domingo, 1 de setembro de 2019

Resenha "As duas faces do gueto", de Loïc Wacquant

Foto: Jeanine Ramirez


Por Lucas Vieira Santos Silva

O livro escrito por Loïc Wacquant (2008), As duas faces do gueto, é composto por nove artigos interligados e que constroem uma ponte empírica e analítica entre dois outros livros do autor: Os condenados da cidade e As prisões da miséria. Wacquant (2008), examina o surgimento e o desenvolvimento de um novo tipo de marginalidade urbana em sociedades avançadas do Ocidente capitalista e a mudança de postura do Estado em relação a pobreza após o fim do Estado de bem-estar social. O autor percebe que para se implementar o Estado neoliberal, é necessário deixar de lado “as práticas sociais” típicas do Welfare State, priorizando a administração penal desses “rejeitados humanos” da sociedade de mercado, marginalizando ainda mais o subproletariado urbano e produzindo um Estado Penal. Além disso, o Loïc Wacquant discute a construção dos guetos norte-americanos em oposição as outras formas de aglomeramentos raciais ou econômicos e a passagem desse gueto, com o surgimento do Estado Penal, a um hipergueto.

O primeiro capítulo, intitulado: Para acabar com o mito das “cités-guetos”, o autor discute se existe alguma relação entre os guetos negros norte-americanos e as cités francesas (cidades periféricas da França proposta por telejornais, políticos e intelectuais franceses). Para o sociólogo, o gueto negro norte-americano é o único que veio à luz do outro lado do Atlântico, pois representa uma dominação etnorracial imposta por um poder exterior, o que não aconteceu com os outros povos nos EUA, que acabaram formando grupos étnicos essencialmente voluntários e heterogêneos. Parafraseando Michel Wieviork, ele discute quatro componentes racistas que se ajustam ao gueto: preconceito, violência, segregação e discriminação – e os relacionam a uma noção de exclusão total (material, simbólica, de classe e de raça). Dessa maneira, o autor enuncia as bases para compreender esse conceito, que seria pensa-lo sempre a partir da conexão entre classe e raça. Assim sendo, Wacquant (2008) defende a ideia de que as Cités são áreas que diferem totalmente dos guetos negros norte-americanos, pois “não são conjuntos institucionais topograficamente separados pelo efeito de uma restrição ética ou racial imposta pela intermediação do Estado” (p.19). A comparação é na realidade uma tentativa de inviabilizar o fenômeno Francês.

No segundo capítulo, Descivilização e demonização: a reforma social e simbólica do gueto norte-americano, o autor analisa historicamente a construção desse gueto negro no plano material e discursivo, utilizando-se de dois autores da sociologia relacional: Bourdieu e Elias. O primeiro plano, material e relacional, está no processo de descivilização dos guetos negros, em função do esquecimento do Estado e da consequente desintegração do espaço. O segundo plano, simbólico e discursivo, está no processo de demonização do subproletariado negro urbano dos EUA e na retomada de alguns preconceitos que justificam a política de abandono Estatal. É importante enfatizar, que a partir de um diálogo com a sociologia relacional de Norbert Elias, Wacquant (2008) entende o conceito de Processo Civilizador como:

longa transformação no comportamento e nas relações interpessoais, dos gostos, dos modos de comportamento e do conhecimento que acompanha a formação de um Estado unificado, capaz de monopolizar a violência física na totalidade de seu território e, assim, progressivamente pacificar a sociedade (p. 34).
 
Neste panorama, os guetos negros foram na contramão desse processo a partir da década de 60, tendo três tendências que materializam essa descivilização: despacificação da sociedade; desertificação organizacional; desdiferenciação social e informalização da economia. Por outro lado, é a partir da construção da categoria Underclass, que começa o debate acerca da demonização dos guetos, justificando o abandono social e as práticas punitivistas, pois desestoriciza, essencializa e despolitiza o debate.

No terceiro capítulo, Elias no gueto, Loïc Wacquant (2008) discute a importância das obras de Elias para o estudo do gueto e percebe que a sociologia das figurações nos ajuda em quatro questões: ver o gueto como uma força dinâmica; descartar a fragmentação analítica; abranger e unir níveis de análise (macro e micro); entender violência e medo como epicentro da modernidade. Essas questões, mais os processos narrados anteriormente trazem o surgimento do hipergueto (1980;1990), que seria a exacerbação da histórica exclusão racial vista por um prisma de classe, isto é, um depositário de rejeitados sociais. Sendo que, para estancar os problemas sociais que esse hipergueto traz a sociedade civil, o governo passa a produzir um Estado penal.

No quarto capítulo, Uma cidade negra dentro da branca: o gueto norte-americano revisitado, o sociólogo reconstrói a trajetória conceitual da palavra gueto e percebe que semanticamente temos três estágios: 1- Judeus na Europa Oriental, onde o termo gueto era muito próximo de Slums; Depois da era progressista quando o termo gueto se expandiu para qualquer confinamento socioespacial próximo a grupo étnico; Pós-segunda guerra, quando passou a denotar essa segregação forçada dos negros em distritos compactos e degradados dos centros das cidades. Essa combinação feita da separação e duplicação institucionais de enfrentamento estrutural e de enclausuramento vivencial é o que distingue os guetos negros das outras formas de organização.

No quinto capítulo, As duas faces do gueto: construindo um conceito sociológico, ele discorre acerca de três povos que passaram pelo processo de guetoização: os afro-americanos, os judeus e os Burakumin, criticando a primeira escola de Chicago e o paradigma ecológico por estudar os guetos enquanto uma área natural. Assim sendo, ele percebe os guetos a partir de duas faces: uma de dominação e a outra como instrumento de integração e de proteção dos moradores. Por fim, mostra que existe uma diferença conceitual entre pobreza, segregação, aglomeração étnica e gueto, pois o último tem por base a interrelação entre classe e raça.

No sexto capítulo, A penalização da miséria e o avanço do neoliberalismo, o autor percebe uma relação entre o avanço das políticas neoliberais, o fim do Estado de bem-estar social e o surgimento e desenvolvimento do Estado penal. Para Wacquant (2008), o Estado penal é o braço direito do neoliberalismo, pois é ele quem vai regular os marginalizados e os rejeitados sociais e “controlar as desordens geradas pela difusão da insegurança social”, utilizando “a polícia, as cortes e o sistema prisional, que estão se tornando cada vez mais ativos e intrusivos nas zonas inferiores do espaço social” (p. 93-94). Tal resolução do problema “tomou o lugar funcional dos guetos negros como um instrumento de controle e contenção de populações consideradas castas inferiores, com as quais não se deve misturar[...]” (p. 95).

No sétimo capítulo, Os rejeitados da sociedade de mercado, partindo da noção de que o superencarceramento serve como controle social dos rejeitados sociais, o autor escreve uma pequena reflexão acerca de alguns grupos de pessoas que são presas além dos criminosos, entre elas os toxicômanos, os psicopatas e os sem-teto. Todos esses indivíduos, devido à falta de políticas sociais do Estado, acabam sendo enclausurados nas prisões.

No oitavo e último capítulo, Quatro estratégias para cortar os custos do encarceramento em massa nos Estados Unidos, o autor descreve a descomunal ascensão do Estado penal ao longo das três décadas posteriores a partir de cinco dimensões: 1) Expansão vertical via hiperinflação carcerária; 2) Expansão horizontal via dilatação da suspensão condicional da pena; 3)Advento do big government penal a par da redução dos gastos com educação, saúde pública e bem-estar social; 4) Ressurgimento e desenvolvimento frenético de uma indústria carcerária privada; 5) uma política de ação afirmativa carcerária que visa as comunidades dos guetos e moradores de zonas urbanas de baixa renda, particularmente por meio da “guerra às drogas”. Assim sendo, as quatro estratégias para controlar e cortas esses custos são:

A primeira estratégia consiste em baixar o nível dos serviços  e os padrões de vida nos estabelecimento penais, limitando ou eliminando vários ‘privilégios’ e amenidades garantidos aos seus residentes [...] A segunda estratégia consiste em utilizar inovações tecnológicas  nos campos da eletrônica, informática, biometria e medicina, entre outros, para incrementar a produtividade da atividade carcerária em geral, no sentido de confinar e vigiar mais detentos com menos pessoal. [...] Uma terceira estratégia para aliviar a carga financeira da política de punição da pobreza consiste em transferir parte dos custos de encarceramento para os prisioneiros e suas famílias. [...] O quarto método de reduzir os custos do encarceramento se mantém ainda cheio de promessa: consiste em reintroduzir trabalho (p. 125-129).

Por fim, o autor defende a necessidade de um pensamento crítico, enquanto solvente da doxa, para “questionar perpetuamente a obviedade e as estruturas do debate cívico de maneira a nos darmos a chance de pensar sobre o mundo, em vez de sermos pensados por ele, dissecar e compreender seus mecanismos, e assim reapropriá-lo intelectual e materialmente (p. 138).

WACQUANT, Loïc. As duas faces do gueto. São Paulo: Boitempo, p. 157, 2008.

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