segunda-feira, 8 de maio de 2023

Burocracia, Discricionaridade e Violência simbólica no Discurso Jurídico

 Por Mariana Cavalcante Ouverney


           Vicente Dubous, em seu livro Sujetos en la burocracia, realiza uma etnografia nas Casas de Subsídios Familiares francesas (instituição responsável por programas de transferência de renda), com o objetivo de analisar os encontros burocráticos e a interação administrativa através do atendimento ao público efetuado nessa instituição estatal. Ele define os encontros burocráticos como uma situação de reconstrução de identidades através das narrativas singulares dos indivíduos que procuram a instituição. Por outro lado, a interação administrativa com a burocracia street level são permeadas por um conjunto de regras que não estão escritas, mas que fundamentam o funcionamento e bom desenvolvimento das atividades administrativas.


os “usuários” não vêm somente em busca daquilo que as instituições supostamente oferecem. Além da resolução dos seus problemas administrativos, eles pedem conselhos, considerações, expressam seus sofrimentos e seus ressentimentos. O trabalho da burocracia de nível de rua [street-level bureaucrats] nunca é exclusivamente burocrático: pode envolver desde assistência moral personalizada e até confronto direto (DUBOIS, 2020, p.21-22, tradução nossa).

 

Nessa perspectiva, ganha destaque a atuação da chamada burocracia street level ou burocracia “de nível de rua” expressão que se refere aos funcionários que interagem diretamente com os cidadãos através dos seus serviços públicos. Sendo assim, a interação “face a face” ou mesmo de alguma forma síncrona (se pensarmos na mediação tecnológica) proporciona a esses funcionários públicos tomarem algumas decisões com certa margem de discricionariedade, baseadas em suas moralidades individuais e coletivas. Esses são os chamados “jogos burocráticos” (DUBOUS, 2019), os quais possibilitam que as interpretações discricionárias dos fatos e as decisões em casos concretos proporcionem a atualização e adequação do que está na lei. Sendo assim, essas relações burocráticas não são weberianas no sentido estritamente racional-legal, ao contrário, são permeadas por agências de ambos os lados, porém de maneira desproporcional, visto que é o agente que possui o poder estatal e quem em geral pode escolher como vai adequar os casos reais à norma (discricionaridade), o que dá margem para a violência simbólica do Estado.  Sobre o conceito de violência simbólica:

 

É enquanto instrumentos estruturados e estruturantes de comunicação e de conhecimento que os “sistemas simbólicos” cumprem a sua função política de instrumento de imposição ou de legitimação da dominação, que contribuem para assegurar a dominação de uma classe sobre outra (violência simbólica) dando o reforço da sua própria força às relações de força que as fundamentam e contribuindo assim, segundo a expressão de Weber, para a “domesticação dos domesticados”. (BOURDIEU, 1989, p.11)

 

De acordo com Bourdieu (1989, p. 14), o poder simbólico permite alcançar o equivalente ao que é obtido pela força física ou econômica, porém seu poder de persuasão reside em seu caráter eufemizador que transfigura o arbitrário para uma crença que oferece legitimidade a determinado discurso/ visão de mundo.

            Ao analisar o discurso jurídico de acordo nessa perspectiva, Bourdieu (1989, p.211) chama a atenção para o fato de que para entender o corpus jurídico, não podemos cair em sua autopropaganda de funcionamento específico, independente constrangimentos externos. Ao contrário, devemos atentar para o fato de que as práticas e discursos jurídicos estão estruturados num contexto social mais amplo de relações de forças específicas que vão orientar o seu funcionamento em relação conflitos históricos que devem interpretar; os quais, por outro lado, também podem ficar delimitados dentro da lógica interna das soluções jurídicas que se prendem à racionalidade e autoridade da norma, mas que inevitavelmente possui uma mutabilidade histórica. Nesse aspecto, ganha preponderância a necessidade de uma linguagem jurídica especializada, pois há uma concorrência pelo monopólio do direito dizer o direito: “agentes investidos de competência ao mesmo tempo social e técnica que consiste essencialmente na capacidade reconhecida de interpretar (de maneira mais ou menos livre ou autorizada) um corpus de textos que consagram a visão legítima, justa, do mundo social” (BOURDIEU, 1989, p.212). Assim, para o autor, a organização hierárquica da Justiça, em instâncias judiciais, normas e interpretação das decisões, é capaz de criar uma coesão disciplinada para o habitus[1] jurídico de interpretação dos procedimentos codificados de resolução de conflitos. Desta forma, é estabelecida uma fronteira entre duas visões de mundo: a visão dos leigos e a visão daqueles que possuem a competência jurídica, estabelecendo-se assim uma relação de poder, expressa sobretudo em matéria de linguagem jurídica, produzindo portanto, uma violência simbólica.

 

 Referências

 

BOURDIEU, Pierre. O Poder Simbólico. Rio de Janeiro: Editora Bertrand, 1989.

BOURDIEU, Pierre. A Economia das Trocas Simbólicas. São Paulo: Perspectiva, 1992.

DUBOIS, Vincent. Políticas no guichê, políticas do guichê. In: Implementando desigualdades: reprodução de desigualdades na implementação de políticas públicas. PIRES, Roberto Rocha C. (org.). Rio de Janeiro: Ipea, 2019. p.105-125.

 

DUBOIS, Vincent. Sujetos en la burocracia: Relación administrativa y tratamiento de la pobreza. Santiago de Chile: Universidad Alberto Hurtado, 2020.



[1] Sobre o conceito de habitus de Bourdieu: “Pensar a relação entre indivíduo e sociedade com base na categoria habitus implica afirmar que o individual, o pessoal e o subjetivo são simultaneamente sociais e coletivamente orquestrados. O habitus é uma subjetividade socializada” (BOURDIEU, 1992, p. 101).

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