Por Mariana Cavalcante Ouverney
os “usuários” não vêm somente em busca daquilo que
as instituições supostamente oferecem. Além da resolução dos seus problemas
administrativos, eles pedem conselhos, considerações, expressam seus
sofrimentos e seus ressentimentos. O trabalho da burocracia de nível de rua
[street-level bureaucrats] nunca é exclusivamente burocrático: pode envolver desde assistência moral personalizada e
até confronto direto (DUBOIS, 2020, p.21-22, tradução nossa).
Nessa perspectiva, ganha destaque a atuação da chamada burocracia street
level ou burocracia “de nível de rua” expressão que se refere aos funcionários que interagem diretamente com os cidadãos através dos seus serviços
públicos. Sendo assim, a interação “face a face” ou mesmo de alguma forma síncrona
(se pensarmos na mediação tecnológica) proporciona a esses funcionários
públicos tomarem algumas decisões com certa margem de discricionariedade, baseadas em suas
moralidades individuais e coletivas. Esses são os chamados “jogos burocráticos” (DUBOUS,
2019), os quais possibilitam que as interpretações discricionárias dos fatos e
as decisões em casos concretos proporcionem a atualização e adequação do que
está na lei. Sendo assim, essas relações burocráticas não são weberianas no sentido estritamente
racional-legal, ao contrário, são permeadas por agências de ambos os lados,
porém de maneira desproporcional, visto que é o agente que possui o poder
estatal e quem em geral pode escolher como vai adequar os casos reais à norma
(discricionaridade), o que dá margem para a violência simbólica do Estado. Sobre o conceito de violência simbólica:
É enquanto
instrumentos estruturados e estruturantes de comunicação e de conhecimento que
os “sistemas simbólicos” cumprem a sua função política de instrumento de
imposição ou de legitimação da dominação, que contribuem para assegurar a
dominação de uma classe sobre outra (violência simbólica) dando o reforço da
sua própria força às relações de força que as fundamentam e contribuindo assim,
segundo a expressão de Weber, para a “domesticação dos domesticados”.
(BOURDIEU, 1989, p.11)
De acordo
com Bourdieu (1989, p. 14), o poder simbólico permite alcançar o equivalente ao
que é obtido pela força física ou econômica, porém seu poder de persuasão
reside em seu caráter eufemizador que transfigura o arbitrário para uma crença
que oferece legitimidade a determinado discurso/ visão de mundo.
Ao analisar o discurso jurídico de
acordo nessa perspectiva, Bourdieu (1989, p.211) chama a atenção para o fato de
que para entender o corpus jurídico, não podemos cair em sua
autopropaganda de funcionamento específico, independente constrangimentos
externos. Ao contrário, devemos atentar para o fato de que as práticas e
discursos jurídicos estão estruturados num contexto social mais amplo de relações
de forças específicas que vão orientar o seu funcionamento em relação conflitos
históricos que devem interpretar; os quais, por outro lado, também podem ficar
delimitados dentro da lógica interna das soluções jurídicas que se prendem à
racionalidade e autoridade da norma, mas que inevitavelmente possui uma
mutabilidade histórica. Nesse aspecto, ganha preponderância a necessidade de
uma linguagem jurídica especializada, pois há uma concorrência pelo
monopólio do direito dizer o direito: “agentes investidos de competência ao
mesmo tempo social e técnica que consiste essencialmente na capacidade
reconhecida de interpretar (de maneira mais ou menos livre ou autorizada) um corpus
de textos que consagram a visão legítima, justa, do mundo social” (BOURDIEU,
1989, p.212). Assim, para o autor, a organização hierárquica da Justiça, em
instâncias judiciais, normas e interpretação das decisões, é capaz de criar uma
coesão disciplinada para o habitus[1] jurídico de
interpretação dos procedimentos codificados de resolução de conflitos. Desta
forma, é estabelecida uma fronteira entre duas visões de mundo: a visão dos
leigos e a visão daqueles que possuem a competência jurídica, estabelecendo-se
assim uma relação de poder, expressa sobretudo em matéria de linguagem jurídica,
produzindo portanto, uma violência simbólica.
BOURDIEU, Pierre. O Poder Simbólico. Rio de Janeiro: Editora
Bertrand, 1989.
BOURDIEU, Pierre. A Economia das Trocas
Simbólicas. São Paulo: Perspectiva, 1992.
DUBOIS, Vincent. Políticas no guichê, políticas do guichê. In: Implementando
desigualdades: reprodução de desigualdades na implementação de políticas
públicas. PIRES, Roberto Rocha C. (org.). Rio de Janeiro: Ipea, 2019. p.105-125.
DUBOIS,
Vincent. Sujetos en la burocracia: Relación administrativa y tratamiento
de la pobreza. Santiago de Chile: Universidad Alberto Hurtado, 2020.
[1] Sobre o conceito de habitus de Bourdieu: “Pensar a relação entre
indivíduo e sociedade com base na categoria habitus implica afirmar que o
individual, o pessoal e o subjetivo são simultaneamente sociais e coletivamente
orquestrados. O habitus é uma subjetividade socializada” (BOURDIEU, 1992, p.
101).
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