Por Letícia Oliveira Feijão Galvão[1]
Na contemporaneidade, a emergência de novas narrativas identitárias e as disputas e sentidos que estas atribuem ao espaço público têm ocupado relevantes campos de pesquisa nas ciências sociais. Durante a minha trajetória acadêmica, venho estudando múltiplas formas de agências juvenis e como essas agências se articulam a elementos presentes no cotidiano de parte das juventudes sergipanas contemporâneas. Atualmente, minha proposta de pesquisa de doutorado se baseia em trazer para análise categorias como corpo, gênero e cidade a partir das microculturas juvenis que se formam através da prática do surfe e do skate (ou skateboarding) na cidade de Aracaju. Mais precisamente, como a prática de ambos os esportes pode agir como um recurso de reivindicação feminina do espaço urbano[2] e qual é o papel da ação coletiva nesse contexto.
Para viabilizar essas investigações,
utilizo alguns textos sociológicos e antropológicos que dialogam com as minhas
principais questões de pesquisa. Aqui, apresentarei algumas contribuições de
dois deles: o livro A invenção do
cotidiano: artes de fazer, de Michel de Certeau, e o texto Ondas, cenas e microculturas juvenis, de
Victor Sérgio Ferreira. Meu intuito é mostrar como ambas as produções
apresentam conceitos centrais para pensar como o direito à cidade é
reivindicado pelas mulheres que se associam a coletivos voltados ao surfe, ao
skate e aos estilos de vida que se estruturam a partir dessas práticas.
Em Ondas, cenas e microculturas juvenis, Ferreira (2008) define, a
partir de uma leitura do antropólogo Carles Feixa, as microculturas como
“contextos sociais onde ocorrem fluxos de significados e valores manejados por
pequenos grupos de jovens na vida cotidiana, atendendo a situações locais
concretas” (FEIXA apud FERREIRA, 2008, p. 101). O autor pontua, também, que as
microculturas contemporâneas não respondem às dinâmicas sociais que as rodeiam
como os “rituais de resistência" (HALL; JEFFERSON, 2003) das décadas
passadas: segundo Ferreira (2008, p. 102), no lugar de um estilo de vida contestatório
e militante, “passa a existir um estilo de vida celebratório, orientado por uma
ética de existência que cultiva valores hedonistas, experimentalistas,
presenteístas e convivialistas, no sentido do alargamento das possibilidades de
expressão individual”. Podemos pensar os estilos de vida que se estruturam a
partir de práticas cotidianas - como o surfe e o skate, por exemplo - como
parte desse fenômeno.
Já em A invenção do cotidiano: artes de fazer, Michel de Certeau
investiga como os sujeitos intervêm material e simbolicamente nas suas
respectivas realidades a partir de “estratégias” e “táticas” estabelecidas
nesses contextos. É precisamente no terceiro capítulo dessa obra em que o autor
situa o que seriam essas estratégias e táticas, que estruturam as “artes de
fazer” - modos de “caminhar, ler, produzir, falar etc.” (CERTEAU, 2014, p. 87)
presentes no cotidiano dos agentes. Em Fazer
com: usos e táticas, Certeau aponta o que distingue ambos os movimentos e
quais são os seus efeitos na vida social.
É importante frisar que Certeau
situa, em primeiro lugar, o papel do consumo nessa dinâmica, como sendo
caracterizado sobretudo por suas “astúcias”; pela possibilidade de inversão de
signos e práticas estabelecidos hierarquicamente no cotidiano. Em seguida,
Certeau busca destrinchar a ideia de estratégia: segundo ele, a estratégia
seria o cálculo ou a manipulação das relações de forças exercidas por sujeitos
de poder. A estratégia é uma conduta necessariamente hierárquica, cartesiana,
manifesta pelos “poderes invisíveis do Outro” (CERTEAU, 2014, p. 93).
As táticas, por sua vez, seriam
justamente o oposto: seria um “movimento dentro do campo de visão do inimigo”,
uma “arte do fraco” (CERTEAU, 2014, p. 94). Dessa forma, se as estratégias são
estabelecidas de forma a propagar relações de poder, as táticas são as práticas
que subvertem essa relação; são as possibilidades de construção de outras
formas de consumir, de ser e estar nos espaços públicos e privados. Como posto
pelo autor (2014, p. 97), “a tática é determinada pela ausência de poder, assim
como a estratégia é organizada pelo postulado de um poder”.
Diante do exposto, é possível
associar utilizar tanto a noção de microculturas juvenis, pensada por Ferreira,
quanto os conceitos de artes de fazer, estratégias e táticas trabalhados por
Certeau para analisar sociologicamente as relações entre mulheres, esportes,
estilos de vida e espaço público em Aracaju. Quando pensamos no direito à
cidade, é pertinente que pensemos, também, nas possibilidades de ação - ou,
mais precisamente, nas artes e astúcias de reinvenção da cidade, como propõe
Diógenes (2020) - que engendram práticas cotidianas capazes de desafiar
estruturas de poder presentes no espaço público.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BARROS, Erna. “Uma cidade muda não muda”: mulheres, graffiti e espaços urbanos hostis. Tese (Doutorado em Sociologia). Universidade Federal de Sergipe, 2020.
CERTEAU, Michel de. Fazer com: usos e táticas. In: A invenção do cotidiano: 1. Artes de fazer.
22. ed. Petrópolis: Vozes, 2014.
DIÓGENES, Glória. Diagramas da
Juventude Contemporânea: Artes e Astúcias de Reinvenção da cidade. In: Juventudes Contemporâneas: Desafios e
Expectativas em Transformação. Rio de Janeiro: Editora Telha, 2020.
FERREIRA, Victor Sérgio. Ondas,
cenas e microculturas juvenis. PLURAL,
Revista do Programa de Pós‐Graduação em Sociologia da USP, São Paulo,
v.15, 2008, pp.99‐128.
HALL; JEFFERSON, Tony (orgs.). Resistance through rituals: youth
subcultures in post-war Britain. London: Routledge, 2003.
[1] Graduada em
Ciências Sociais e Mestre em Sociologia pelo Programa de Pós-Graduação em
Sociologia da Universidade Federal de Sergipe (PPGS/UFS). Membro do Grupo de
Estudos Culturais, Identidades e Relações Interétnicas (GERTs).
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