consiste em baixar o nível dos serviços e os padrões
de vida nos estabelecimento penais, limitando ou eliminando vários
‘privilégios’ e amenidades garantidos aos seus residentes [...] A segunda
estratégia consiste em utilizar inovações tecnológicas nos
campos da eletrônica, informática, biometria e medicina, entre outros, para
incrementar a produtividade da atividade carcerária em geral, no sentido de
confinar e vigiar mais detentos com menos pessoal. [...] Uma terceira
estratégia para aliviar a carga financeira da política de punição da pobreza
consiste em transferir parte dos custos de encarceramento para os
prisioneiros e suas famílias. [...] O quarto método de reduzir os custos do
encarceramento se mantém ainda cheio de promessa: consiste em reintroduzir
trabalho (p. 125-129).
Por fim, o
autor defende a necessidade de um pensamento crítico, enquanto solvente da
doxa, para “questionar perpetuamente a obviedade e as estruturas do debate
cívico de maneira a nos darmos a chance de pensar sobre o mundo, em vez de
sermos pensados por ele, dissecar e compreender seus mecanismos, e assim
reapropriá-lo intelectual e materialmente (p. 138).
WACQUANT,
Loïc. As duas faces do gueto. São Paulo: Boitempo, p. 157, 2008.
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